quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Como Vivem os Mortos, de Will Self

Leia trecho do livro

Capítulo Um
Abril de 19881021352_4

Dizem que a gente é o que come e agora que estou morrendo, sei que isso é a pura verdade. Na realidade, não é apenas a pura verdade – é uma verdade gélida também. É também uma realidade molhada, pegajosa, congelada. É um manjar gelatinoso cor-de-rosa de evidência e um mingau pegajoso de prova. É uma confirmação cartilaginosa que incha como um filamento de carne preso entre dentes. Não que eu, entenda bem, ainda tenha meus dentes, já não os tenho há muitos anos, só que recentemente me descobri sonhando com dentes, com a sensação de ter meus próprios dentes. Sonho ter dentes de novo. De qualquer jeito – a gente é o que a gente come: no meu caso, esta lavagem de hospital, que parece ter sido preparada – se é que foi cozida – com o propósito expresso de escorregar por dentro de nós, quase cadáveres, o mais depressa possível.

"Não precisa dar nada além de lavagem para eles", posso até ouvir uma má nutricionista mandona proclamar (engraçado como essa profissão atrai tantas anoréxicas) numa reunião ou numa discussão de caso; "eles já estão comendo metade do orçamento da previdência – isso está certo?" Não, talvez não, mas paguei as porras dos meus impostos, ou pelo menos espero que aquele ridículo homenzinho, o Weintraub, já tenha pago agora.

Um outro aspecto dessa culinária sebosa, claro, é que você nunca arrota. Ou melhor, nem o cheiro dela, nem a substância dela corre o risco de voltar na cara daquelas pobres enfermeiras sobrecarregadas. Coisa boa. Raramente comemos queijo – peixe defumado, nunca. Ovos, cozidos até virar merda. Ovais duros de merda ressecada. Nada de picles. Nada de molhos ricos. Nada de cebolas e, enfaticamente, nada de alho. Não que eu gostasse muito desse tipo de comida quando estava bem, é só que agora, agora que estou morrendo, me dou conta de que essa capacidade que certas comidas apresentam de reaparecer espontaneamente em sua boca, horas depois de terem sido consumidas, é um forte sinal de vida. A vida em sua repetitividade. A vida continuando. Seria capaz de matar para comer algum prato com cebola – agora que sei que definitivamente vou morrer. Depois que tiraram meus dentes, em meados dos anos 60 – 63, 64, estranho não lembrar – achei que fosse virar imortal. Sempre achei que fosse morrer com todos os meus dentes porque eram tão fodidamente doloridos. Qualquer coisa que doesse tanto – eu pensava – mesmo que não matasse você, certamente acabaria com você quando fosse embora. Você morreria de felicidade. Mas agora, com dente ou sem dente, estou morrendo.

Tenho absoluta certeza de que vou morrer porque uma hora e meia atrás, o bondoso Sr. Khan, psicólogo clínico da ala, veio e me contou. Algum sabichão disse uma vez que o milagre da vida era o seguinte: a gente pode morrer a qualquer minuto – mas vive sempre como se fosse imortal. Eu queria poder pegar esse sabichão pela garganta e fazer ele cuspir fora a vida dele. Será que ele fazia alguma idéia de como é o sujeito saber a hora da própria morte? E quando isso é anunciado para você assim: "Ahn... é... Acredito, missis Bloom, que o Dr. Steel falou com a senhora hoje de manhã?"

"Falou, sim." Ponho de lado a bosta da minha revista feminina, mostro minhas gengivas ao nervoso Sr. Khan. Estou sendo uma boa velhinha cancerosa. Tão fácil ser assim quando você não tem pernas. Pernas fazem os homens pensarem em xoxota – mesmo xoxota velha; e ninguém tem pernas na cama – a menos que o homem esteja na cama com você.

"Ele disse alguma coisa sobre paliativos?"

"Sobre me dar paliativos para tomar? Falou, sim, muito obrigada." Ainda estou fazendo cara boa para o Sr. Khan, mas está começando a piorar, porque vamos e venhamos, atitude positiva ou não, é muito difícil perceber o que o inchado Sr. Khan está querendo de fato dizer. Claro, ele aperfeiçoou essa cena de Uriah Heep que o faz parecer tão humilde a seus clientes e empregados, mas meus dentes não são apenas compridos – são eternos, porra! E eu sei que isso esconde um típico filhinho da mamãe subcontinental, um briguento choramingão que oprime as mulheres quando chega em casa depois de um dia duro, falando merda para os que vão morrer.

"Sinto muito não haver mais nada que possamos fazer pela senhora... que eu... possa fazer pela senhora. Tem religião, missis Bloom?"

"Não, não, desculpe."

"Desculpe de quê?" Ele é uma coisa gorda, ele não tem um câncer com fome mastigando os peitos dele, peitos que balançam quase desagradáveis dentro da camisa sintética passada, quase transparente. Por que eles sempre usam camisas transparentes, esses que têm tudo para esconder?

"Desculpe deixar o senhor se iludir que estava me ajudando. Fazendo alguma coisa por mim." E pego a minha revista Woman’s Realm abandonada, volto a ler receitas que nunca farei, nunca, agora com certeza. Aprendendo pontos de tricô na minha cabeça.

Depois que absorvi mais uma receita de panquecas de banana – talvez a duocentésima da minha vida até agora – levanto os olhos e vejo que o Sr. Khan ainda está ali. Tendo falhado o que ele imagina ser uma atitude solidária, e enfrentando a minha recusa, ele adota uma atitude mais científica: "Nós... ou melhor, eu... imagino se a senhora poderia ajudar a nós, então."

"Em quê?" Não dá para acreditar nesse shlemiel.

"Estamos fazendo um estudo – um levantamento com os pacientes... os pacientes terminais" – ele finalmente pôs para fora, aquele "terminal" terminal, jogado como uma cápsula de cianureto dentro da boca da conversa – "suas posições."

"Posições a respeito de quê?" Lá fora, em Grafton Way, dá para ouvir o trânsito zunindo e roncando. Quando dei entrada no hospital dessa vez, para a risível operação (uma caroçoctomia – dá para acreditar que eles realmente usam esse nome? É igual a chamar um transplante de coração de "troca de máquina"), foi um grande alívio sair da cidade, para uma espécie de refúgio, mas agora entendo que não se trata de refúgio nenhum. Devia haver um santuário dentro do hospital, onde os pacientes pudessem se esconder de Khan e sua laia.

