domingo, 28 de junho de 2009

Trecho de NÓ NA GARGANTA, de Patrick McCabe

Olhe dona Nugent, eu disse, e fiquei de quatro no chão. Fiz com quen22928 parte de mim ficasse do lado de dentro do vestíbulo para ela não tentar fechar a porta na minha cara e depois estiquei a cabeça para a frente e franzi o focinho quer dizer o nariz e diminuí meus olhos o quanto pude depois dei um grunhido enorme. Achei que isso a alegraria. Olhei para ela de novo. Oinc. Depois caí na risada. O que acha dona Nooge? Foi muito engraçado. Quanto mais eu fazia oinc, mais eu ria achei que era de fato a melhor risada que já tive especialmente quando Philip apareceu com sua cara de o que está acontecendo aqui. Detetive Inspetor Philip Nooge da Yard chegou!
Primeiro Philip não sabia o que fazer não é todo dia que se sai da cozinha e se vê um porco vestido de paletó e calças se arrastando na sua porta da frente. Ficou parado com seu lápis atrás da orelha. Sabia de uma piada mas não contei. Você ouviu aquela do professor com prisão de ventre? Ele desentupiu com o lápis. Estava muito ocupado olhando para Philip tentando imaginar um plano de mestre. Oinc! E depois olhava para Philip. Olhei direto nos seus olhos. Um jogo de futebol. Você e eu contra o resto Philip o que me diz? Depois dei um outro oinc e o coitado do Philip não sabia se ia ou vinha. Oinc. E comecei a rir de novo. Então o que ele faz agora não é que tenta me empurrar para fora do vestíbulo? Epa, Philip, eu disse, está enfiando seus dedos nos meus olhos. Podia ouvir seu coração batendo de onde eu estava. Empurrou-me no ombro com sua bota. Epa eu disse tire suas botas enormes de cima de mim, isso dói Philip! Depois ha ha de novo. Você é muito grosseiro não vou mais brincar com você! Estou só brincando. Dona Nugent ficava dizendo Philip Philip não sei se ela sabia o que queria dizer. Quem você acha que é melhor Philip, eu perguntei. Denis Law ou Tommy Taylor (3)? Philip estava de cócoras tentando me empurrar para fora da porta com os ombros e estava vermelho como tomate e resfolegando sem parar. Seu lápis caiu no chão. Foi um empurra-empurra danado. Philip empurrava de um lado eu empurrava do outro. E aí começava tudo de novo. Dona Nugent não fez nada, tudo o que fez foi ficar parada remexendo nos prendedores dentro do bolso e eu podia ver que Philip estava a ponto de dizer mamãe dá pra me ajudar pelo amor de Deus? mas era tão educado que não pediu e não é que ele se virou de um jeito que derrubou a foto do casamento que estava pendurada na parede e esta estilhaçou no chão e os cacos de vidro se espalharam pelo vestíbulo. Agora olhe o que você fez, ela disse, culpando Philip pelo que fosse que ele tivesse feito. Com certeza não era culpa dele que eu estivesse fuçando por todo canto. Depois ele não sabia o que fazer e começou a apanhar os pedaços e ela gritou a plenos pulmões cuidado com o vidro cuidado com o vidro vai se cortar não, não vou ele diz vai sim ela diz e Philip começa a ficar nervoso parado com uma mão cheia de cacos de vidro. Eu dei um oinc. Que queria dizer na língua de porco tome cuidado com o vidro Philip. A testa de Philip estava molhada de suor e seus olhos estavam mais tristes do que assustados agora. Acho que foram seus olhos me encarando com tanta tristeza o que me fez levantar e dizer que estava muito divertido mas que precisava ir embora para o chiqueiro o que acha dona Nugent? Mas ela não disse nada só ficou parada remexendo nos prendedores de roupa e dizendo por favor pare com isso por favor! Certo por agora dona Nooge eu disse e saltitei pela rua, vou deixar para outro dia eu disse e deixei.
