quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Um Homem sem Pátria, de Kurt Vonnegut

Trecho do livro:

1

Quando criança eu era o mais jovem da minha família, e o caçula de qualquer família é sempre um piadista, porque uma piada é o único jeito que ele tem de entrar numa conversa adulta. Minha irmã era cinco anos mais velha, meu irmão nove anos mais velho, e meus pais eram ambos conversadores. Então, à mesa de jantar, quando muito jovem, eu era muito chato para todas estas outras pessoas. Elas não queriam saber das histórias bobas e infantis dos meus dias. Queriam falar sobre coisas realmente importantes que aconteciam na escola secundária, na universidade ou no trabalho. Por isso, a única maneira que eu tinha de entrar numa conversa era dizer algo engraçado. Acho que devo ter feito isso por acaso, no início, acidentalmente fiz um trocadilho que parou a conversa, ou coisa parecida. E então descobri que as piadas eram um modo de entrar numa conversa adulta.

Cresci numa época em que a comédia neste país era soberba — durante a Grande Depressão. Havia grandes números de comediantes absolutamente ótimos no rádio. E, quase sem intenção, comecei realmente a estudá-los. Ouvia comédias pelo menos uma hora por noite ao longo de toda a minha juventude e fiquei muito interessado pela estrutura das piadas e como elas funcionavam.

Quando faço graça, tento não ofender. Não penso muito se o que faço é de gosto duvidoso. Não penso se deixo muitas pessoas constrangidas ou irritadas. Os únicos choques que uso são uma ocasional palavra obscena. Algumas coisas não são engraçadas. Não posso imaginar um livro ou uma cena de humor sobre Auschwitz, por exemplo. E não consigo fazer piada sobre a morte de John F. Kennedy ou Martin Luther King. Fora isso, não penso em qualquer assunto do qual eu fugiria, do qual não conseguiria extrair alguma graça. Catástrofes totais são terrivelmente divertidas, como Voltaire demonstrou. Se querem saber, o terremoto de Lisboa é engraçado.

Vi a destruição de Dresden. Vi a cidade antes, e então saí de um abrigo antiaéreo e a vi depois, e certamente uma das minhas reações foi a risada. Sabe Deus, é a alma buscando algum alívio.

Qualquer assunto está sujeito à risada e imagino que houve risadas de algum tipo muito grotesco entre as vítimas de Auschwitz.

O humor é quase uma reação fisiológica ao medo. Freud disse que o humor é uma reação à frustração — uma das muitas reações. Um cachorro, ele disse, quando não consegue sair por um portão, começa a arranhar e a cavar e a fazer gestos sem sentido, talvez rosnando ou coisa parecida, para lidar com a frustração, a surpresa ou o medo.

E uma ampla quantidade de risada é desencadeada pelo medo. Trabalhei numa série de comédias da televisão anos atrás. Estávamos tentando montar um espetáculo que, como princípio básico, mencionava a morte em todo episódio, e este ingrediente tornaria qualquer risada mais profunda sem que a platéia percebesse como as gargalhadas estavam sendo induzidas.

Existe um tipo superficial de risada. Bob Hope, por exemplo, não era realmente um humorista. Era um cômico com material muito superficial, nunca mencionava nada que perturbasse. Eu ria aos borbotões com o Gordo e o Magro. Existe uma terrível tragédia neles, de certo modo. Estes homens são suaves demais para sobreviver neste mundo e encontram-se em perigo terrível o tempo todo. Poderiam ser mortos com muita facilidade.

Até mesmo as piadas mais simples são baseadas em pequeninos toques de medo, como a pergunta: "O que é aquela coisa branca no cocô do passarinho?" O ouvinte, como se convocado para uma sabatina na escola, fica temporariamente temeroso de dizer qualquer asneira. Quando ouve a resposta: "Aquilo também é cocô de passarinho", ele, ou ela, afasta o medo automático com uma risada. Ele ou ela não foi testado, afinal.

"Por que os bombeiros usam suspensórios vermelhos?" E "Por que enterraram George Washington na encosta de uma colina?" E assim por diante.

É verdade, existem piadas sem graça, o que Freud chamava de humor de cadafalso. Existem situações tão sem esperança que nenhum alívio é imaginável.

Enquanto éramos bombardeados em Dresden, sentados num porão com os braços sobre as cabeças para nos proteger do teto que podia ruir, um soldado disse, como a condessa de uma mansão numa noite fria e chuvosa: "Fico pensando no que os pobres estarão fazendo esta noite." Ninguém riu, mas, mesmo assim, ficamos contentes que ele tivesse dito aquilo. Pelo menos ainda estávamos vivos! E ele era prova disso.