"A respeito da, ahn... qualidade de vida." Ele conseguiu botar para fora e está secretamente satisfeito; um sorrisinho ralo cortando o rosto estufado e gordo.

"Vamos ver se entendi direito, o senhor está perguntando para as pessoas que estão morrendo qual é a qualidade de vida delas?"

"Ce-erto, isso mesmo. Temos um formulário... um questionário, se a senhora quiser ver?"

"O que vocês esperam descobrir?" O tom da minha voz começa agudo, mas firme, só que à medida que enuncio as palavras odiosas o tom vai subindo, as palavras se esgarçam, se rompem. "Que a qualidade de vida melhora quanto mais perto da morte chega o paciente de câncer? Ah, meu Jesus Cristo, porra, eu vou morrer. Não agüento, vou morrer. Eu não! Ah meu Deus-meudeus-meudeus-do-céu-meudeus-meud..." E lá vou eu, sufocada na incoerência do terror, a fachada demolida pela marreta dos soluços. Eu gemo, choramingo, grunho, bolhas de saliva saindo da minha boca mole. É um desempenho muito satisfatório, percebo em meio à névoa – para o Sr. Khan. Afinal de contas, ele é um conselheiro dos aflitos profissional – e ali tem muita aflição. Sacos de aflição. Mas não – ele não agüenta, levanta-se e sai na direção do balcão das enfermeiras enquanto eu despedaço a Woman’s Realm, acabo com o jornal Little England, e grito e choro.

Sempre tive talento para a histeria, para ultrapassar a negra borda de um humor, mas esta negra borda é tão maior. É um Niágara, sugando para dentro dela toda a água da minha vida. Sinto-me como deve se sentir a vítima de um ataque cardíaco – metade de meu mundo se foi. Metade daquela jarra plástica de água; metade daquela caixa de Kleenex; metade já meio comida daquela porra daquele bolo Battenberg que a tarada da minha filha me trouxe ontem à tarde; metade daquele lenço de papel amassado; daquele lápis Staedtler HB; daquele grão de poeira. Pela primeira vez na minha vida posso sentir, inteira e incontrovertidamente, o que é não ser eu. Como é ser eu me sentindo não eu.
É tão solitário. Tão fodidamente solitário. Quem haveria de pensar que eu, que levei uma vida que conheceu tanta solidão, tenha agora de encarar a solidão da morte? Sou soluçada por ataques. Ah, meu eu – por que me abandonaste?

A Irmã Smith, uma daquelas mulheres das Índias Ocidentais de grande volume, que pode ter qualquer idade entre trinta e sessenta anos, me larga em meu casulo de plástico com seus braços em arco, como focas que saltam, depois senta-se pesadamente perto dos meus seios mutilados. Já pegou o copo joão-bobo, a cápsula fácil de engolir. "Vamos lá", diz ela – e tomo o Valium. Não tenho nenhum problema com isso; afinal, tomei uma pilha de coisas até agora – por que parar? Nos anos 70, quando eu patrulhava diariamente com o cão de guarda negro da depressão, eu costumava passar pela banca suburbana e vendo aquelas máquinas de vender balas (sabe aquelas – uma moeda de 10 pence por um chiclete e um brinquedinho de plástico) eu imaginava que estavam cheias de Valium de 5, 10, até 20 miligramas. Eu entro e o babaca atrás do balcão – cabelo engomado esticado para trás, fumaça de cigarro na cara toda – fala assim: "Más notícias, missis Yaws, muito más. Bomba em um pub em Guildford, muitos mortos. Cena de terrível carnificina. Matança sem sentido. Indescritível de horror. Inimaginável de mau. Vai querer um Valium com o seu Guardian?"

"Vamos, benzinho", diz a Irmã Smith, "vamos lá."

Gulp! Através da camisola, dá para sentir a palma tingida de amarelo da mão calosa dela. Uma curiosa confusão dos sentidos – e só isso basta para me acalmar, porque é só com negros que eu imagino que sou capaz de sentir a cor deles. Como deve ser a sensação do branco? Um estúpido descoloramento de indiferença, ousaria dizer. Mas os negros – que toco sempre sem querer – dá para sentir o negro, ou amarelo, ou marrom, ou, no caso do velho que eu tentei consolar quando foi atropelado por um carro na frente da John Lewis, na Finchley Road – cinzento. A sensação que ele dava era cinza.

"Devo confessar que o Sr. Khan não é o melhor psicólogo clínico que nós temos aqui no hospital, sabe."

"Eu-eu sei. Acredite – eu sei. Ahmeudeusmeudeusmeudeus..." Gostaria muito de abraçar a Irmã Smith. Ela tem corpo para me abraçar, é grande o bastante para me abraçar. Minha mãe era petite demais para me dar um abraço de verdade desde que eu tinha sete anos – não que ela quisesse me abraçar, tinha medo de amassar o corpete perfeito. E quanto a meu pai – nunca chamei meu pai de Papai; nunca chamei de nada – ele me levantava por baixo dos braços e me balançava, mas só para fingir que ia me largar.

"Ele é bem-intencionado... mas ninguém consegue encontrar as palavras exatas..."

Não, nem as palavras vagas, porra, pelo menos, parece. É, eu gostaria que a Irmã Smith me abraçasse para sentir aquele grande recife de seio dela amparando o meu abalado, decadente... A cinco braças
de profundidade jaz o seu membro amputado… Eu gostava das palmas amarelas das mãos dela nos meus ombros doentios. Devia gostar do cheiro de óleo de coco de sua pele, do condicionador de PH balanceado de seu cabelo crespo, mas isso não seria uma boa idéia.

