sábado, 20 de dezembro de 2008

Williwaw, de Gore Vidal

Leia trecho do livro

Capítulo 1

ALGUÉM LIGOU O RÁDIO na casa do leme. Uma música alta e sentimental o despertou. Permaneceu ali em sua cama por um momento e olhou fixo pela escotilha na parede oposta. Uma gaivota passou voando preguiçosamente diante da janela. Ficou observando enquanto o pássaro deslizava para a frente e para trás, até não mais ser visto. Bocejou e percebeu que estava com uma dor por trás dos olhos. Tinha havido uma festa, ele se lembrou. Sentiu-se enjoado. O som do rádio ficou mais alto quando a porta da cabine se abriu. Do lado de fora, um rosto moreno de índio olhou para ele. “Ei, comandante, o rancho está pronto lá embaixo.” O rosto desapareceu. 17

Devagar, saiu da cama e pôs os pés no piso. Parou em frente ao espelho. Com cuidado, apertou os dedos contra as pálpebras e teve um prazer mórbido com a dor que sentiu. Percebeu que os olhos estavam vermelhos e o rosto com aspecto sujo. Fez careta para o espelho. Da casa do leme, o som da música negra martelava dolorosamente em seus ouvidos. “Desliga essa droga!”, ele gritou. “OK, comandante”, respondeu de longe seu segundo-piloto. A música parou, e ele começou a se vestir. O segundo-piloto entrou na cabine. “Uma festa e tanto, não foi, senhor Evans?” Evans resmungou. “É, uma festa. Que horas são?” O piloto olhou no relógio. “Seis e vinte.” Evans fechou os olhos e começou a contar para si: uma, duas – ele havia dormido durante quatro horas e trinta minutos. Era muito pouco tempo de sono. O piloto ficou olhando para ele. “Você parece que não está bem”, disse finalmente. “É, eu sei.” Pegou a gravata. “Alguma novidade? O tempo está bom?” O piloto sentou-se na cama e passou a mão pelos cabelos. Era um hábito irritante. Os cabelos eram compridos e tinham cor de palha embolorada. Quando relaxava, passava a mão pelos fios. A bordo de um navio, nota-se esse tipo de coisa. “O tempo parece bom. Um pouco de vento vindo do sul, mas não o suficiente para fazer estragos. Na noite passada nós arrancamos um pouco de tinta da proa. Acho que a gente estava muito perto daquele pilar.” Puxou os cabelos para trás e não mexeu mais neles. Evans ficou satisfeito com isso. “De qualquer forma, nós vamos ter de pintar todo o navio este mês.” Evans fechou o bolso de sua camisa verde-acinzentado. Oficiais superiores tinham uma tendência a criticar, mesmo nas Aleutas. Espetou a insígnia de subtenente no colarinho. Suas mãos tremeram. 18

Bervick o observou. “Acho que você realmente deve ter ido a uma festa e tanto.” “É isso mesmo. Joe está voltando para os Estados Unidos pelo rodízio. A gente estava comemorando. Foi mesmo uma festa e tanto.” Evans esfregou os olhos. “Bervick, você já comeu?” O piloto, Bervick, fez que sim com a cabeça. “Comi com os cozinheiros. Estou acordado desde as cinco.” Levantou-se. Era mais baixo do que Evans, que por sua vez não era alto. Bervick tinha o corpo franzino, os olhos de um norueguês – grandes e acinzentados –, com muitas rugas. Aos trinta anos, já era um velho marujo. “Eu acho que vou lá embaixo agora”, disse Evans. Saiu da cabine e foi para a casa do leme, onde a primeira coisa que fez foi olhar o barômetro. O ponteiro marcava entre Bom Tempo e Variável. Isso era comum. Desceu. No final da escada, as portas para a praça de máquinas se encontravam abertas. O gerador estava ligado. Os dois motores a diesel estavam silenciosos. Evans entrou na cozinha. John Smith, o cozinheiro índio, misturava a massa para o pão. Era mau cozinheiro, do sudeste do Alasca. Entretanto, cozinheiros de qualquer tipo eram raros, e Evans já se dava por satisfeito em ter um, nem que fosse aquele ruim. “Quais são as novidades?”, o comandante indagou, preparando-se para ouvir os muitos problemas de Smitty. “O novo cozinheiro.” Smitty apontou para um homem gordo, num avental branco, que recolhia os pratos no refeitório. “Qual é o problema desta vez?” “Eu peço para ele para lavar prato ontem de noite. Era a vez dele, mas ele não faz nada disso. Então eu digo para ele o que é que eu penso. Chamo atenção dele direito. Mas ele não ouve, não. Agora já vi tudo…” Os olhos escuros brilhavam enquanto ia falando. Evans o interrompeu. 19

