domingo, 21 de dezembro de 2008

As benevolentes, Jonathan Littell

Leia trecho do livro:

benevolentes27122007

Irmãos humanos, permitam-me contar como tudo aconteceu. Não somos seus irmãos, vocês responderão, e não queremos saber. É bem verdade que se trata de uma história sombria, mas também edificante, um verdadeiro conto moral, garanto a vocês. Corre o risco de ser um pouco longa, afinal aconteceram muitas coisas, mas, se calhar de não estarem com muita pressa, com um pouco de sorte arranjarão tempo. Além do mais, isso lhes diz respeito: vocês verão efetivamente que lhes diz respeito. Não pensem que estou procurando convencê-los do que quer que seja; afinal de contas, cada um tem sua opinião. Se resolvi escrever, depois de todos esses anos, foi para expor as coisas para mim mesmo, não para vocês. Rastejamos por muito tempo nesta terra como uma lagarta, à espera da borboleta esplêndida e diáfana que carregamos dentro de nós. O tempo passa, a ninfose não chega, permanecemos larva, constatação aflitiva, o que fazer? O suicídio, naturalmente, continua sendo uma opção. Mas, para falar a verdade, o suicídio não me atrai muito. Pensei nisso, claro, durante muito tempo, e se tivesse de recorrer a ele, eis como agiria: apertaria uma granada contra o peito e partiria numa viva explosão de alegria. Uma granadinha redonda da qual eu removeria o pino com delicadeza antes de soltar a trava, sorrindo ao barulhinho metálico da mola, o último que eu ouviria, afora os batimentos do coração nos ouvidos. E depois finalmente a felicidade, ou, em todo caso, a paz, e as paredes do meu escritório enfeitadas com retalhos de carne. A limpeza caberá às faxineiras, são pagas para isso, o problema é delas.

Mas, como eu disse, o suicídio não me atrai. Não sei por quê, aliás, talvez seja um velho fundo de moral filosófica que me faz pensar que, afinal de contas, não estamos aqui para nos divertir. Para fazer o quê, então? Não tenho idéia, para durar, provavelmente, para matar o tempo antes que ele nos mate. E, nesse caso, nas horas perdidas, escrever é igual a outra ocupação qualquer. Não que eu tenha tantas horas assim a perder, sou um homem ocupado; tenho o que chamam de uma família, um trabalho, responsabilidades portanto, tudo isso toma tempo, não sobra muita coisa para evocar recordações. Recordações são coisas que eu tenho, e inclusive em uma quantidade considerável. Sou uma verdadeira fábrica de recordações. Teria passado a vida fabricando recordações, ainda que agora me paguem, em vez disso, para fabricar renda. Na verdade, eu teria sido igualmente capaz de não escrever. Afinal de contas, isso não é uma obrigação. Depois da guerra, permaneci um homem discreto; graças a Deus, nunca tive necessidade, como alguns dos meus ex-colegas, de escrever memórias como justificativa, pois nada tenho a justificar, nem que fosse com fins lucrativos, pois ganho suficientemente bem com o que faço. Uma vez eu estava na Alemanha, em viagem de negócios, discutindo com o diretor de uma grande casa de lingerie a quem eu pretendia vender renda. Ele me fora recomendado por velhos amigos; assim, sem fazermos perguntas, ambos sabíamos da situação de cada um.

Após nossa conversa, que por sinal se desenrolara de forma bastante positiva, ele se levantou para pegar um volume em sua biblioteca e me deu de presente. Tratava-se das memórias póstumas de Hans Frank, governador-geral da Polônia; intitulava-se Diante do cadafalso. "Recebi uma carta da viúva", explicou meu interlocutor. "Ela pagou para editar o manuscrito, redigido por ele depois do processo, e vende o livro para sustentar os filhos. Você imagina, chegar a esse ponto? A viúva do governador-geral. Encomendei vinte exemplares para dar de presente. Também sugeri aos meus chefes de departamento que comprassem um. Ela me escreveu uma comovida carta de agradecimento. Você a conheceu?" Garanti-lhe que não, mas que leria o livro com interesse. E assim foi, folheei-o de passagem, talvez eu lhes conte mais tarde, se tiver coragem ou paciência. Mas aqui não faria sentido falar nisso. O livro, aliás, era muito ruim, confuso, choramingas, eivado de uma curiosa hipocrisia religiosa. Talvez essas notas também sejam confusas e ruins, mas vou dar o melhor de mim para ser claro; posso lhes garantir que pelo menos elas permanecerão isentas de qualquer contrição. Não me arrependo de nada: fiz meu trabalho, e ponto final; quanto aos meus assuntos familiares, que talvez eu conte também, dizem respeito apenas a mim; quanto ao resto, lá para o final eu decerto passei dos limites, mas então eu não era mais o mesmo, vacilava e aliás o mundo inteiro estremecia ao meu redor, não fui o único a perder a cabeça, admitam. Além disso, não escrevo para alimentar minha viúva e meus filhos, no meu caso sou totalmente capaz de prover minhas necessidades. Não, se finalmente decidi escrever, tudo indica que foi para passar o tempo e também, é possível, para esclarecer um ou dois pontos obscuros, para vocês e talvez até para mim. Além do mais, acho que vai me fazer bem.

É verdade que tenho um péssimo senso de humor. A prisão de ventre, sem dúvida. Problema aflitivo e doloroso, por sinal novo para mim; antigamente, era justamente o contrário. Durante muito tempo tive de ir ao banheiro três, quatro vezes por dia; agora, uma vez por semana seria uma felicidade. Limito-me às lavagens, procedimento desagradabilíssimo, mas eficaz. Perdoem-me por entretê-los com detalhes tão escabrosos: tenho todo o direito de me queixar um pouco. E, se não estão agüentando, seria melhor pararem por aqui. Não sou Hans Frank, não faço cerimônia. Quero ser preciso, na medida do possível. Apesar dos meus defeitos, e eles são muitos, ainda sou dos que acham que as únicas coisas indispensáveis à vida humana são o ar, a comida, a bebida e a excreção, além da busca pela verdade. O resto é facultativo.

Tempos atrás minha mulher trouxe um gato preto para casa, decerto pensando em me agradar. Naturalmente, não pedira minha opinião. Devia desconfi ar que eu o recusaria taxativamente, o fato consumado seria mais seguro. E, uma vez ele ali, nada a fazer, as crianças chorariam etc. O gato, ainda assim, era bastante antipático. Quando eu tentava acariciá-lo, para dar mostras de boa vontade, ele corria para se sentar no parapeito da janela e me fi tava com seus olhos amarelos; se tentasse pegá-lo no colo, me arranhava. À noite, ao contrário, vinha se deitar como uma bola no meu peito, uma massa sufocante, e no meu sono eu sonhava que era asfi xiado sob uma montanha de pedras. Com minhas recordações, era parecido. A primeira vez que me decidi a registrá-las por escrito, tirei uma licença do trabalho. O que se revelou um erro. As coisas, entretanto, estavam bem encaminhadas: eu comprara e lera uma quantidade considerável de livros sobre o assunto a fi m de refrescar a memória, traçara organogramas, estabelecera cronologias detalhadas e assim por diante. Mas, com aquela licença, eu de repente dispunha de tempo, e comecei a pensar. Além disso, era outono, uma chuva cinzenta e suja despia as árvores, eu soçobrava lentamente na angústia. Constatei que pensar não era uma coisa boa.

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