E a razão por que fiz aquilo foi que comecei a pensar já de volta à casa por que estou me preocupando com os olhos tristes de Philip Nugent? Talvez eu tenha até imaginado, talvez ele estivesse até fingindo. Quanto mais pensava sobre aquilo mais eu dizia sim está certo ele estava só fingindo. Philip Nugent, eu disse para mim mesmo, você é um diabinho danado, como dizem nos quadrinhos. Aquele astuto Philip Nugent! Por isso uns dois dias depois voltei, só que dessa vez me certifiquei de que ninguém estava em casa. Esperei até ver o carro descer o beco sabia que iam visitar Buttsy nas montanhas.
Entrei pela janela dos fundos oi Francie bem-vindo aos Nugent!
Oi para ninguém eu respondi.
Tã tã tã! Bem-vindo aos Nugent seu Francie Brady! Muito obrigado agradeci, muitíssimo obrigado. É com imenso prazer que estou aqui parado neste piso de cerâmica preto e branco da copa, dona Nugent. De nada Francie o prazer é todo nosso de recebê-lo. Agora vamos apresentá-lo a todos. Este é meu marido e este é meu filho Philip mas claro que ele você já conhece. Claro que não havia razão nenhuma para dona Nugent dizer aquilo porque em vez disso ela pegaria o telefone na hora para chamar o sargento, mas é claro que não ia fazer isso porque estava nas montanhas bebendo suas xícaras de chá com o irmão Buttsy de cabelos cor de abóbora numa casinha que fedia a feno queimado e bosta de cavalo. Mas a dos Nugent não cheirava assim. Não senhor. Tinha um aroma fresco de pão assado, era assim que cheirava. Pão acabado de sair do forno naquele minuto. Fui procurar o pão mas não o achava em lugar nenhum. Acho que era apenas o cheiro de pão assado em outros tempos que ficou no ar e ela não tinha assado pão coisa nenhuma. Não importa. Sniff sniff. Cera também. Em todo lugar. Dona Nugent encerava tudo até espelhar. A mesa da cozinha, o chão. Qualquer lugar que você olhasse lá estava sua cara espelhada. Tinha-se de tirar o chapéu para dona Nugent quando o negócio era encerar. Moscas? Não, não na casa de dona Nugent! E se houvesse bolos, estes estavam trancados a chave e cadeado onde o seu Mosca e seus comparsas não botavam a asa. Dava para vê-los dentro da cristaleira embaixo de cúpulas de plástico e havia um pedestal de três pratos com bolos rosados e metade de um bolo de aniversário. As moscas devem ter ficado malucas -olhando para os bolos lindos e sem poder chegar perto. Eu mesmo sabia como elas devem ter se sentido. Poderia abrir a tampa mas não queria estragar a aparência deles. Estavam tão bonitos lá dentro. Aposto que foi ela mesma quem assou. Havia uma foto na parede de dona Nugent deitada na grama num parque em algum lugar. O que me veio à cabeça era que nunca pensei que dona Nugent tivesse sido jovem um dia tão jovem quanto eu. Por muito tempo pensei que ela tinha nascido da mesma idade que era agora mas é claro que isso era idiotice. Naquela foto ela tinha uns cinco anos de idade. Estava deitada com um vão enorme entre os dentes e sardas no rosto como Buttsy. Hi hi ela dizia para a lente da câmera. A boazinha dona Bebê Nooge eu pensei. Há quantos anos foi isso eu me perguntei. Podia ser uns cem anos pelo que eu sabia. A pasta do seu Nugent estava encostada num canto e seu casado de tweed pendurado atrás da porta. Peguei umas fatias de pão com geléia e me sentei em frente à televisão. Estava passando Viagem ao fundo do Mar, o almirante Nelson e seu pessoal do submarino lutando contra um polvo gigante escondido dentro de uma caverna onde o submarino não podia entrar. Ele era um filho da puta esperto mandando os seus tentáculos enrolados com os sugadores nas pontas empurrando o submarino para as rochas de cabeça para baixo e tudo. Tudo o que se via eram os dois olhos gigantes brilhando na escuridão da caverna como se dissesse Agora vocês não escapam seus