“OK, vou falar com ele.” Entrou no refeitório. Ali, duas mesas corriam paralelas à antepara. Uma delas se destinava à tripulação, a outra aos graduados e aos maquinistas. A da tripulação estava vazia. Apenas o chefe de máquinas, Duval, se encontrava à outra mesa. “Bom dia, comandante”, ele disse. Era um homem mais velho. Tinha o cabelo preto mesclado de fios brancos e cortado bem curto. O nariz era comprido e adunco. A boca era grande, mas não harmoniosa. Duval era um francês de New Orleans. “Bom dia, chefe. Parece que todo mundo acordou cedo hoje.” “É, acho que todos estavam com essa disposição.” O chefe pigarreou. Esperou por um comentário. Não houve nenhum. Depois ponderou casualmente. “Acho que é porque todo mundo ficou sabendo que a gente ia para Arunga. Deve ser só boato.” Olhou para o garfo. Evans pôde perceber a ansiedade do chefe para descobrir se estavam mesmo de partida. Duval nunca fazia uma pergunta direta. O cozinheiro gordo colocou um prato de ovos para Evans e lhe serviu um pouco de café. A mão dele não estava firme, e o café derramou na mesa. O cozinheiro ignorou a bebida derramada e saiu do refeitório. Evans observou o líquido marrom escorrer lentamente para o piso. Pensativo, fez desenhos com o dedo indicador. Lembrou-se da ilha Arunga. Finalmente, disse: “Fico imaginando onde eles ouvem boatos como esse”. “Em quase todos os lugares”, o chefe respondeu. “Eles provavelmente imaginaram que a gente ia para lá porque é o nosso QG, e o ajudante-de-ordens do general está aqui, e dizem que ele está fazendo tudo para voltar o mais rápido possível, e que os aviões não vão levantar vôo por uma semana. Nós somos o único navio no porto que pode levar o homem até Arunga.” “Isso parece bem interessante”, disse Evans, e começou a comer. 20

Carrancudo, Duval afastou a cadeira da mesa. Ficou de pé e se esticou. “De qualquer maneira, a viagem para Arunga é agradável.” Esperou algum comentário. Mais uma vez, não houve nenhum. “Acho que vou dar uma olhada nas máquinas.” Evans sorriu quando o chefe foi embora. Duval não o tinha em alta conta. A idade do comandante era quase a metade da idade do chefe de máquinas, e isso significava encrenca. O chefe achava que idade era substituto tanto para cérebro quanto para experiência; Evans não podia gostar dessa idéia. Sabia, entretanto, que teria de acabar contando ao chefe que estavam de partida para Arunga. Evans comeu rapidamente. Notou que o lugar do primeiro-piloto estava vazio, sem ter sido ocupado. Teria de conversar com ele outra vez sobre acordar mais cedo. Terminado o café, saiu do refeitório pela porta de trás. Parou na popa e respirou fundo. O céu estava cinza. Uma névoa fina cobria o porto, e não ventava. A água parecia um vidro escuro. No alto, gaivotas moviam-se rapidamente em busca de restos de comida. Um dia calmo para o inverno dessas ilhas. Evans subiu pelo costado boreste e desceu para o cais. Ali havia dois grandes armazéns. Eram militares e provisórios. Diversas barcaças se encontravam atracadas perto do navio, e ele teria de fazer uma volta aberta com a proa quando saíssem. Mecanicamente, calculou tempo e distância. Estivadores que usavam macacões azuis sujos cuidavam do carregamento das barcaças, e as várias tripulações, tanto de civis quanto de soldados, preparavam-se para mais um dia de trabalho no porto. Da casa do leme de uma das barcaças, um índio grande de expressão dura gritou para Evans. O comandante respondeu gritando uns xingamentos bem-humorados; depois virou-se e caminhou pelo cais em direção à terra firme. 21

