terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Pesadelo Refrigerado, de Henry Miller

Leia trecho do livrohenri miller

Foi num hotel em Pittsburgh que terminei de ler o livro de Romain Rolland sobre Ramakrishna. Pittsburgh e Ramakrishna — pode haver contraste mais violento? Um é o símbolo do poder e da riqueza brutais, o outro, a própria encarnação do amor e da sabedoria.

Começamos aqui, então, o rapidíssimo pesadelo, a cruz em que todos os valores são reduzidos a lixo. Estou em um quarto pequeno, que deve ser considerado confortável, de um hotel moderno equipado com todas as últimas comodidades. A cama é limpa e macia, o chuveiro funciona perfeitamente, o assento da privada foi até esterilizado depois do último hóspede, se é que se pode acreditar no que diz a tira de papel que o envolve; sabonete, toalhas, luz, papel de carta, tudo fornecido em abundância. Estou deprimido, mais deprimido do que consigo expressar. Se fosse ocupar este quarto por um tempo considerável, ficaria louco — ou cometeria suicídio. O espírito do lugar, o espírito dos homens que fizeram desta cidade o horror que ela é, penetra pelas paredes. Existe assassinato no ar. Tudo me sufoca.

Há poucos instantes saí para respirar um pouco. Sentime de volta à Rússia czarista. Vi Ivã, o Terrível, seguido por uma turba de brutos de focinho. Lá estavam, armados com porretes e revólveres. Tinham o ar de homens que obedecem zelosamente, que atiram para matar à menor provocação.

Nunca o status quo me pareceu mais horrendo. Este não é o pior lugar de todos, eu sei. Mas estou aqui, e o que vejo me atinge com força. Talvez tenha tido sorte de começar meu tour da América via Pittsburgh, Youngstown, Detroit; sorte de não ter começado por Bayonne, Bethlehem, Scranton e que tais. Podia não chegar nunca a Chicago. Podia ter me transformado em uma bomba humana e explodido. Algum astuto instinto de autopreservação me levou a virar para o sul primeiro, a explorar os estados da União chamados de "retrógrados".

Posso ter me entediado a maior parte do tempo, mas pelo menos tinha paz. Será que não vi sofrimento e miséria no Sul também? Claro que vi. Existe sofrimento e miséria por toda parte neste vasto país. Mas há tipos e graus de sofrimento; o pior, em minha opinião, é o tipo que se encontra no próprio coração do progresso.

Neste momento, falamos da defesa de nosso país, das instituições, de nosso modo de vida. Tomamos como certo que essas coisas precisam ser defendidas, sejamos ou não invadidos. Mas existem coisas que não deviam ser defendidas, deviam ser deixadas para morrer; existem coisas que devíamos destruir voluntariamente, com as próprias mãos. Vamos fazer uma recapitulação imaginária. Tentemos pensar nos velhos dias em que nossos patriarcas chegaram a estas terras. Para começar, com certeza fugiam de alguma coisa; como os exilados e expatriados que estamos acostumados a denegrir e aviltar, também eles abandonaram sua terra natal em busca de algo mais próximo dos desejos de seu coração.

Uma das coisas mais curiosas sobre esses antepassados é que, embora estivessem manifestamente buscando paz e felicidade, liberdade religiosa e política, eles começaram roubando, envenenando, assassinando, quase exterminando a raça a que pertencia este vasto continente. Mais tarde, quando principiou a corrida do ouro, fizeram com os mexicanos a mesma coisa que haviam feito com os indígenas. E, quando os mórmons surgiram, praticaram as mesmas crueldades, a mesma intolerância e perseguição de seus próprios irmãos brancos.

Penso nesses feios fatos porque, enquanto estava indo de Pittsburgh para Youngstown, atravessando um inferno que vai além de qualquer coisa imaginada por Dante, subitamente me veio a idéia de que precisava ter um indígena americano ao meu lado, de que ele devia participar desta viagem comigo, comunicar-me, em silêncio ou de alguma outra forma, suas emoções e reflexões. Minha preferência seria ter comigo um descendente de uma das tribos comprovadamente "civilizadas", um seminole, vamos dizer, que houvesse passado a vida nos intricados pântanos da Flórida.

Imagine nós dois parados em contemplação diante da horrenda grandeza de uma dessas siderúrgicas que pontilham a ferrovia. Dá quase para ouvi-lo pensando: "Então foi para isso que nos privaram de nossos direitos de nascimento, levaram nossos escravos, queimaram nossas casas, massacraram nossas mulheres e crianças, envenenaram nossas almas, romperam cada tratado que fizeram conosco e nos deixaram a morrer nos pântanos e selvas dos Everglades!".

Você acha que seria fácil fazê-lo trocar de lugar com um de nossos trabalhadores regulares? Que tipo de persuasão seria preciso utilizar? O que se poderia prometer a ele que fosse realmente sedutor? Um carro usado para ir trabalhar? Um barraco de tábuas que pudesse, se fosse ignorante a tal ponto, chamar de casa? Uma educação para seus filhos que os tirasse do vício, da ignorância e da superstição mas ainda os mantivesse em escravidão? Uma vida limpa, saudável, em meio à pobreza, ao crime, à sujeira, à doença e ao medo?