homens da marinha espertos, vamos ver se vocês conseguem sair dessa. Mergulhe! Mergulhe! gritava o almirante no microfone mas ele não mergulhava. A música estava enlouquecendo. Mate o filho da mãe! eu gritei, estava ficando excitado também, mande um arpão isso o fará se calar! mas o almirante não era tão babaca como o polvo pensou que fosse. Acelerar todos os sistemas! e o que acontece depois é que um monte de coisas começa a atingir o polvo bem no meio dos olhos bum e os guinchos do danado! Pop pop os dois olhos pulam como luzes de holofote e os tentáculos se balançando como elástico mole e o submarino sobe para a superfície com todos a bordo gritando viva e o almirante limpando o suor do rosto e sorrindo OK todo mundo já chega agora de volta ao trabalho. E bip bip lá vai o eco da sonda e lá vão eles felizes da vida e de volta ao normal. Viva o almirante, eu disse, deu um jeito no danado do polvo. E deu mesmo, o polvo ficou estatelado no chão da caverna como uma almofada estourada e levaria muito tempo pra que ele viesse a mostrar seus tentáculos de novo. Fiz chá e enchi uma caneca e peguei mais uma fatia de pão com geléia para celebrar. Era difícil achar coisa melhor do que ficar sentado ali comendo e me divertindo. Estava um dia lindo lá fora. Havia algumas nuvens pequenas espalhadas pelo céu que não ligavam se não fossem a lugar nenhum. Os pássaros, a maioria gralhas, pendurados no parapeito da janela dos Nugent para ver o que podiam espiar. Bem bem olhe quem está ali Francie Brady. Não devia estar ali. Ei gralhas eu disse vão se foder e isso as mandou embora. Isso é que é vida eu disse Será que temos um pouco de queijo ou picles. Mas é claro -lá estava o pote marrom na geladeira! E que delícia que era! Perfeito! Pode ficar certo de que vou me hospedar no Hotel Nugent na minha próxima parada nesta cidade.

Dona Nugent estava em pé na minha frente. Sim, Philip, ela respondeu. Sei disso. Já sei disso há muito tempo.
Depois devagar ela desabotoou sua blusa e tirou um peito para fora.
E disse: Aqui pra você Francis.
Pôs sua mão firmemente na minha nuca e pressionou minha cara para a frente. Philip ainda estava no pé da cama sorrindo. Eu gritei: "Mamãe! Não é verdade!" Dona Nugent sacudiu a cabeça e disse: "Desculpe Francis, mas é muito tarde para tudo isso agora. Devia ter pensado nisso quando decidiu vir morar conosco!"
Pensei que ia ser estrangulado pela carne gorda e morna.
"Não!"
Afastei-me e tentei atingir Nugent num lado de seu rosto.
Subi na penteadeira e o espelho se partiu em pedaços. Dona Nugent cambaleou para trás com seu seio pendurado para fora. E agora Philip eu disse e ri. Philip mudou de tom e agora era o "por favor Francie" de sempre. Perguntei: Está falando comigo seu Porco?
Como ele não me respondeu eu falei de novo: Não está me ouvindo Philip Porco? Hum?
Ele torcia os dedos e sua mãe também.
Ou talvez não saiba que é um porco. É isso? Bem, então, vou ter de ensinar. E vou fazer com que não esqueça tão rapidamente dessa vez. Você também dona Nugent! Venham aqui! Venham venham e nada de desculpas. Isso foi divertido, eu disse era como o professor na escola. Certo hoje vamos aprender a virar porcos. Quero que todos vocês estiquem a cara para a frente franzindo os narizes como porquinhos. Muito bom Philip. Achei um batom numa das gavetas e escrevi em letras grandes no papel de parede "Philip é um porco". Agora, eu disse, que tal isso? Muito bom Francie, disse Philip. E agora a senhora dona Nugent. Acho que a senhora não está se esforçando o suficiente. De quatro agora e não relaxe. Assim dona Nugent ficou de quatro e parecia a melhor porca no chiqueiro inteiro com sua bunda rosada esticada para o ar. Dona Nugent, eu disse, maravilhado, isso é fantástico! Obrigada Francie, disse dona Nugent. Então esta era a escola