A baía de Andrefski era o principal ancoradouro daquela ilha aleuta. Era bem protegida e, apesar de pequena, não apresentava recifes nem lugares rasos na parte principal do porto. Na ilha não cresciam árvores. A única vegetação se resumia a uma esparsa relva marrom sobre as pequenas montanhas que limitavam a baía. Para além dessas montanhas, havia outras em forma piramidal, pontudas e altas, manchadas de neve. Evans olhou para as montanhas, mas sem notá-las. Ele já as tinha visto muitas vezes antes, e não lhe interessavam agora. Nunca prestara atenção nelas. Pensou na viagem para Arunga. Uma boa viagem para fazer, do tipo longo, três dias; isso era o que havia de melhor a respeito da ida. Evans chegara à conclusão de que, quando permaneciam muito tempo no porto, todos ficavam meio entediados e irritáveis. Uma mudança agora seria boa. Alguém o chamou. Ele olhou para trás. O segundo-piloto, Bervick, vinha apressado em sua direção. “Indo para o escritório, comandante?”, perguntou ao alcançar Evans. “Isso mesmo, vou buscar nossas instruções.” “Arunga?” “É.” Seguiram caminhando. O segundo-piloto não estava usando suas divisas de sargento. Evans torceu para que o ajudante-de-ordens não se importasse. Nunca se sabia o que esperar desse pessoal do QG. Falaria com Bervick mais tarde. Foram caminhando vagarosamente pela estrada de cinza vulcânica preta. De tempos em tempos, surgiam armazéns e cabanas de madeira. Entre muitas das construções havia equipamento empilhado, à espera de ser despachado. “Faz quase um ano que a gente foi para Arunga”, comentou Bervick. “É isso mesmo.” 22

“Tem alguma carta náutica nova?” “Nós recebemos no último outono, lembra?” “Acho que esqueci.” Um caminhão grande se aproximou, e eles es peraram na valeta até o veículo passar. “Você tem visto a mulher dos carneiros?”, perguntou Evans. A mulher dos carneiros era a única mulher da ilha. Era uma canadense que ajudava a administrar o rancho de carneiros no interior. Ela já estava no local havia alguns anos, e, apesar de ser de meia-idade, corpulenta e razoavelmente virtuosa, os boatos a respeito dela eram condenatórios. Dizia-se que cobrava cinqüenta dólares por seus serviços, e todo mundo achava que era muito. Bervick balançou a cabeça. “Eu não sei como ela está. Deve estar bem, imagino. Estou economizando para a próxima vez que formos a Big Harbor. Não quero nada com ela.” Evans ficou interessado. “Quem você tem em mente em Big Harbor?” “Olga.” “Eu pensei que ela fosse propriedade do chefe.” Bervick deu de ombros. “Isso é o que ele diz. Ela é uma boa garota.” “É, eu imagino que seja.” “Eu gosto dela. O chefe está apenas se exibindo.” “Nenhuma delas vale tanta confusão.” Uma chuva fraca começou a cair. O escritório ficava a quase um quilômetro de distância dali. Por medida de segurança, todas as construções do porto eram afastadas umas das outras. “Droga”, Evans resmungou, enquanto a chuva respingava em seu rosto. Um caminhão apareceu atrás deles. Quando parou, os dois subiram na parte traseira. Evans disse ao motorista para onde estavam indo e depois se virou para Bervick. “É melhor você pegar a previsão do tempo.” 23