Salários mal suficientes para manter a cabeça fora da água e muitas vezes nem para isso? Rádio, telefone, cinema, jornais, revistas vagabundas, canetas-tinteiro, relógio de pulso, aspiradores de pó e outros aparelhos ad infinitum? São essas bobagens que fazem a vida valer a pena? São essas coisas que nos deixam felizes, relaxados, generosos, compassivos, gentis, pacíficos e tementes a Deus? Estamos prósperos e seguros hoje, como tantos estupidamente sonham estar? Algum de nós, mesmo os mais ricos e poderosos, tem certeza de que nenhum vento contrário arrebatará nossas posses, nossa autoridade, o medo e o respeito que nos são votados? Essa atividade frenética que nos mantém a todos, ricos e pobres, fracos e poderosos, em suas garras — aonde está nos levando? Ao que me parece, existem duas coisas na vida que todos os homens desejam e poucos obtêm (porque ambas pertencem ao domínio do espírito): a riqueza e a liberdade. O farmacêutico, o médico, o cirurgião são incapazes de nos dar saúde; e dinheiro, poder, segurança, autoridade não fornecem liberdade. A educação nunca provê sabedoria, nem as igrejas religião, nem a riqueza a felicidade, nem a segurança a paz. Qual é então o sentido de nossa atividade? Qual a finalidade disso tudo?

Somos não apenas tão ignorantes, supersticiosos, perversos em nossa conduta quanto os "selvagens ignorantes e sanguinários" que espoliamos e aniquilamos ao chegar aqui — somos muito piores que eles. Nós degeneramos; degradamos a vida que procuramos estabelecer neste continente. A nação mais produtiva do mundo, porém inapta para alimentar, vestir e abrigar adequadamente mais de um terço de sua população. Vastas áreas de solo valioso são transformadas em deserto por negligência, indiferença, ganância e vandalismo.

Dilacerada há oitenta anos pela guerra civil mais sangrenta da história do homem, até hoje é incapaz de convencer o lado derrotado do país sobre a correção de nossa causa; incapaz, como libertadora e emancipadora de escravos, de lhes dar verdadeira liberdade e igualdade, ao contrário, escravizando e degradando nossos próprios irmãos brancos.

Sim, o norte industrial derrotou o sul aristocrático — os frutos dessa vitória são agora visíveis. Onde quer que haja indústria existe feiúra, miséria, opressão, tristeza e desespero. Os bancos que enriqueceram piedosamente nos ensinando a economizar, a fim de surrupiar nosso dinheiro, agora nos imploram para não levar a eles nossas economias, ameaçando eliminar até mesmo as ridículas taxas de juros que agora nos oferecem se não seguirmos seus conselhos. Três quartos do ouro do mundo estão enterrados em Kentucky.

Invenções que lançariam mais alguns milhões no combate ao desemprego, uma vez que, pela pura ironia de nosso sistema, toda potencial benesse à espécie humana é transformada em mal, jazem nas prateleiras de escritórios de patentes ou são vomitadas e destruídas pelos poderes que controlam nosso destino. A terra, esparsamente povoada e produzindo ao acaso e em desperdício um enorme excedente de todo tipo, é considerada por seus proprietários um mero punhado de homens, incapaz de acomodar não apenas os milhões de esfaimados da Europa como nossas hordas de famintos. Um país que agora se faz ridículo ao enviar nossos missionários às mais remotas partes do globo, pedindo tostões aos pobres para sustentar a obra cristã de diabos iludidos que não são representantes de Cristo mais do que eu sou representante do papa, porém incapazes de, por intermédio de suas igrejas e missões em casa, resgatar os fracos e derrotados, os miseráveis e oprimidos. Os hospitais, os asilos de loucos, as prisões estão lotados além da conta. Condados praticamente desabitados, alguns tão grandes quanto um país europeu, possuídos por uma intangível corporação cujos tentáculos atingem tudo e cujas responsabilidades ninguém consegue formular ou esclarecer. Um homem sentado em uma poltrona confortável em Nova York, Chicago ou San Francisco, um homem cercado de todo luxo e no entanto paralisado pelo medo e pela ansiedade, controla a vida e os destinos de milhares de homens e mulheres que nunca viu, que nunca deseja ver e por cujo destino tem absoluto desinteresse.

Era isso que chamávamos de progresso no ano de 1941 nos Estados Unidos da América. Como não sou de ascendência indígena, nem negra, nem mexicana, não tenho nenhuma alegria vingativa ao traçar este retrato da civilização do homem branco. Sou descendente de dois homens que fugiram de sua terra natal porque não queriam ser soldados. Meus descendentes, ironicamente, não serão capazes de escapar desse dever: todo o mundo branco se transformou, afinal, em um campo armado.

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