Estou sentada na varanda da velha casa em Huntingdon, Long Island, que tivemos brevemente durante minha infância. Estou sentada no colo de uma mulher tão sólida quanto a Irmã Smith e tão negra e de cheiro tão doce quanto o dela. O sol está quente, depois fresco, no meu pescoço quando Betty trança meu cabelo louro e comprido. Já naquela época era a minha melhor coisa. Será que ela pode estar fazendo algo tão óbvio quanto cantarolar um hino? Está, está, sim. É uma mulher religiosa – embora, quando estava limpando a casa, cantasse era blues. "Titanic Man" no banheiro, "St. Louis" na cozinha. Está fazendo uma trança embutida no meu cabelo, sobe, desce, cruza. Padaria capilar. E enquanto ela trança eu a beijo. Os beijos mais macios e leves em seu pescoço e nas clavículas que surgem debaixo do vestido de andar em casa. Estou sendo escrupulosa com esses beijos, são realmente beijos de ar, perturbações da atmosfera imediatamente acima de Betty, porque sei – ou acho que sei – que isso a irrita. Mas quero beijar Betty porque a amo. Não, não a amo – ela é o meu mundo. Como todo adulto amoroso que cuida de crianças pequenas, ela definiu o próprio mundo para mim. Meu mundo é Betty – não a Terra. As coisas podem ser assimiladas na medida em que elas se amoldam – ou divergem – dessa bettydade.

Sim, estou beijando Betty e cheirando Betty e até, sutilmente, esfregando entre o polegar e o indicador um pedaço do velho vestido de andar em casa de Betty – porque ela é o meu lençol de segurança também – quando sou arrancada dela e depositada com dureza no piso de madeira. "Menina ruim! Ruim, ruim, menina ruim! Nunca mais faça isso. Nunca. Está me entendendo? Está?" Uma bofetada no meu rosto minúsculo, e outra, depois uma terceira. Minha mãe me esbofeteava do jeito que atores britânicos representando oficiais da Gestapo anos depois esbofeteariam suas vítimas de interrogatório – só que não estava fingindo. O anel de brilhante dela tirava sangue de mim e passou a ser o pior inimigo desta menininha. Era tão fora de proporção – a colossal violência dessa mulher loura e petite – que a própria Betty ficou atordoada, meio levantando da velha cadeira de balanço, o rosto igual a uma caricatura racista de menestrel perplexidade.

Nunca mais beijei Betty. Ela ficou conosco até eu completar 15 anos – mas nunca mais a toquei. Conversávamos, eu me abria em confidências e ela me apoiava – mas nós duas sabíamos que nunca mais poderíamos nos tocar; que para mim a carne negra era um anátema. Uma substância má. Não consigo tocar gente negra – a menos que seja obrigada. Como é injusto eles terem de me tocar. Espero estar inconsciente quando acontecer. Me vejo perguntando à Irmã Smith: "Eu vou saber quando morrer?"

"Quietinha." A Irmã Smith levanta a mão e alisa os restos de meu cabelo – mulher negra, cabelo louro, minha vida inteira envolta nessa trama – mas recua quando sente que endureço o corpo. "Sabe duma coisa, não está sendo boa para si mesma, menina – Lily. O Dr. Steel, ele tem boa intenção, mas ele... como é que eu vou dizer?... ele é muito técnico com essas coisas. Não explica muito bem – ele falou o que vai acontecer com você?"

"Disse que dessa vez não conseguiram tirar o tumor inteiro, que tinha hipo... hipo..."

"Hipostasiado, é, tudo bem, quer dizer que espalhou, entende?"

"Bom... que a gente podia continuar com a químio, com a radioterapia, com um xamã dançando se eu quisesse, mas que ele achava... achava que..."

"Que não tinha mais por quê. Que era melhor aceitar e morrer com um pouco de dignidade – ele disse isso?"

"Disse."

"Bom, ele merece confiança nisso aí, mas não tem fé, sabe, ele não tem um salvador, então não tem como se consolar... coitado."

Salvador. Foi o que bastou. A Irmã Smith é sem dúvida uma das rochas sobre as quais a Igreja está construída. Embora no caso dela seja provavelmente uma capelinha revivalista. Posso até ver o prediozinho na minha cabeça, sacudindo com a Irmã Smith e as irmãs dela martelando o gospel. Vejo agora o que devia ter visto antes – que enfiado no rego marrom entre os seios dela há um crucifixo dourado. Me ocorre que o salvador dela deve ser pequenininho – talvez porque minha voz sardônica será a última a se calar – se essa cruz é o bastante para pregá-lo. "Obrigada, Irmã – mas não sou religiosa." Talvez seja a coisa mais fraterna que eu disse em anos – que é o tempo que faz que não tenho razões para agradecer a mim mesma.

"Tudo bem, missis Bloom, Nosso Senhor tem um lugar especial para os israelitas, sabe..."

"Não sou judia, Irmã."

"Desculpe – pensei... por causa do nome..." Ela queria dizer o nariz – como todo mundo.

"Fui casada com o Sr. Bloom durante algum tempo." A dissimulação vem bem fácil – uma vez que ela cometeu o deslize inicial. "Não, não sou religiosa – não acredito numa vida depois da vida, não acredito num Papaizão Aconchegante, disposto a me arrebatar para o Céu. Quando morrer – eu vou é apodrecer. Só isso, Irmã – só isso."

Por um segundo, sinto orgulho dessa bravata, mas aí ela diz assim: "Sabe, missis Bloom, nem todo o simbolismo esotérico do cristianismo deve ser tomado literalmente. Posso entender que a senhora não queira falar com o ministro, mas mister Khan..."

"Mister Khan que se foda."

"Missis Bloom..."

"Ele que se foda, que se foda, não quero falar com ele – não quero falar com ninguém..." E lá fui eu de novo; a tampinha de orgulho estourou da minha garganta e um grande jorro espumante de autopiedade borbulha para fora numa série espasmódica de regurgitos, gritos de gaivota, lágrimas e depois globos de bile branca que fizeram a pregadora fundamentalista pegar uma tigela de papelão em forma de rim. Por que fazer essas bandejas em forma de rim – por que não um coração, um pulmão, um seio removido?

Ela me deixa depois de me ameaçar com o frio Steel, e volto para o pesadelo memento mori que está morrendo. Metade de tudo foi embora – a pele descascada e o crânio das coisas finalmente, irrevogavelmente, exposto à vista. Estou tão chocada. Vocês não acreditam que eu estava sentindo o caroço fazia dois anos já, que eu estava tão familiarizada com ele que cheguei a lhe dar um apelido carinhoso. Minxie, eu o chamei – porque aquela bolotinha ia me aniquilar – a putinha. É, dois anos de apelido carinhoso, e então o amigo afiado do Steel cortou Minxie fora. Mas quando tirei os pontos de baixo do seio e tive coragem de me examinar, descobri que Minxie ainda estava lá e maior do que nunca. Acho.