“Pode deixar. Acho que vai ser bem razoável.” “Difícil ter certeza. Este tempo é esquisito.” O caminhão os deixou no Escritório do Serviço de Transportes do Exército. Ficava numa construção comprida e cinza, de apenas um andar. A primeira sala era grande, e ali quatro ou cinco praças faziam trabalhos de escritório sob luzes fluorescentes. As paredes eram decoradas com pôsteres que alertavam contra gás venenoso, camuflagem ineficaz e doenças venéreas. Um dos funcionários dirigiu-se a Evans. “O capitão está esperando pelo senhor”, disse. “Acho que vou checar com a Meteorologia. Encontro você na volta para o barco.” “Tudo bem.” Evans entrou por um corredor que dava no escritório do capitão. Uma escrivaninha e três cadeiras simples e desconfortáveis eram a mobília da sala. Na parede havia fotografias do presidente, de vários generais e de diversos nus. Os nus geralmente sumiam das paredes durante as inspeções. O capitão se encontrava sentado e encurvado sobre a escrivaninha. Era um homem grande, com traços fortes. Fumava um cachimbo e, ao mesmo tempo, falava com um major que estava numa das três cadeiras desconfortáveis. Olharam para Evans quando ele entrou. “Olá, comandante”, disse o capitão, e tirou o cachimbo da boca. “Quero que conheça um velho amigo meu, o major Barkison.” O major levantou-se e apertou a mão de Evans. “Prazer em conhe- cê-lo, senhor…” “Evans.” “Senhor Evans. Parece que vai ser intimado a trabalhar.” “É, pelo jeito vou… senhor.” Ele acrescentou o “senhor” só por precaução. 24

“Espero que a viagem seja tranqüila”, observou o major com um sorriso. “Deve ser.” Evans relaxou. O major parecia humano. O major Barkison se formara em West Point e guardava um discreto orgulho disso. Apesar de não ter muito mais de trinta anos, já era calvo. Tinha nariz aquilino, olhos azul-claros e queixo firme, mas pequeno. Parecia-se com o duque de Wellington. Ciente disso, esperava que alguém algum dia notasse a semelhança. Mas ninguém jamais notou. “Sente-se aqui, Evans”, disse o capitão, apontando para uma das cadeiras. O major e Evans sentaram-se. “Nós estamos mandando você numa pequena viagem até Arunga. Rumo ao oeste, onde os cervos e submarinos brincam.”* Ele riu bastante da própria piada. Evans também riu. O major não. O major perguntou: “Quanto tempo o senhor vai levar para fazer essa viagem?” “Isso é difícil de dizer.” Evans calculou mentalmente por alguns momentos. “Setenta horas é mais ou menos a média. A gente não pode afirmar antes de saber das condições do tempo.” Barkison fez que sim com a cabeça e não disse nada. O capitão soprou uma rodela de fumaça e observou-a flutuar em direção ao teto, com os olhos pequenos quase fechados. “As previsões do tempo podem ser bem ruins”, ele disse afinal. Mais uma vez, Barkison demonstrou concordar. “É, é verdade. É por isso que nenhum avião vai decolar por pelo menos uma semana. Está tudo retido em terra. É por isso que eu não posso sair daqui. É imperativo que eu volte para o QG.” “A guerra pára se o senhor não voltar, não é, major?” O capitão * Brincadeira com o refrão da música Home on the range (“A home, a home, where the deer and antelope play.”) (N.E.) 25

disse isso em tom de brincadeira, mas Evans percebeu malícia no que ele dissera. “O que o senhor quer dizer, capitão?”, o major perguntou com firmeza. “Absolutamente nada, senhor. Estava apenas fazendo uma piada. Um péssimo hábito nosso por aqui.” Evans sorriu por dentro. Sabia que o capitão não gostava dos militares de carreira. O capitão tinha experiência no ramo de cereais e se orgulhava de ter feito mais dinheiro do que os militares. Eles não entendiam de negócios, mas o capitão sim. Isso fazia diferença. O major fez cara feia. “Eu tenho de entregar meus relatórios, o senhor sabe. O senhor entende isso, é claro. O senhor sabe que eu nunca mandaria um navio sair num tempo como esse, a não ser que fosse importante. O tempo como está obsta viagens aéreas”, acrescentou de maneira meio pomposa, desfrutando a palavra “obsta”. Tinha tom oficial. “Certamente, major.” O capitão voltou-se para Evans. “Pelo que imagino, a viagem não deverá ser muito ruim, talvez um pouco turbulenta, mas isso sempre é. O melhor é você aportar em Big Harbor amanhã e pegar um relatório meteorológico por lá. Tenho também alguma carga para eles. Disse aos rapazes para a levarem até o navio de vocês hoje.” Parou para mastigar o cachimbo. “A propósito”, acrescentou, já num tom de voz diferente, “como você se sente depois da nossa festinha de ontem à noite?” Evans contorceu o rosto. “Não muito bem, o negócio tinha gosto de vinagre.” “Você já devia saber.” O capitão riu alto e piscou. Barkison parecia melindrado. Pigarreou. “Imagino que vocês tenham muita dificuldade para fazer a bebida chegar até aqui.” Tentou soar como alguém da turma, mas não deu certo. 26