para porcos. Avisei-os que não queria mais vê-los caminhando retos e se os pegassem iam se ver comigo. Está compreendendo Philip? Estou, ele respondeu. E você também dona Nugent. É sua responsabilidade de porca fazer com que Philip se comporte como um bom porco. Estou deixando nas suas mãos. Ela concordou. Assim fizemos o exercício uma vez mais e os fiz repetir depois de mim. Sou um pouco, disse Philip. Sou uma porca, disse dona Nooge. Vamos recapitular então, eu disse. O que os porcos comem? Comem nozes emporcalhadas, disse Philip. Sim, muito bem, eu disse, mas o que mais fazem? Correm pelo chiqueiro, Philip falou. Sim, claro que fazem isso, mas o que mais? Fiquei jogando o batom para cima na palma da minha mão. Alguém atrás sabe? Sim dona Nugent? Eles nos dão bacon! Sim isso é verdade, mas não é a resposta que eu quero. Esperei um bom tempo, mas parecia que a resposta não ia aparecer. Não, eu disse, a resposta que estou procurando é _"eles cagam! Sim, porcos estão sempre cagando pelo chiqueiro inteiro, partem o coração do dono do sítio. Querem convencer-nos de que os porcos são os animais mais limpos que existem. Não acreditem numa palavra do que dizem. Perguntem a qualquer criador de porco! Sim, porcos são animais que cagam, desculpe dizer, mas eles simplesmente enchem o lugar de merda, não importa o que você faça. Então, quem vai ser o melhor porco da escola dos porcos e demonstrar o que estamos falando, hum? Vamos, vamos, algum voluntário? Ah, não, com certeza podem fazer melhor do que isso!
Que decepção, ninguém! Bom, então, infelizmente vou ter de escolher o voluntário eu mesmo. Vamos, Philip, venha aqui e mostre para a classe. Isso é que é aluno. Muito bem Philip. Agora observem com atenção todo mundo. Philip ficou vermelho como tomate e enrugou a cara quando começou a se esforçar. Agora, classe! Como se chama alguém que faz uma coisa dessas? Não é um menino de jeito nenhum -é porco! Repitam comigo! Vamos! Porco! Porco! Porco!
Muito bom. Vamos Philip, você pode fazer um pouco mais de força!
O que acha dona Nugent? Philip não é um exemplo?
No começo, dona Nugent ficou acanhada com o que ele estava fazendo, mas quando viu o esforço dele ela disse que tinha orgulho. E era para ter mesmo, eu disse. Vamos Philip, força, força!
E ele usou toda a sua força e lá estava orgulhoso, ereto no meio do carpete do quarto, o melhor cagalhão já visto.
Era um daqueles grandes, em forma de submarino, espetado nas pontas, assim, quando o cu não fecha de repente, cheio de passas com um ponto de interrogação de vapor subindo no ar.
Muito bem, Philip, eu gritei, você fez! Dei um tapinha nas suas costas e ficamos ao redor admirando o resultado. Era como um foguete que tinha acabado de chegar do espaço e estávamos esperando que os pequenos astronautas marrons abrissem a porta do lado e saíssem acenando. Philip, eu disse, meus parabéns! Estava feliz da vida com o desempenho de Philip. Não acreditei que ele ia conseguir. Philip estava cheio de orgulho também. Virei-me para a classe. Meninos, eu perguntei, quem é o melhor porco na escola inteira? Podem me dizer? Philip, eles gritaram todos sem um momento de hesitação. Viva, Viva! As palmas da classe quase levantaram o telhado. Vamos com calma, eu disse. Agora é a vez de dona Nugent nos mostrar como é o seu desempenho. Será que consegue produzir uma merda tão boa quanto Philip? Logo vamos descobrir! Está pronta dona Nugent? Estava esperando que ela dissesse: sim, Francis, é claro que estou, e depois levantasse a sua camisola e se acocorasse enrugando a cara ficando roxa tentando fazer melhor do que Philip, mas sinto muito, não foi assim que aconteceu, de jeito nenhum.
Dona Nugent estava ali sim, mas não de camisola. Estava de vestido e carregando uma sacola cheia de coisas que trouxe de Buttsy.