Antes de saber que eu estava com câncer eu tinha verdadeiro horror de morrer disso. Morrer como a minha mãezinha mesquinha, encolhida pela doença até virar um cadáver cinzento chiando, literalmente uma múmia. Todo mundo com quem eu falava, tudo o que eu lia, para todo lugar que eu me voltava, ouvia dizer que fumar provoca câncer – mas não conseguia parar. Não conseguia parar, não conseguia parar, não conseguia parar. Não conseguia parar, porra. Não conseguia parar nem quando sentia os pulmões como se estivessem cheios de napalm – era isso que eu sentia. Estavam napalmando os vietcongues – e eu estava napalmando meus pulmões com Camel, Winston, Marlboro, até com – quando eu estava desesperada de verdade – cigarros britânicos, com baganas inglesas. Estavam jogando Agente Laranja nas florestas – e eu sentia que estava tossindo aquela merda.

A Dra. Bridge, uma das queridinhas perenes de meu segundo marido. Uma coisa seca. Devia sair poeira quando eles se pegavam – o Yaws já era por si só uma vara seca. Uma merda seca. Qualquer merda seca na sarjeta – isso era David Yaws. Passa-se por ele em qualquer quarteirão da cidade. Quisera eu ter passado. Seja como for, essa Bridge – Virginia Bridge, nada mais, nada menos –, ela estacionava aquele Morris Traveller dela ridiculamente bem-cuidado, um carrinho idiota metade de madeira para combinar com a sua idiota casinha metade de madeira, e aparecia no quarto onde eu estava deitada me afogando no meu próprio catarro. Ela então me auscultava com aquelas mãos tratadas com creme Atrixo, e falava comigo com aquele sotaque inglês seco dela, dizia: "Lily, sinceramente, se me permite, como você quer que eu continue tratando a sua bronquite crônica se não está disposta a parar de fumar? Quer dizer, você não é nenhuma ignorante..."

Eu não conseguia ouvi-la falando. Estava com febre, estava com dor – e ela queria era se esfregar no meu marido. Será que veio até a minha casa para especular, além de usar o espéculo? Especular o que Yaws e eu fazíamos juntos? Imaginando Yaws e minhas filhas como versões possíveis dos filhos que ela podia ter tido com ele? Não posso acreditar. O marido dela era paralítico. Paralisado da cintura para baixo. Sorte de Virginia não ser da cintura para cima. Enfim, eu deitada lá, enquanto clipes de documentário em preto-e-branco da época mostrando babuínos com máscaras presas ao focinho, forçando-os a fumar, rodavam no fundo dos meus olhos. Pare de fumar. Eu não conseguia – preferia morrer. O cigarro era o melhor amigo que eu jamais tive. Mais confiável que bebida, confortador – sem engordar. Preferia morrer.

Como os dentes, porém – eu tinha um fatídico relacionamento com os malfadados Luckys. Mais que isso, quando olhava para os dentes eqüinos de Virginia (como ela conseguia manter limpas aquelas cavilhas de barraca?), me ocorreu que não precisava ser a minha vida correndo perigo, podia ser a vida de qualquer outra pessoa. Como Virginia. Eu fechava os olhos ainda mais forte – "... é uma dependência como outra qualquer, Lily, vai levar alguns dias ainda..." – e desejava que Virginia Bridge morresse: Ah, Grande Espírito Branco, se eu parar de fumar poderia levar essa mulher em meu lugar? Sim, ele podia. Ela morreu uns dois anos depois apenas, e vou dizer uma coisa, fiquei seriamente tentada a fumar de novo. Brincadeira. A essa altura, eu estava com a ansiedade ainda pior. Todo ano, ao longo de toda a década de 70, surgiam mais e mais provas contra o fumo. Eu sentia que a minha vida inteira estava me levando para um cruzamento, com a Morte correndo pela rua principal, nós duas em rota de colisão. Realmente, não me senti nada melhor quando parei. Eu tinha dentro de mim uma rodovia inteira de alcatrão para tossir quando compreendi que tinha fumado tanto que o mais provável era que já fosse tarde demais. Foi na época depois da maldita cicuta. Comecei a me referir a qualquer discussão sobre câncer como "uma profecia que se autocumpre".

Mas um cigarro ia ser bom agora. Bem aqui nesta ala anti-séptica. Fumaça azul combina bem com lençóis brancos. Podemos viver vidas de série de tevê, de música leve, mas toda mulher tem o direito de morrer como Bette Davis.

Uma profecia que se autocumpre. Frase bonita, sonora, essa – eu sempre fui boa de frases. Minha formação era de designer, não que eu tenha desenhado nada de muita importância a não ser a tampa para uma caneta que desde então já foi chupada por um bilhão de bocas. Era uma tampa especial – as bocas eram genéricas. É assim que eu vejo. Mesmo assim, o exercício do design é uma profecia que se autocumpre – se se faz direito. Mas o negócio dessa específica profecia que se auto-cumpre – morrer de câncer – era que a própria articulação da profecia tendia a induzir ansiedade cancerosa. Toda vez que eu dizia isso, sabia que seria verdade. A profecia que se autocumpre era ela própria uma profecia que se autocumpre. Mesmo assim, foi uma surpresa o meu diagnóstico – engraçado, né? Muito divertido.

Eu também dizia para as meninas, que cresceram com os meus humores sombrios: "Pelo menos podemos nos sentir horríveis em um lugar bom." (Horríveis porque o pai delas nos deixou; horríveis porque ele não havia pago as contas do condomínio de forma que não tínhamos calefação, nem luz elétrica, nem telefone; horríveis porque eu não conseguia parar de chorar; horríveis porque eu não conseguia encontrar minhas chaves.) Pelo menos podemos nos sentir horríveis em um lugar bom – ha! Que idiota eu era – inverti tudo; devia ter dito se sentir bem em um lugar horrível – esse teria sido o jeito certo de levar a coisa. Talvez se eu tivesse me concentrado em fazer isso, eu não me encontrasse tão fodidamente desprovida de estoicismo agora, tão apavorada com esta dor, tão tomada por esta náusea.

Eles me dão remédios para a náusea – mas me sinto mal com os remédios. Quem sabe vão me dar mais ainda. É – isso resolveria tudo. Vão me encher de pílulas até eu me ver enfiando umas na boca ao mesmo tempo que cuspo outras. Ha-ha. Lá vem o Dr. Steel, tropeçando no linóleo enrolado, entre os esquifes móveis. Está de jaleco branco que embora amorosamente lavado e passado (pela Sra. Steel?) foi dobrado erradamente, de forma que o algodão grosso forma uma série de placas quadradas, rígidas. Faz com que ele fique parecendo um capote tabardo esquisito. São Jorge se esgueirando pela ala para combater o dragão do tumor... "Olá, doutor."

"Missis Bloom, suas filhas estão aqui para ver a senhora."

"Ah, ótimo."

"As duas." Fico pensando qual das duas ele reprova tanto – qualquer das duas merecia isso. "Mas antes de elas entrarem queria trocar uma palavrinha com a senhora sobre o futuro."

"O senhor quer dizer a falta de futuro – para mim."

"Olhe, eu sei que não me expressei muito bem esta manhã, temo que esse lado das coisas não seja o meu forte..." Não, eu também acho que não mesmo. Acho que Steel é um daqueles médicos que clinicam porque adoram a doença, não o paciente. É, ele adora a doença. Gosta de olhar as lâminas do microscópio que mostram fatias cortadas de cânceres interessantes. Gosta das cores surpreendentemente vívidas e das volutas complexas do tecido. Na verdade, em seus momentos mais reflexivos, ele é sujeito a filosofar sobre a natureza do câncer. Ele discorre sobre o fato de o câncer ter sido desconhecido no mundo antigo, de ele aparentemente ter surgido ao mesmo tempo que a própria razão humana emergiu das trevas. Depois de umas doses de bom single malt, ele provavelmente arriscará afirmar que a morfologia peculiar de certos cânceres pode ser uma função do seu ser, na realidade, pequenos modelos celulares de um universo copernicano em si! "...nunca é fácil dizer para uma pessoa que não podemos fazer mais nada."

"Sinto muito pelo senhor – sinto mesmo."

"Missis Bloom – isso não ajuda nada. A senhora pode ficar aqui no hospital se quiser – embora eu saiba tão bem como a senhora que esse leito é necessário. Ou, como me disse o Sr. Khan, haveria um leito disponível para a senhora no St. Barnabas..."

"O abrigo?"

"É, o abrigo."

"Em Muswell Hill?"

"Acredito que sim."

"Eu não vou morrer em Muswell Hill – eu não iria nem às compras em Muswell Hill. Quero ir para casa."

"Ou a senhora pode ir para casa. Suas filhas podem cuidar da senhora? A senhora sabe que precisa de cuidados 24 horas?" Ou, ou, ou – mas veja bem: não pode ser de outra forma.

"Uma delas pode, sim."

"Seria a Charlotte, não?"

"Não consigo ver Natasha organizando nada – não acha?"

"Ahn, não, talvez não." Ele está escrevendo alguma coisa em uma prancheta com uma Bic Escrita Fina, juntando as placas do virginal tabardo à sua volta. Está lindamente barbeado, o Dr. Steel, maravilhosamente bem-cuidado. Quando ele ficar com câncer – e há de ficar, no fim, isso é uma profecia que se autocumpre – será um câncer bem organizado, um tumorzinho minúsculo no cérebro que simplesmente empurrará uma artéria vital, como um interruptor de luz, para desligá-lo. Deixando suas roupas muito bem passadas e seu corpo imaculado.

Ele foi embora? As pessoas vivem fazendo isso agora – não se despedem de mim, simplesmente vão embora. Acho que pensam que toda conversa comigo agora é intrinsecamente um discurso de despedida – não precisa se despedir da morcega velha, essa já foi. E é verdade – eu me sinto mesmo distante. Me sinto distante como me sentia nos meses de gravidez hidrópica que levaram a David, Charlotte e Natasha. Naquela época, achei esquisito – eu parecer ausente de mim mesma enquanto esses hóspedes tão importantes estavam chegando para a festa da vida –, mas agora vejo que está tudo ligado, há um arranjo compensatório – chegadas e partidas. Vida terminal.

Acho que devo ter deslizado para a inconsciência durante alguns minutos, porque quando as meninas chegaram elas me acordaram com seus beijinhos.

"Não me importo de dar o dinheiro para você – só não quero ouvir nenhuma bobagem sobre empréstimo."

"Mas eu vou pagar." Essa vozinha lisonjeira é naturalmente sonora e bonita.

"Não vai, não, você nunca paga." Esse tom maduro e razoável é estrangulado pela classe.

"Eu pago – estou arrumando um emprego." Essa macaquice é tão errada.

"Emprego? Você?" Essa altivez é inteiramente crível.

"Com os cachorros – Hackney Dogs." Hackney – como isso é absolutamente inadequado para esta, esta...

...visão de uma coisa. Ela é linda mesmo – a minha Natasha. Devia estar de luvas brancas até os cotovelos, escrevendo em seu carnê de dança com uma lapiseira de prata. Em vez disso, está com as mangas do cardigã de cashmere preto puxadas até os pulsos. Gostaria que ela se picasse na sola dos pés. O cabelo preto parece que foi cortado com tesoura de jardim. Os olhos azuis estão pintados de preto em volta, escondendo círculos ainda mais pretos. Está drogada – claro. As pupilas, pontos murchos nas íris fatigadas. Ela é uns 2 ou 3 centímetros mais alta do que eu era – quase 1,80 metro, acho –, mas Natasha é magra como um cabide. A última vez que a vi nua dava para contar suas costelas. Deviam ter feito a porra da mastectomia era nela – não ia nem notar. Mesmo assim, tira partido da cara bonita, a minha caçula. Da cara e do charme. Como alguém com uma boca tão generosa pode ser tão mesquinha? Mas não importa, porque dar não é a função de Natty nesta vida – ela recebe. Ela é capaz de arrebatar o coração de qualquer homem, ou a carteira, e, nos dias de hoje, os cartões de crédito e o telefone celular também. É, imagino se é essa capacidade que ela tem – de solicitar a resposta "sim" antes mesmo de fazer a pergunta – que a torna tão incapaz de resistir a suas próprias vozes interiores, a seus próprios demônios fascinantes. "Quer um pouco de heroína, Natty?", perguntam para ela; e ela responde "Claro, como não?" Ela diz que é pintora – e é verdade que foi à escola de belas-artes. Infelizmente, não está tão bem de vida que possa ser uma daquelas moças que pintam, então tem de ser uma mulher que borra as paredes. Estava fazendo um "Muriel" – é assim que ela pronuncia mural – para um centro comunitário, mas a julgar pela conversa isso já ficou para trás.

"Os cachorros, que bom", diz Charlotte. "Vai ser fácil para você chegar lá, já conhece o caminho."

"Ah, vá se foder, sua vaca materialista. Se não quiser me emprestar vinte libras – não empreste. Gaste no pedicuro, ou no massagista. Vá lavar essa sua bunda burguesa no Sanctuary para ver se eu dou a mínima, porra."

"Vinte libras é muito dinheiro." Como é típico de Charlotte dizer "vinte libras" desse jeito. Seca. Ela sabe o valor das palavras que são dinheiro. Levanto uma pálpebra para olhar as duas. Natty está de pé ao lado da tripla janela gótica caindo aos pedaços com seus arcos pontudos. Minha cama fica apartada – eu estou aparvalhada. Combina com ela – a combinação de sujeira e eclesiástico. É fácil imaginá-la como a Madona do grunge. Charlotte tomou o lugar do Dr. Steel na cadeira ao lado da mesa-de-cabeceira. Ela trouxe flores e uma garrafa de barley water. Pedi a ela a barley water ontem à tarde quando isso era o que eu mais queria no mundo; mais que a luz, mais que a vida, mais que amor. Isso foi ontem à tarde – agora eu preferia vomitar de novo a tomar aquela meleca.

É um pouco como Charlotte, a barley water – ambas são coisas pelas quais a espera sobrepuja em muito a realidade. Não, pior que isso – ambas são coisas que a gente só deseja quando não estão lá. Charlotte é uma dessas mulheres – ela é uma mulher, não uma garota, embora tenha apenas trinta anos contra os 27 em que Natty parou – que tomam para si o encargo de maximizar o que a natureza lhes deu. É uma coisa protuberante, grande, loura, como eu. Às vezes, me lembra tanto a falta de jeito de minha própria juventude, que mal posso agüentar. É, ela parece comigo: 1,75 metro, carregando ao menos 68 quilos; grande, peitos dirigíveis, ainda firmes; quadril alto; cabelo farto. Uma mulher loura, grande, sem grilos. Ela seria capaz de se virar bem – como eu fiz – mesmo com o nariz, mas ela não tem o nariz, não esta quilha proeminente que me guiou pelos mares da vida. Ah, não. Onde a quilha devia estar fincada está a bolhazinha do pai dela, o nariz de botão de David Yaws. "Retroussé", a mãe dele costumava dizer. "De porco é o que você quer dizer", eu retrucava.

Então, ela tem o nariz de Yaws e o resto da cara também. Em momentos assim, quando olho para ela, me parece que um instantâneo da cara de Yaws foi grudado com fita durex na cara dela. Pode parecer errado da minha parte desgostar de minha filha mais velha por causa da grande semelhança com o pai dela, mas, que diabo!, é assim. Que outras razões eu tenho para desgostar dela? O fato de ela ter tomado o lugar do irmão que morreu antes de ela nascer? É – isso seria bom também. E o fato de ela ser precisa, organizada e eficiente – essas coisas todas que eu nunca consegui ser. Mmm – são complementares, eu diria. Pobre Charlotte, com sua cara de meia-idade, de classe média, quintessência do que há de inglês, toda franzida num esforço de lidar ao mesmo tempo com a irmã junky e a mãe moribunda. Sorte dela poder contar com o Sr. Elvers. Não que o marido dela esteja em evidência – ele deve estar na sala de espera usando o telefone público ou o celular, ou debruçado na janela para poder gritar ordens para os transeuntes na rua. Ele, o nosso Sr. Elvers, é comunicativo.

"Ela está acordada, Natty, fique quieta agora."

"Eu não disse nada..."

"Shhh!"

"Meninas? São as minhas meninas?"

"Estamos aqui, mãe." Charlotte se inclina e pega minhas mãos, inchadas de artrite, nas mãos dela – inchadas apenas.

"É você, Charlie?" Estou enfiando nisto tanta sinceridade quanto posso.

"Sou eu, mãe, eu mesma."

"Então por que está com uma foto da porra do seu pai grudada na cara?"

Charlotte recua, Natty ri. "Tudo bem aí, Mumu? Fazendo piada ainda, é?" Ela se inclina e planta um beijo em minha boca que mais parece um soco.

"Mãe!", Charlie exclama – ela sempre preferiu encarar o meu ódio por sua paternidade como uma representação perversa. "O Dr. Steel teve uma conversa conosco." E agora sei que a brincadeira acabou. Enquanto eram só os médicos, as enfermeiras, o Sr. Khan que sabiam, podia não ser verdade. Era um fato incômodo, mas implausível – ser eliminada em uma bandeja de papelão em forma de rim. Mas agora Charlie sabe, a eficiente Charlie, bom – é como se os meus ossos já estivessem sendo pulverizados naquele crematório. Aposto que enquanto Steel e ela conversavam, ela tomava notas no Filofax, usando títulos bem sublinhados: Atestado de óbito; Funerária; Enterro. Tudo limpo e espanado – essa é a Charlie.

"Natty-watty."

"Mumu."

"Filhinha." Abro os braços e de alguma forma ela consegue aninhar seus quase 1,83 metro em meu abraço. Dá para sentir o cheiro da hena em seu cabelo e sentir a aspereza dela contra meu rosto macilento, mas ela é gostosa, como meu bebê. Quando ela é bebezinho para mim – sou também para ela. É assim com os filhos mais novos – durante a vida inteira eles fazem a pessoa se sentir a mais nova. Não consigo nunca ver nada de David Yaws nela.

"Quer ir pra casinha, quer, Mumu?"

"É uma merda aqui, Natty – a comida é uma merda, a decoração é uma merda; e, meu bem – as pessoas."

"Vá para casa, Mumu. Eu vou junto e cuido de você, prometo."

"Pensei que você tinha arrumado um emprego novo", diz Charlotte.

Natasha recua.

"Arrumei – mas o que é mais importante, hã? Ganhar dinheiro ou cuidar da mãe que está morrendo, hein? Não – não responda."

"Temos de pensar no lado prático" – Charlotte nasceu para dizer coisas assim. "Mamãe vai precisar de cuidados especializados. Achei que ia querer voltar para o apartamento, mãe, então Richard está providenciando uma enfermeira e mandei Molly ir lá fazer a limpeza – tudo bem?"

"Acho que sim." Acho que sim só porque Molly – a factótum filipina de Charlie e Richard – encara a limpeza diferente de mim.

"Ora, mãe – você não pode ficar doente numa casa bagunçada."

"Estive doente lá esses últimos dois anos; o que você quer dizer é que eu não posso morrer numa casa bagunçada. Vá em frente, diga. Bagunçada-bagunçada-bagunçada. Morrer-morrer-morrer."

"Ma-mãe!" As duas dizem em coro; e ambas combinam nisso: a contínua necessidade de cuidar da mamãezinha, de repreender a mamãezinha. O que vão fazer quando eu for embora? Não vai sobrar nem isso para aproximar as duas.

Mas é bom manter a pose desdenhosa, indiferente, cínica – mantém o medo sob controle. Não quero despencar na frente delas, não agora. Vai ter muito tempo para isso depois.

"A Dra. Bowen – a encarregada-chefe – ela vai liberar você agora."

"Não vai ser a primeira vez."

"Como é?"

"Ela já teve de me liberar de muitas coisas recentemente."

"Ah, mãe, por favor!" Eu estou realmente muito, muito, muito cansada e cheia de ouvir esse "por favor". Realmente valeria a pena lutar pela minha vida se eu tivesse certeza de que depois de queimarem o que me resta de cabelo com a radiação e me envenenarem com as drogas, ninguém nunca mais me dissesse "por favor" nesse tom dentro do meu campo de audição. Mas Natty não diz "por favor" – ela nunca é tão grossa. Em vez disso, ela ri. É uma alma terrena, a minha Natty. Ela peida e ri. Veja você, lavada, arrumada, vestida e calçada, Natasha parece cagar sorvete de chocolate; enquanto a pobre Charlie nunca tem a aparência que acha que tem. "Richard vai ficar mais um pouco e vai levar você – está com a Mercedes."

"Ah, bom."

"Eu vou também, Mumu. Vou fazer para você o seu prato favorito assim que a gente chegar lá."

"Bolo de chocolate com cobertura dupla." E enquanto eu afundo de volta nos travesseiros (por falar nisso, uma coisa boa nos hospitais britânicos modernos – travesseiros bons, grandes, limpos, macios; se não fossem os travesseiros, este lugar seria a pensão da alma), as duas começam a juntar o patético recheio da minha mala, sachês de xampu, livros, revistas femininas e roupa de baixo. A minha vida inteira a roupa de baixo me incomodou – logo, afinal, estarei livre dela. A Mortalha Playtex – separa você da vida, leva você para o Céu.

Claro que nos anos 60, quando as meninas eram menores, eu ainda usava meia-calça e cinta, ou meia e cinta, ou só a porra da cinta. Qualquer coisa para achatar aquela grande Ceres de barriga e me apertar na silfidice. Primeiro vieram as meninas – depois a porra das cintas. Se eu usasse meias as prendia em ganchos que estavam efetivamente grudados à cinta – que seteira de náilon, borracha e aço. Nos anos 60, sexo espontâneo era inacreditavelmente difícil de conseguir. Qualquer nível de excitação tendia a ser abatido no momento em que ele conseguia insinuar uma mão dentro dessa coisa – quanto mais um pau. Era como um alerta de ataque aéreo de três minutos: "Aauuu! Aaaauuuuu! Sexo chegando! Sexo chegando!" E rápido, rápido rapazes – um êxtase de qualquer jeito; mas então, "Aaaauuuuu Ma-nhê!" A sirene do "nem tudo liberado" soava e era tarde demais. Não que eu gostasse do amor que o pai delas fazia – mas era o princípio que contava. Quando cresci, o sexo realmente importava. Não tínhamos drogas, nem muitos objetos de consumo – mas a gente trepava. Chegamos à maioridade durante a Segunda Guerra, quando era de rigueur dançar rock and roll com tudo e todos. Depois vieram os anos 50 e 60, quando todo carro que engasgava na rua me parecia uma explosão de dez megatons. A Guerra Fria não chegava a me esquentar, mas junto com muitas muitas outras garotas eu achava que o que eu queria fazer quando tudo viesse abaixo era trepar com o Dr. Strangelove.

Isso ou matar o bebê. Ou as duas coisas. Matar o bebê trepando com Strangelove – isso foi o começo dos anos 60 para mim. Mas na verdade era matar o bebê. "Quando eles jogarem a bomba nós vamos ter de matar o bebê", eu dizia para David Yaws. "Você entende isso, não entende?" – eu dizia no jantar; naquela época tudo era durante o jantar – "porque mesmo que a gente sobreviva às bombas que vão jogar em Londres, a gente ia preferir que não. Será a melhor coisa a fazer."

"Realmente, Lily", ele respondia, engolindo a comida do jeito que os ingleses fazem, o garfo feito uma escavadeira, a faca uma barreira, "os russos podem ter abandonado essa rodada de negociações, mas eles vão voltar. Eles sabem que uma guerra nuclear seria loucura – assim como Eisenhower sabe disso." Meu Deus! Que babaca dono da verdade aquele homem era. Falava sempre como se tivesse sido recentemente consultado sobre a questão: "É o Sr. David Yaws, o historiador eclesiástico?" "Ele mesmo." "Estou aqui com o presidente do Politburo ao telefone para o senhor..." Enquanto eu mal conseguia suportar uma olhada no jornal, Yaws devorava crise após crise, certo de que ninguém ia tocar nele, que continuaria navegando tranqüilamente como sempre.

Yaws esteve na Marinha Real durante a guerra. "Estive nos comboios do Atlântico norte" era o que costumava dizer em bares, no balcão de bebidas de clubes de golfe, no vagão-restaurante do trem – onde quer que pudesse adotar a pose certa de mãos enfiadas nos bolsos da calça de flanela. Mas a verdade é que ele tinha estado no ponto de partida dos comboios do Atlântico. Era o sujeito que conferia se havia suficientes balas, biscoitos ou seja lá o que for que levavam com eles. E não esteve lá no meio do oceano congelando os colhões, ah, não, não Yaws. Não, estava muito bem em terra nas ilhas Orknet, aboletado em uma confortável casa de fazenda com uma esposa de fazendeiro solitária. Ouso dizer até que existem alguns orcadianos de meia-idade andando por aí hoje com a máscara de Yaws na cara. Incrível um homem tão lerdo de cabeça ter um pau tão gostoso.

É a fala de criança que me faz lembrar disso, a fala que eu falo com Natty. Sempre falei muito assim com ela, e deve ser por isso que ela ficou tão criança. Falava assim com Charlotte também, mas acho que era para tentar fazer com que ela parecesse mais um bebê e um pouco menos uma versão em miniatura de Yaws. Uma noite, em maio de 1960, Yaws e eu fomos jantar com a irmã e o cunhado dele. Bunny, era esse o nome da irmã dele. A família inteira tinha apelidos piegas, o mundo era um jardim-de-infância para eles. Então, Bunny tinha se dado ao trabalho de fazer codorna para nós. Os passarinhos deitados nos nossos pratos com as patas agarrando a borda e as cabeças do lado, cortadas ao meio. Isso para a gente poder lamber o cérebro delas como os quitutes que eram. Me acovardei com a codorna. A idéia de mastigar aquelas cabeças de ovo me repugnou, ainda mais porque o grupo reunido estava fazendo exatamente isso, e com ruído. Me senti dentro de uma história de Kafka. Quando experimentei a carne, me pareceu esquisita, e quando ninguém estava olhando, enfiei a minha debaixo de uma grande folha de alface molenga.

"Lily acha que nós devemos matar Charlotte se jogarem a bomba", Yaws disse, e Bunny e o Sr. Bunny caíram na risada como era de esperar. Para mim aquilo soou assim: "Lily ach’que nós vam’matar Charlie-warlie quand’a bomb-hum explodir." Fala de bebê e, curiosamente, fala de preto. Quando chegamos em casa essa noite e Yaws ligou a televisão, estavam dando as notícias em fala de bebê: "Os Soviéticos, eles não quer negociar. ’Tão b’avo. Eles não gosta do Ocidente. Eles munto ruim." Eu disse para Yaws que o locutor – um bêbado cujo charme era ser bêbado – estava falando como bebê, e Yaws não deu a menor atenção. No dia seguinte, depois de Mrs. Dale’s Diary, ouvi no rádio um anúncio em fala de bebê, e quando Yaws voltou da universidade me encontrou contando para Charlotte, que tinha dois anos, que ela ia ter de morrer – em fala de bebê, naturalmente. Virginia Bridge apareceu com sua maleta de couro preto antes de alguém poder dizer "barbitúrico". Ou mesmo "bar-bar-bu-bu-bituico".

Naquela época eram os barbitúricos. Virginia chamava aquilo de "remédio amarelo", mas eu sabia muito bem do que se tratava. Ela me manteve relaxada em uma cama química amarela pelos seis meses seguintes, e aí descobri que estava grávida de Natasha. Imagino se ajudou a enviá-la para os braços de Morfeu, aquele banho amniótico de remédio amarelo? Me ajudou foi a entrar em uma ansiedade ainda maior. Depois que David nasceu, em 1948, fiquei com claustrofobia; depois que Charlotte nasceu, dez anos depois, fiquei com agorafobia. Mas depois que Natasha nasceu em 1961 eu não conseguia ficar nem dentro, nem fora de casa. Ficava na porta de trás, com o bebê no colo, oscilando entre as duas horríveis não-alternativas. Acho que se pode dizer uma coisa boa sobre a morte: ela junta todos esses medos irracionais e sem nenhum esforço pisa em cima deles com o Grande Medo. Apostas suspensas. Rien ne va plus.

"Gosto que eles deixem esses gatos entrarem no hospital", eu disse para Natty, que fez a mala e agora está me ajudando a tirar a camisola e vestir a roupa.

"O quê?" Imagino que ela deve estar pensando em outras coisas, mais vivas – como a próxima dose e onde consegui-la, agora que não conseguiu arrancar o empréstimo da irmã.

"Os gatinhos – aqui na ala. Eles parece que não se importam. Tem um malhado que senta em cima da cama daquela velhinha ali o dia inteiro; e tem um rajado amarelo que entra por essa janela de vez em quando e que se enrola bem em cima da minha barriga. É tão reconfortante – imagino se será alguma nova terapia que inventaram?" Mas isso não a interessa também; ela só me dá um olhar engraçado. O olhar engraçado. O olhar que se dá para gente que está morrendo e que enxerga coisas.

Agora, ali vêm Richard Elvers e sua senhora. Olhe como eles andam bem juntos – toda a pose e elegância que o dinheiro pode comprar. É preciso admitir que Charlie escolheu bem, porque os dois se completam muito bem. Ambos carnudos, ambos com prisão de ventre, ambos motivados. Elvers é um homem grande, de cabelo cor de areia com uma compleição saudavelmente vermelha (ele não bebe). Prefere terno escuro, jaquetão, que disfarça a gordura. Ela também. "Olá, Lily. " – Ele se inclina e me dá um beijinho, como se eu já estivesse em decomposição – "Acabei de falar com Molly e ela deu um bom trato no refúgio da família."

"Ah, ótimo." Agora a filipina já fez a cena dela – eu posso voltar!

"O carro está aí fora em local proibido – então é melhor a gente ir indo."

"Upa-la-lão", Natasha diz, e ela e Richard me colocam de pé. Distribuo uns poucos sorrisos de despedida para os figurantes nas outras camas – não é preciso dizer au revoir. A Irmã Smith está na sala das enfermeiras junto com duas outras enfermeiras que estão entrando para o turno da noite. "Que bom vê-la de pé, Sra. Bloom, e de braços com um cavalheiro tão bonito." Ela acha, talvez, que Elvers é meu filho. Que vergonha – a mulher é uma idiota. Mesmo assim, dou o melhor sorriso que eu consigo, faço brilhar o plástico para ela. Afinal, esta é provavelmente a penúltima vez que saio do hospital.

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