“Nós conseguimos”, disse o capitão, sem poder segurar uma risadinha. A porta se abriu. Um jovem tenente de rosto rosado olhou com hesitação para dentro da sala até localizar o major. “Tenente Hodges, este é o senhor Evans.” Os dois apertaram as mãos e sentaram-se. O jovem tenente era bastante circunspecto. “Alguma novidade a respeito da nossa partida, senhor?”, indagou. “Sim”, disse Barkison. “Se o tempo permitir, partimos amanhã de manhã. Nós devemos chegar em… quanto tempo o senhor disse?” “Talvez em três dias, talvez menos”, Evans respondeu. “Isso não é tempo demais, senhor? Quero dizer, nós teríamos de estar de volta depois de amanhã.” O major encolheu os ombros. “Não há nada que possamos fazer a esse respeito. Por um tempo indeterminado, não haverá decolagens.” “Bem”, o capitão levantou-se, e Evans fez o mesmo, “é melhor você verificar o tempo, providenciar a água e fazer o que mais tiver de fazer. Você parte amanhã de manhã sem falta e faz uma parada em Big Harbor. Até mais tarde.” Ele se dirigiu ao major. “Se o senhor quiser ir para o navio hoje à noite…” “Ah, não, não se incomode. Nós nos transferimos amanhã.”

“OK. Até logo, Evans.”

Evans disse num tom baixo que tinha sido um prazer conhecê-los e saiu. Enquanto passava pelo corredor, ficou imaginando se Bervick seria capaz de entender a carta meteorológica. Chegou à conclusão de que não.

Do lado de fora, a chuva havia parado. O vento estava mais frio e mais vigoroso. Evans caminhou até uma cabana que tinha a forma de um barril cortado ao meio – o escritório da Meteorologia. Corvos planavam em grande número ao redor, as penas pretas brilhando melancolicamente à luz pálida. Muito acima, Evans enxergou uma águia que voava em direção ao norte.

Dentro do escritório, um sargento manuseava mapas e cartas. O oficial meteorologista ainda não havia chegado.

“Olá, senhor Evans.”