Sua boca se arregalou e estava chorando de novo, apontando para o espelho quebrado e as letras na lousa, quer dizer, na parede. Olhei para Philip. Ele estava branco como um fantasma. Também, o que estava errado com ele agora? não recebeu o prêmio de melhor cocô de porco? o que mais queria? Mas seu Nugent disse que agora a coisa era com ele. "Vou dar um jeito nele!", ele disse, como no comercial para tabaco. Philip e dona Nugent desceram e ficamos só eu e ele. Ele era bonitão, seu Nugent, isso você tinha de admitir. Seus cabelos penteados para trás, sua testa alta era protuberante e ele tinha retalhos de couro no cotovelo da jaqueta. Usava um button da ordem de pioneiro também _era um emblema de metal do Sagrado Coração e queria dizer: "Nunca bebi uma gota na minha vida e jamais vou beber!" Ele me encarou olhos nos olhos e não piscou uma vez. Nem mesmo levantou a voz. Ele disse: Dessa vez você não escapará sem punição! Dessa vez vou fazer com que seja mandado para onde merece. E vai limpar "isso" antes de ir embora daqui com a polícia, e as paredes também, porque minha mulher não vai limpá-las. Você já lhe deu bastante aflição. Bem, está certo seu Nugent, eu pensei. Como é que eu podia tomar conta direito da escola de porcos com aquele tipo de interrupção? Hum? Isso é o que quero saber, eu disse. Mas não para seu Nooge, foi para mim mesmo. O que eu disse foi: Diga-me, seu Nugent, como vai Buttsy? Ele não respondeu; por isso continuei a falar sobre todo tipo de coisa. Estava parado com as costas para a porta para o caso de eu tentar fugir. Mas não estava com vontade de correr para lugar nenhum. O vale tinha esfriado e a nuvem de vapor tinha desaparecido. Estava pensando nos pequenos astronautas aparecendo na porta saudando com um sorriso no rosto, se apresentando para o trabalho "comandante" quando um golpe me atingiu no lado da minha cara e lá estava o sargento, de pé, esfregando seus dedos e dizendo: "Não faça, não faça! Ou vai se arrepender. Não faça, não faça o que ele estava falando, não faça? Vai limpar tudo, ele resmungou, pode ter certeza. Claro que vou limpar tudo, se era o que queria não sei por que estava ficando todo esquentado e nervoso. Levei o cagalhão para o quintal num pedaço de jornal e espalhei-o com um graveto atrás das urtigas. Assoviava. Se houvesse um astronauta lá dentro, ele já era. Dona Nugent ainda estava chorando quando fui embora, mas seu Nooge a abraçou e a levou para dentro. Quando os filmes mudos terminam, às vezes aparece uma mão, não sei de onde e segura uma placa escrita Fim. Assim foi quando o carro partiu. A casa dos Nooge na frente e a não pendurada com a placa na maçaneta enquanto vrumm vrumm, nós íamos embora.
Assim foi o fim dos Nugent, por hora, pelo menos.
O sargento não parava de falar sobre mamãe no banco da frente do carro e como ele a tinha cortejado anos atrás, quando ela era uma das moças mais bonitas da cidade e se não fosse pelo tipo com quem foi se envolver. Graças a Deus ela não está mais nesse mundo para ver isso, ele disse.
Não, eu disse, ela está no fundo do lago, e fui eu que a joguei lá.
Por Deus, se você fosse meu filho eu quebraria cada osso de seu corpo, ele disse. Depois limpou a boca e resmungou: Não que você pudesse ser diferente.
Passamos pelo convento. Havia alguns meninos da escola chutando a bola contra a parede. Acenei para eles através da janela e eles acenaram de volta por um minuto até notarem quem era. Então o que fizeram: seguraram a bola como seu eu fosse roubá-la. Acenei de novo, mas fingiram que não me viram. Não estavam tão empolgados comigo...

sexta-feira, 5 de junho de 2009

conto de James Salter

Akhnilo


Era fim de agosto. No porto, os barcos estavam imóveis, nenhumultimanoite_jamessalter_div mastro se mexia, nenhuma polia retinia. Os restaurantes tinham fechado havia tempo. Um carro ocasional, os faróis brilhantes, cruzava a ponte, vindo de North Haven, ou descia pela Main Street, passando pelas cabines de telefones arrebentados. Na estrada, as discotecas se esvaziavam. Passava das três da manhã.
Fenn acordou no meio da escuridão. Pensou que tinha ouvido alguma coisa, um som baixinho, o ranger de uma mola como a da tela da porta da cozinha. Ficou quieto no calor da cama. A mulher dormia tranqüilamente. Esperou. A casa não estava fechada, apesar dos muitos casos de furto ou coisa pior perto da cidade. Ouviu um leve baque. Não se mexeu. Vários minutos passaram. Sem fazer barulho, levantou-se e foi até o vão estreito da porta, de onde alguns degraus levavam à cozinha. Parou ali. Silêncio. Mais um baque e um gemido. Era Birdman caindo de novo no chão.
Lá fora, as árvores pareciam reflexos negros. As estrelas estavam encobertas. As únicas galáxias eram os sons de insetos quepreenchiam a noite. Olhou pela janela aberta. Ainda não estava seguro de ter ouvido alguma coisa. Quase podia tocar as folhas da faia imensa que pendia sobre a varanda dos fundos. Por um tempo que lhe pareceu longo, examinou a área de sombra junto ao tronco. Na imobilidade de tudo, sentia-se visível mas também estranhamente receptivo. Seus olhos vagavam de uma coisa a outra nos fundos da casa, as pálidas colunas coríntias da pérgula do vizinho, a sebe misteriosa, a garagem de soleira carcomida. Nada.
Eddie Fenn era carpinteiro, apesar de ter estudado em Dartmouth e se formado em história. Quase sempre trabalhava sozinho. Tinha trinta e quatro anos. Tinha o cabelo ralo e o sorriso tímido. Nada de muito mais. Havia alguma coisa de apagado nele. Quando era mais jovem, dizia-se que era um talento, mas jamais se aventurara de verdade na vida, ficara perto da costa. A mulher, alta e míope, era de Connecticut. O pai dela tinha sido banqueiro. De Greenwich e Havana, dizia o anúncio fúnebre nos jornais. Ele cuidara da filial de um banco de Nova York por lá, quando ela era criança. Isso quando Havana era uma lenda e os milionários cometiam suicídio depois de fumar o último charuto.
Os anos tinham passado. Fenn olhou para a noite lá fora. Tinha a sensação de ser o único ouvinte de um mar de gritos sem fim. Deixava-se impressionar por aquela vastidão. Pensou em tudo que estava oculto por trás daquilo, os gestos desesperados, os desejos, as surpresas fatais. Naquela tarde, ele vira um tordo bicando alguma coisa perto do limite da grama, pegando, jogando no ar, pegando de novo: um sapo, as patinhas hirtas estiradas em leque. O passarinho voltou a jogá-lo para cima. Os musaranhos cegos caçavam sem descanso por túneis vorazes, as línguas pontudas dos répteis sondavam o ar, sentia-se um abdômen triturado, a passividade das vítimas, o suave estertor do acasalamento. As filhas de Fenn dormiam na sala. Nada está seguro por mais de uma hora.
Parado ali, teve a sensação de que o som se alterava, não sabia bem como. Parecia isolar-se, como se permitisse que algo se destacasse dele, algo de cintilante e remoto. Tentou aos poucos identificar o que estava ouvindo como um grilo, uma cigarra, mas não, era alguma outra coisa, algo de febril e estranho que ganhava mais nitidez. Quanto mais atenção punha em ouvir, mais esquivo parecia o som. Tinha medo de se mover e perdê-lo. Ouviu o pio suave de uma coruja. A escuridão absoluta das árvores pareceu iluminar- se, e com ela também aquela nota singular e estridente.
Sem alarde a noite se abrira. O céu se revelava, as estrelas brilhavam fracamente. A cidade dormia, calçadas desertas, jardins em silêncio. Ao longe, em meio aos pinheiros, via-se a cumeeira de um celeiro. O som vinha de lá. Ainda não conseguia identificá-lo. Precisava chegar mais perto, descer e sair pela porta, mas assim talvez o perdesse, o som podia se calar, em alerta. Teve uma idéia perturbadora, que não pôde deixar de lado: o som estava em alerta. Trêmulo, repetindo-se e repetindo-se por cima dos demais, o som parecia chegar só até ele. O ritmo não era constante. Acelerava, hesitava, continuava. Era menos um grito instintivo e mais uma espécie de sinal, de código, diferente de tudo que ele ouvira antes, não uma série de pulsos curtos e longos,
mas algo de mais intricado, de certo modo quase como uma fala.
A idéia o assustou. As palavras, se é que eram palavras, eram tênues e pungentes, mas ele tremeu como se fossem a senha de um cofre. Sob a janela ficava o telhado da varanda. A inclinação era suave. Parou ali, perfeitamente imóvel, como perdido em pensamentos.
O coração batia com força. O telhado parecia largo feito uma rua. Teria que ir atrás daquilo, esperando não ser visto, movendo-se em silêncio, sem gestos bruscos, parando para sentir se havia alguma mudança no som a que ele estava agora completamente atento. A escuridão não o protegeria. Ele entrava numa noite de incontáveis redes e olhos irrequietos. Não tinha certeza se devia fazer aquilo, se ousava. Uma gota de suor brotou e correu pelo torso nu. Incansável, o chamado persistia. As mãos de Fenn tremiam.
Soltando a tela da janela, ele a baixou com cuidado e a encostou na parede. Movia-se em silêncio, como uma serpente, por cima do telhado de um verde esmaecido. Olhou para baixo. O chão parecia distante. Teria que se pendurar no telhado e se soltar, leve como uma aranha. Ainda via a cumeeira do celeiro. Movia-se na direção da estrela polar, podia sentir. Era quase como se estivesse caindo. O gesto era atordoante, irreversível, e o levaria aonde nada do que possuía poderia protegê-lo, descalço, sozinho.
Ao cair no chão, Fenn sentiu um arrepio pelo corpo todo. Estava para ser redimido. Sua vida não tomara o rumo que ele esperava, mas ele ainda se achava um ser especial, que não pertencia a ninguém. Na verdade, tinha uma idéia romântica do fracasso. Quase fora a sua meta. Esculpia pássaros em madeira, ou tinha esculpido. As ferramentas e os blocos de madeira parcialmente moldados estavam sobre uma mesa no porão. A certa altura, quase se tornara um naturalista. Alguma coisa nele, o silêncio, a disposição a ficar de lado, vinha a calhar. Em vez disso, começou a produzir mobília com um amigo que tinha algum capital, mas o negócio deu errado. Começou a beber. Certa manhã, acordou ao lado do carro, deitado junto aos sulcos de pneu da vereda, a velha senhora que vivia do outro lado da rua afugentando o cachorro. Entrou em casa antes que as filhas o vissem. Estava a um passo, disse o médico, de se tornar um alcoólatra. As palavras o espantaram. Isso fora há muito tempo. A família o salvara, mas não sem custo.
Parou. O chão era firme e seco. Foi até a sebe e cruzou a vereda do vizinho. O som que o trespassava era mais claro agora. Seguindo-o, passou por casas que mal reconhecia pelos fundos, por quintais abandonados em que latas e detritos se escondiam na grama escura, por galpões que ele jamais vira. O terreno começava a descer suavemente, estava se aproximando do celeiro. Podia ouvir a voz, sua voz, ressoando mais para o alto. Vinha de algum lugar do espectral triângulo de madeira que se elevava como a face de uma montanha distante que se aproxima repentinamente de uma curva da estrada. Movia-se vagarosamente em sua direção, com o medo de um explorador. Mais acima, ouvia a corrente tênue que trinava. Aterrorizado com a proximidade, parou e ficou quieto.
De início, ele recordaria mais tarde, não significava nada, era brilhante demais, puro demais para isso. Continuava a ressoar, mais e mais insano. Fenn não conseguia identificar, não conseguia repetir, não conseguia sequer descrever o som. Ganhara volume, pusera todo o resto de lado. Parou de tentar entendê-lo e, em vez disso, deixou que o percorresse, que o invadisse como um canto. Devagar, como um padrão que muda de aparência quando é observado e começa a tomar outra dimensão, o som se alterou inexplicavelmente e expôs seu núcleo real. Começou a reconhecer. Afinal eram palavras. Não tinham sentido nem antecedentes, mas eram sem dúvida uma linguagem, a primeira a se deixar ouvir de uma ordem mais vasta e mais densa que a nossa. Logo acima, na superfície esbranquiçada, desesperado, suplicante, estava o pioneiro sem nome.
Numa espécie de êxtase, Fenn chegou mais perto. Imediatamente percebeu o erro. O som hesitou. Ele fechou os olhos, num espasmo, mas era tarde demais, o som vacilou e parou. A toda a sua volta, as vozes retiniram. A noite estava repleta delas. Virou-se para um lado e para o outro, na esperança de encontrála, mas a coisa que ele ouvira já se fora.
Era tarde. O céu começava a ganhar um tom pálido. Fenn estava junto ao celeiro com os fragmentos de um sonho que se tenta recordar a custo: quatro palavras, distintas e inimitáveis, queele criara. Protegendo-as, concentrando-se nelas com toda a força que tinha, começou a levá-las de volta. O barulho dos insetos parecia mais alto. Tinha medo de que alguma coisa acontecesse, que um cão latisse, que uma luz se acendesse num quarto e o distraísse, que ele afrouxasse a mão. Tinha que voltar sem ver nada, sem ouvir nada, sem pensar. Repetia as palavras consigo enquanto caminhava, os lábios se moviam sem parar. Mal ousava respirar.
Podia ver a casa. Estava cinzenta agora. Não havia luz nas janelas. Tinha que chegar até lá. O som das criaturas noturnas parecia aumentar com raiva e tormento, mas ele estava além disso. Estava fugindo. Percorrera uma distância imensa, estava chegando à sebe. A varanda não estava longe. Subiu no parapeito, a beira do telhado a seu alcance. A calha era firme, ele se ergueu. Sentiu o calor do asfalto quebradiço e esverdeado sob os pés. Passou uma perna pelo peitoril, depois a outra. Estava seguro. Instintivamente, tomou distância da janela. Conseguira. Lá fora, a luz parecia débil e histórica. Uma aurora espectral começou a atravessar as árvores.
De repente, ele ouviu o chão estalar. Alguém estava ali, uma figura à luz suave e sem cor. Era sua mulher, ficou pasmo diante da imagem dela, apertando a camisola de algodão contra o corpo, o rosto simplificado pelo sono. Fez um gesto de alerta.
"O que foi? O que aconteceu?", ela sussurrou.
Não, ele implorou, balançando a cabeça. Uma palavra se perdera. Não, não. Ela se agitava e desfazia como uma coisa qualquer lançada ao mar. Ele tentava agarrá-la às cegas. Ela o abraçou. Ele se afastou abruptamente. Fechou os olhos.
"Meu bem, o que foi?" Ele estava perturbado, ela sabia. Ele jamais se recuperara por inteiro das dificuldades. Muitas vezes ele acordava no meio da noite, ela o encontrava sentado na cozinha, o rosto velho e cansado.
"Venha para a cama", ela convidava.
Ele fechava os olhos com firmeza e tapava os ouvidos com as mãos.
"Você está bem?", ela perguntou.
A devoção dela dissolvia tudo, as palavras estavam caindo por terra. Ele começou a girar em desespero.
"O que foi, o que foi?", ela exclamou.
A luz vinha de toda parte, avançando pelo gramado. O sussurro sagrado esvanecia. Não tinha um minuto a perder. As mãos coladas à cabeça, correu até a sala atrás de um lápis, com ela correndo atrás, pedindo que lhe dissesse o que havia. Estavam sumindo, só restava uma, inútil sem as outras, e contudo de valor infinito.
Enquanto ele escrevia, a mesa se mexeu. Um quadro tremeu na parede. A mulher, segurando os cabelos de lado com uma das mãos, examinava de perto o que ele escrevera. Dena, de camisola, surgira no vão da porta, despertada pelo barulho.
"O que foi?", ela perguntou.
"Me ajude", a mãe exclamou.
"Papai, o que foi?"
As mãos das duas estendiam-se para ele. No vidro do quadro, um quadrado brilhante de azul e verde estremecia, a folhagem luminosa das árvores. As vozes incontáveis recuavam, voltando ao silêncio.
"O que foi, o que foi?", a mulher implorava.
"Papai, por favor!"
Ele balançou a cabeça. Estava quase chorando quando tentou se livrar das duas. De repente, descambou para o chão e ficou sentado ali, e para Dena recomeçou uma época que ela lembrava dos primeiros anos de escola, quando a tristeza tomava conta da casa e as portas batiam com força e o pai, cheio de afeição desajeitada, entrava no quarto das filhas para contar histórias de ninar e acabava adormecendo ao pé da cama dela.