2

Sabem o que é um twerp? Quando eu freqüentava a Escola Secundária Shortridge em Indianápolis, há 65 anos, um twerp era um cara que enfiava uma dentadura falsa no rabo e arrancava com ela os botões dos assentos traseiros dos táxis. (E um snarf era um cara que farejava os selins das bicicletas das garotas.)

Considero um twerp qualquer um que não tenha lido o maior conto americano, que é "Um acontecimento na ponte de Owl Creek", de Ambrose Bierce. Não é nem remotamente político. É um exemplo impecável do gênio americano, como "Sophisticated Lady" de Duke Ellington ou a estufa de Franklin.

Considero um twerp qualquer um que não tenha lido A democracia na América, de Alexis de Tocqueville. Não pode haver melhor livro sobre as forças e vulnerabilidades inerentes à nossa forma de governo.

Querem um gostinho daquele grande livro? Ele diz, e isso foi há 169 anos, que em nenhum outro país além do nosso o amor ao dinheiro se arraigou mais nas afeições dos homens. Certo?

O escritor franco-argelino Albert Camus, que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1957, escreveu: "Só existe um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio."

Aí está outro acesso de gargalhadas da literatura. Camus morreu num desastre de automóvel. Suas datas? 1913-1960 d.C.

Já se deram conta de que toda grande literatura — Moby Dick, As aventuras de Huckleberry Finn, Adeus às armas, A letra escarlate, A glória de um covarde, A Ilíada e A Odisséia, Crime e castigo, a Bíblia e "A carga da brigada ligeira" — fala da merda que é pertencer à espécie humana? (E não é um grande alívio ouvir alguém dizer isso?)

A evolução pode ir para o inferno, no que me toca. Que erro nós somos. Ferimos mortalmente este doce planeta, sustentáculo da vida — o único em toda a Via Láctea —, com um século de orgia dos transportes. Nosso governo está em guerra contra as drogas, não é? Por que não investe contra o petróleo? Não existe barato mais destrutivo! Você coloca um pouco desta droga no seu carro e pode correr a mais de cem por hora, atropelar o cachorro do vizinho e estraçalhar toda a atmosfera. Deixa para lá, enquanto formos o tal do homo sapiens, por que nos preocuparmos? Vamos arrebentar todo este barraco. Alguém aí tem uma bomba atômica? Quem não tem uma bomba atômica hoje em dia?

Mas tenho algo a dizer em defesa da humanidade: não importa a era da história, incluindo os tempos do Jardim do Éden, todo mundo é recém-chegado. E, excetuando o Jardim do Éden, já havia todos estes jogos em andamento que o podiam levar a agir como louco, embora para começo de conversa você não fosse louco. Alguns dos jogos de loucura de hoje são amor e ódio, liberalismo e conservadorismo, automóveis e cartões de crédito, golfe e basquete feminino.

Pertenço ao povo dos Grandes Lagos da América, um povo da água doce, um povo que não é oceânico, mas continental. Sempre que vou nadar num oceano, sinto-me como se estivesse nadando em sopa de galinha.

Como eu, muitos socialistas americanos eram gente da água doce. A maioria dos americanos não sabe o que os socialistas fizeram durante a primeira metade do século passado com a arte, com a eloqüência, com os dons de organização, para elevar o amor-próprio, a dignidade e o tino político dos assalariados americanos, de nossa classe operária.

Que os assalariados, sem posição social, educação superior ou riqueza sejam de intelecto inferior é seguramente desmentido pelo fato de que dois de nossos mais esplêndidos escritores e oradores que tocaram os assuntos mais profundos na história americana eram trabalhadores autodidatas. Estou falando, naturalmente, de Carl Sandburg, o poeta de Illinois, e de Abraham Lincoln, do Kentucky, depois de Indiana e finalmente de Illinois. Ambos, permitam-me dizer, eram pessoas continentais, da água doce, como eu. Outra pessoa da água doce e esplêndido orador foi Eugene Victor Debs, um ex-foguista de locomotiva nascido numa família de classe média em Terre Haute, Indiana.

Hurra para o nosso time!

"Socialismo" não é uma palavra mais maligna do que "cristianismo". O socialismo não prescreveu Josef Stalin, sua polícia secreta e o fechamento de igrejas mais do que o cristianismo prescreveu a Inquisição espanhola. Cristianismo e socialismo, ambos, prescreveram uma sociedade dedicada à proposição de que todos os homens, mulheres e crianças são criados em condições de igualdade e não passarão fome.

Adolf Hitler, a propósito, oferecia uma promoção casada. Batizou seu partido de Nacional-Socialista, os Nazis. A suástica de Hitler não era um símbolo pagão, como muitas pessoas acreditam. Era uma cruz cristã de trabalhador, feita de machados, de ferramentas.

Quanto às igrejas fechadas por Stalin e aquelas fechadas na China de hoje: tal supressão da religião foi supostamente justificada pela afirmação de Karl Marx de que "a religião é o ópio do povo". Marx disse isso em 1844, quando o ópio e derivados do ópio eram os únicos analgésicos eficazes que uma pessoa podia tomar. O próprio Marx os havia tomado. E ficara agradecido pelo alívio temporário que lhe deram. Estava simplesmente observando, e certamente não condenando, o fato de que a religião também podia ser confortadora para pessoas em dificuldades econômicas ou sociais. Era um truísmo casual, não um ditame.

Quando Marx escreveu estas palavras, a propósito, ainda não tínhamos sequer libertado nossos escravos. Qual dos dois vocês imaginam que era mais bem visto aos olhos de um Deus misericor-dioso na época, Karl Marx ou os Estados Unidos da América?

Stalin ficou feliz em assumir o truísmo de Marx como um decreto e os tiranos chineses também, uma vez que aparentemente ele os fortalecia para tirarem de ação pregadores que poderiam falar mal deles ou de suas metas.

A afirmação também habilitou muitos neste país a dizer que os socialistas são contra a religião, contra Deus e portanto absolutamente revoltantes.

Nunca me encontrei com Carl Sandburg ou Eugene Victor Debs e desejava tê-los conhecido. Ficaria sem fala na presença de tais tesouros nacionais.

Conheci um socialista da geração deles — Powers Hapgood, de Indianápolis. Era um típico idealista de Indiana. O socialismo é idealístico. Hapgood, como Debs, era uma pessoa da classe média que achava que poderia haver mais justiça econômica neste país. Queria um país melhor, apenas isso.

Depois de se formar em Harvard, foi trabalhar como mineiro de carvão, incitando seus irmãos operários a se organizarem a fim de conseguirem melhores salários e condições de trabalho. Também liderou um grupo de pessoas que protestava contra a execução dos anarquistas Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti em Massachusetts, em 1927.

A família de Hapgood era dona de uma fábrica de enlatados bem-sucedida em Indianápolis, e quando Powers Hapgood a herdou, ele a entregou aos empregados, que a arruinaram.

Nos conhecemos em Indianápolis no final da Segunda Guerra Mundial. Ele tinha se tornado um delegado do Congresso das Organizações Industriais. Houvera alguma confusão no piquete, e ele prestava depoimento a respeito disso no tribunal, quando o juiz parou tudo e lhe perguntou: "Sr. Hapgood, aqui está, um diplomado de Harvard. Por que alguém com as suas vantagens escolheria viver como vive?" Hapgood respondeu ao juiz: "Ora, por causa do Sermão da Montanha, senhor."

E de novo: hurra para o nosso time.

Sou de uma família de artistas. Aqui estou, ganhando a vida com as artes. Não foi uma rebelião. É como se eu tivesse herdado o posto Esso da família. Meus ancestrais pertenciam todos às artes, por isso estou simplesmente ganhando a vida do modo costumeiro da família.

Mas meu pai, que era pintor e arquiteto, foi tão prejudicado pela Depressão, quando ficou incapacitado de se sustentar, que achou que eu não devia ter nada a ver com as artes. Avisou-me para ficar longe das artes porque verificara que elas eram uma maneira muito inútil de fazer dinheiro. Disse que eu devia ir para a universidade somente se estudasse algo sério, algo prático.

Como universitário em Cornell, escolhi química como disciplina principal porque meu irmão era um figurão no ramo farmacêutico. Os críticos julgam que não se pode ser um artista sério e ter também uma educação técnica, coisa que eu tinha. Sei que é hábito dos departamentos de língua e literatura inglesa nas universidades, sem saber o que estão fazendo, estimularem o horror ao departamento de engenharia, ao departamento de física e ao departamento de química. E esta ojeriza, eu receio, é repassada em suas críticas. A maioria dos nossos críticos é produto dos departamentos de língua inglesa e se mostra muito desconfiada em relação a quem quer que demonstre um interesse por tecnologia. Enfim, me formei em química, mas acabo sempre como professor nos departamentos de inglês e, por isso, trouxe um pensamento científico à literatura. Muito pouca gratidão me foi demonstrada por isso.

Tornei-me um "escritor de ficção científica" quando alguém decretou que eu era um escritor de ficção científica. Eu não queria ser classificado como tal, por isso me perguntei de que maneira eu havia ofendido as regras para não merecer o crédito de escritor sério. Decidi que era porque eu escrevia sobre tecnologia, e os melhores escritores americanos nada sabem sobre tecnologia. Fui classificado como escritor de ficção científica simplesmente porque escrevi sobre Schenectady, Nova York. Meu primeiro livro, Revolução no futuro, era sobre Schenectady. Existem imensas fábricas em Schenectady e nada mais. Eu e meus companheiros éramos engenheiros, físicos, químicos e matemáticos. E, quando escrevi sobre a companhia General Electric e Schenectady, pareceu uma fantasia do futuro para críticos que nunca tinham visto o local.

Acho que os romances que omitem a tecnologia distorcem a vida tanto quanto os vitorianos distorciam a vida omitindo o sexo.

Em 1968, o ano em que escrevi Matadouro 5, finalmente estava maduro o suficiente para escrever sobre o bombardeio de Dresden. Foi o maior massacre na história européia. Eu, naturalmente, sei sobre Auschwitz, mas um massacre é algo súbito, que num tempo muito curto promove a matança de uma enorme quantidade de pessoas. Em Dresden, em 13 de fevereiro de 1945, cerca de 135.000 pessoas foram mortas por bombardeios britânicos em uma noite.

Foi pura insânia, destruição sem sentido. Toda a cidade foi arrasada e queimada e foi uma atrocidade britânica, não americana. Mandaram bombardeiros noturnos que chegaram e puseram toda a cidade em chamas com um novo tipo de bomba incendiária. E assim tudo que era orgânico, exceto meu pequeno grupo de prisioneiros de guerra, foi consumido pelo fogo. Foi uma experiência militar para descobrir se era possível queimar uma cidade inteira espalhando bombas incendiárias sobre ela.

É claro que, como prisioneiros de guerra, nós metemos a mão à procura de alemães mortos, desenterrando-os dos porões, porque eles haviam sufocado ali, e levando-os para uma imensa pira fúnebre. E ouvi dizer — não vi fazerem isto — que desistiram deste processo porque era muito lento e, naturalmente, a cidade começava a cheirar muito mal. Então mandaram sujeitos com lança-chamas.

Por que meus companheiros prisioneiros de guerra e eu não fomos mortos eu não saberia dizer.

Eu era um escritor em 1968. Era um picareta. Escrevia qualquer coisa para ganhar dinheiro, vocês sabem. E, que diabo, eu tinha visto aquela coisa, eu sobrevivera a ela, por isso ia escrever um livro oportunista sobre Dresden. Sabem, do tipo que seria transformado num filme em que Dean Martin, Frank Sinatra e outros desempenhariam o nosso papel. Tentei escrever, mas não conseguia encontrar o jeito certo. Continuava escrevendo merda.

Então fui até a casa de um amigo — Bernie O’Hare, que tinha sido meu camarada. Estávamos tentando lembrar coisas engraçadas do nosso tempo de prisioneiros de guerra em Dresden, papo da pesada e tudo mais, coisas que dariam um filme de guerra bacana. E sua mulher, Mary O’Hare, soltou os cachorros. Ela disse: "Vocês não passavam de bebês na época."

Isso é verdade em relação a soldados. São de fato bebês. Não são astros do cinema. Não são Duke Wayne. Percebendo que aquela era a chave, senti-me finalmente livre para contar a verdade. Éramos crianças e o subtítulo de Matadouro 5 se tornou A cruzada das crianças.

Por que levei 23 anos para escrever sobre o que experimentei em Dresden? Todos voltávamos para casa com histórias, todos queríamos faturar com elas, de um jeito ou de outro. O que Mary O’Hare estava dizendo, com efeito, era: "Por que não conta a verdade, para variar?"

Ernest Hemingway escreveu um conto depois da Primeira Guerra chamado "O lar de um soldado", sobre como era rude perguntar a um soldado o que ele vira quando voltava para casa. Acho que muita gente, eu mesmo, inclusive, perdia a fala quando um civil perguntava sobre o combate, sobre a guerra. Era chique. Uma das maneiras mais impressionantes de contar a sua história de guerra é recusando-se a contá-la, vocês sabem. Os civis teriam então de imaginar todo tipo de atos de bravura.

Mas acho que a Guerra do Vietnã me libertou, e a outros escritores, porque fez nossa liderança e nossos motivos parecerem muito sórdidos e essencialmente estúpidos. Podíamos finalmente falar sobre maldades que praticamos contra as piores pessoas possíveis, os nazistas. E o que eu vi, o que tinha a relatar, fazia a guerra parecer muito feia. Sabem, a verdade pode ser uma coisa realmente poderosa. Não é algo que se espera.

Claro, outra razão para não falar da guerra é que ela é inexprimível.

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