“Olá. O Bervick esteve aqui?” “Esteve; acabou de sair. Acho que foi buscar tinta lá nos Suprimentos.” “Ah, sei. Qual é a situação do tempo?” O sargento mexeu em seus papéis. “É difícil dizer. Se os ventos mudarem para o norte, e parece que é o que vai acontecer, o senhor vai estar bem.” “Tem muito vento fora do porto?” “Algum.” “Muito vento? Trinta milhas por hora? Mais do que isso?” “Ah, não tenho idéia. O senhor está saindo amanhã, não é?” “É isso mesmo.” “Bem, vou checar com os rapazes da Marinha e entro em contato mais tarde. Este não é um bom mês para viajar pelo arquipélago.” “É, eu sei. Isso que você tem aí é a carta meteorológica?” “É.” O sargento empurrou a carta na direção dele. Evans fingiu es- tudá-la. Na verdade, entedia muito pouco sobre a leitura dessas cartas. Contudo sabia, por experiência, que muitas vezes estavam erradas. “Provavelmente o mar vai estar agitado, senhor Evans.” “Isso não é novidade. Você disse que Bervick está nos Suprimentos?” “Acho que sim.” “OK, e muito obrigado. Vejo você quando tiver informações mais quentes.” Evans saiu. Por um tempo, ficou observando as barcaças: tinham o nariz achatado e pareciam lajes a se moverem pelo porto paraa frente e para trás. Havia rumores de que o porto de Andrefski seria fechado em breve; apenas a base aérea, mais para o interior, continuaria funcionando. Muitos homens já tinham sido removidos; restavam apenas umas poucas centenas. Na praia rochosa coberta de pedras-da- lua e ágatas, pilhas de madeira para construção esperavam para ser embarcadas no Liberty* acinzentado que estava embicado contra o cais principal. Era o maior do porto, e isso fazia que os outros parecessem brinquedinhos numa banheira. Um jipe, com uma carroceria esquisita em madeira compensada, passou por Evans e espirrou lama da beira da estrada. Evans xingou o motorista. Depois andou pela estrada, mantendo-se próximo ao barranco coberto de seixos. Havia bastante tráfego a essa hora do dia. O armazém de suprimentos era grande e sombrio e parecia vazio. Evans deu a volta pela lateral do prédio e entrou. Podia ouvir a voz de Bervick. “Ah, vai, você pode conseguir seis latas para a gente. Deus do Céu! Você tem desse negócio empilhado por toda parte.” Outra voz respondeu. “Sinto muito, três é o máximo que você pode levar.” “Ora, isso é…” Evans andou até eles. Bervick estava segurando três latas de tinta. Evans deu um sorriso largo. “Isso vai ser suficiente para nós. Você já fez tudo o que tinha de fazer aqui?” “Acho que sim.” “Bem, então vamos voltar para o navio.” Bervick pegou duas das latas, e Evans levou a terceira. Uma chuva fina começava a tomar conta da atmosfera. “Está um dia agradável.” * Não se trata de um navio específico, mas de uma classe de cargueiros pré-fabricados, produzidos em larga escala pelos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. (N.E.) 29

“É, está um dia agradável. Todos os dias são agradáveis aqui. Nós vamos para Big Harbor amanhã.” “E de lá para Arunga?” “É isso mesmo. Temos uns superiores para transportar.” “Quem? Ouvi dizer que o capelão talvez viesse.” “Isso é novidade. Não ouvi falar nele. Nós temos um major que é o ajudante-de-ordens em Arunga e um tenente.” “Alguma carga?” “Um pouco para Big Harbor. É só.” Saíram pela estrada, os pés triturando a superfície, que parecia feita de cinza molhada. No alto, gaivotas voavam em círculos, o que, de acordo com os índios, era sinal de chuva. Entre rochas pontiagudas, os corvos crocitavam tristemente. Em silêncio, os dois voltaram a pé para o navio. Dois dos homens lavavam o convés. A água do mar que saía pelas mangueiras soava como um tambor quando lançada contra o piso. Evans ficou surpreso. “É a primeira vez que eles fazem isso sem precisar receber ordens.” Bervick riu. “A tripulação já sabia que a gente estava de partida antes do senhor.” “Geralmente eles sabem.” Os dois subiram a bordo. Bervick foi em direção à popa, com a tinta. Evans abriu a porta que dava para o refeitório e entrou. Sentado a uma das mesas, o chefe fumava um charuto. No final da escada, Evans pôde ver os dois maquinistas assistentes trabalhando no motor auxiliar. “Quais são as novidades, comandante?”, perguntou Duval. “Oi, chefe. Seus rapazes estão muito ocupados?” “É, estão se preparando para a grande viagem. Sorte que na semana passada nós conseguimos combustível.” “É verdade.” 30

“Quando partimos?” O chefe fez uma de suas poucas perguntas diretas. “Amanhã de manhã.” “Direto para Arunga, eu imagino.” “Não. Nós vamos para Big Harbor primeiro. Seguimos de lá.” “Então acho que vou conseguir ver a Olga”, disse o chefe, abrindo um largo sorriso. Evans olhou para ele. “E o Bervick?” “O que é que tem ele?” O chefe não estava interessado, e os dois não disseram nada por alguns momentos. Então ele falou. “Ouvi dizer que o capelão vai com a gente.” “Foi o que eu soube também. Acho que o capitão vai me falar disso mais tarde.” “Com certeza. Eu tenho de voltar ao trabalho.” O chefe deslizou para fora da mesa e caminhou na direção da praça de máquinas. Evans pôde ouvir o som da voz dele enquanto falava com os assistentes. Sabia que estava lhes dizendo que iriam mesmo na direção oeste, para Arunga. Evans entrou na cozinha. John Smith, o cozinheiro, lavava panelas. Estava sozinho. “Como vão as coisas, Smitty? Onde está o seu ajudante?” Smitty pousou a chaleira que estava esfregando. “Foi embora”, disse num tom de quem procurava conter a raiva. “Já vi tudo. O que é que esse cara faz? Esse cara ajuda aqui? Não, ele vai lá para baixo e fica sentado no traseiro gordo que ele tem. Vou me embora deste barco. Já vi tudo, ele não vai trabalhar, não vai fazer nada.” “Vou conversar com ele, Smitty.” Essa era sempre uma boa promessa a fazer. De qualquer maneira, no dia seguinte, Smitty estaria mesmo furioso por alguma outra razão. “A propósito”, ele acrescentou, “você tem mantimentos em quantidade suficiente para durar até Arunga? Nós vamos ter três passageiros.”

Smitty engoliu em seco. Seu rosto moreno, feio e magro se contorceu de pesar. “Agora já vi tudo.” Começou a falar baixo, como se estivesse rezando. “Não tenho pão, não tenho carne. Agora não tenho nada, não.” A voz dele se transformou num lamento, “como é que eu vou alimentar a tripulação? Não posso fazer pão de água. Eles vão comer comida enlatada, e pronto.” “Bem, você faz os cálculos e providencia o que for necessário. Nós vamos partir amanhã às oito.”

Smitty resmungou para si. Evans subiu até a casa do leme. Bervick estava debruçado sobre a mesa de cartas: tinha a carta de todas as ilhas do arquipélago das Aleutas à sua frente. Franzia os olhos, pensativo, enquanto media cuidadosamente um rumo.

“Você acha que consegue levar a gente até lá?”, perguntou Evans.

“O quê? Ah, claro, eu só estava checando o antigo rumo. Da última vez, nós chegamos muito perto da costa em Kulak.”

“Eu me lembro. Lá em Big Harbor a gente pensa num rumo.” O esguicho salgado das mangueiras respingou nas janelas da casa do leme.

“Isso me faz lembrar que é melhor você ir providenciar alguma água. Nós estamos com bem pouca.”

“OK.” Bervick colocou a carta numa gaveta sob a mesa e saiu. Evans olhou pela janela. Não conseguia pensar em nada muito importante para fazer antes de zarparem. Tinham combustível. Smitty providenciaria os mantimentos. As cartas estavam atualizadas. Passou a mão no rosto para ver se precisava fazer a barba. Precisava. Evans foi até sua cabine e abriu a água da pia. Notou que seus olhos tinham uma aparência um pouco melhor, apesar de ainda doerem.

Suspirou e tentou se olhar de perfil no espelho. Sabia que isso exercitaria os olhos e também, em algum lugar em sua mente, imaginou se não seria capaz de enxergar seu perfil. Tinha conseguido ver uma vez, no espelho de três faces de um alfaiate. Ficara bastante interessado e vagamente esperou conseguir ver outra vez algum dia. Pessoas que passavam muito tempo no mar ficavam obcecadas com coisas estranhas assim.

Alguém ligou o rádio. Por um momento, uma voz grave, sem vida, cortou o ar num staccato; logo foi embora. O ar se encheu de estática, e a voz voltou. Evans não conseguia entender o que ela dizia, mas, pelo tom, podia adivinhar que nossas “forças estavam avançando arrasadoras em todas as frentes” – o de sempre. Estava entediado com a guerra.

Metodicamente, Evans fez a barba. Ficou imaginando quem poderia ter ligado o rádio. Provavelmente Martin, seu primeiro-piloto. Um pouco de névoa penetrou a cabine através da janela entreaberta. Evans fechou-a rapidamente. Tremeu. O frio era penetrante.

“Estou com frio como o fio é do pavio”, cantou baixinho. Era uma musiquinha que, de vez em quando, lhe passava pela cabeça. Já a conhecia havia muito tempo. Frases esquisitas e músicas desse tipo sempre lhe ocorriam quando ficava muito tempo sozinho. Às vezes se preocupava com isso. Evans imaginava com freqüência que talvez fosse meio maluco. Entretanto, dizem que, quando se é louco, nunca se sabe disso, ele pensava. Encontrando consolo nessa idéia, voltou a cantarolar para si mesmo, “Estou com frio como o fio é do pavio”. Assim terminou de fazer a barba.

Parecia ter muito mais do que vinte e cinco anos, notou Evans, olhando no espelho com atenção. Quando tinha dezoito, trabalhara sozinho num farol. Costumava se olhar bastante no espelho. Sentia-se menos sozinho quando fazia isso, e o hábito permaneceu com ele. Bocejou e se afastou do espelho. Guardou o material de barba organizadamente; depois sentou-se e olhou para os papéis que se encontravam sobre a escrivaninha. A maior parte era de memorandos do quar- tel-general. Afastou tudo para o lado. Na gaveta da escrivaninha havia uma garrafa de bourbon. Ficou pensando se devia ou não tomar um gole, um pequeno, o suficiente para lhe tirar a dor que vinha por trás dos olhos. Evans levou a mão à gaveta. Antes que pudesse abri-la, Martin entrou na cabine. Ele nunca batia antes de entrar. “Bom dia”, disse Evans, tentando soar sarcástico. “Viva o comandante”, bradou Martin, percebendo a mão de Evans na gaveta onde estava a bebida. “Começando cedo, não?” “O que você quer dizer? Ah, isso”, Evans tirou a mão rapidamente. “Estava só procurando uma coisa.” “Estou vendo.” O primeiro-piloto deu um largo sorriso. Ele era apenas um ano mais novo do que Evans, mas parecia bem mais jovem. Tinha os modos cuidadosamente estudados de um universitário, apesar de nunca ter freqüentado uma universidade. John Martin havia sido um dos muitos jovens atores sem futuro numa companhia de repertório na Nova Inglaterra. Era moreno e quase bonito. Tinha voz grave, interessante e zombeteira. Não entendia nada sobre como ser um piloto.

“Acabou de acordar?”, perguntou Evans, já sabendo que sim.

“Bem, é, foi a festa, você sabe. Senti que tinha de dormir. A emaranhada teia, você sabe.” Martin falava com uma pronúncia pseudobritânica e sabia que com isso irritava Evans.

“Bom, então vai até lá embaixo e vê se eles providenciam a água”, Evans disse com rispidez.

“Certo estais, senhor.”

“Deixe de gracinhas. Nós partimos para Big Harbor amanhã.”

“Algum passageiro?”

“Sim, o ajudante-de-ordens em Arunga, um tenente e o capelão.”

“Isso parece divertido. Quando é que vamos transportar outro grupo de garotas como aquele?” Martin piscou de um jeito que ele consideraria debochado. Uma vez, Evans havia ficado bastante interessado numa garota que fazia parte de uma entidade de apoio aos militares.

Evans murmurou: “Não agora”. Virou-se e mexeu nos papéis da escrivaninha. Tentou pensar em alguma coisa que Martin pudesse fazer.

“Você poderia”, disse finalmente, “ir falar com o capelão e descobrir quando ele embarca. E também seria bom conseguir uma cópia das instruções especiais com o nome dele. O capitão se esqueceu de me dizer que ele iria.”

“Tudo bem.” Martin foi saindo. “A propósito”, emendou, e Evans sabia e temia o que ele ia dizer, “como é que você se sente depois da festa de ontem? Não me parece estar nada bem.”

“Eu me sinto péssimo. Agora vá trabalhar.”

Martin saiu, e Evans recostou a cabeça no braço. Estava cansado. O barco balançava menos do que de costume. Ao longe, ele podia ouvir o crocitar estridente de um corvo. Abriu a gaveta da escrivaninha.

Nenhum comentário: