terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Diário do Farol, de João Ubaldo Ribeiro

Leia trecho do livro

O CONTEÚDO DESTA NARRATIVA é honesto, corajoso e escrupulosamente verdadeiro, com exceção dos nomes próprios citados, mas seu final poderá ser falso - o que ainda não sei, porque acabo de começar e não pretendo fazer revisões, para não ser traído pela improvável, mas possível, tentação de alterar, mesmo que sutilmente, fatos que não devo e não quero alterar. Vejo-me na obrigação de fazer esta advertência porque, quanto ao restante da história, se é que se pode dar tal nome a este relato, não me é tolerável haver dúvidas, veiculadas por quem quer que seja. Isto destruiria qual­quer sentido para o que agora escrevo, pelo menos do meu ponto de vista, que é o único que me concerne. Conto aqui a mais integral verdade e acredito mesmo que me enfureceria a ponto de matar quem duvidasse dela. Nunca escrevi nada além de eventuais cartas, bi­lhetes ou sermões e o que escrevo neste instante não vem da ambição tola de fazer um livro, mas de um impulso vital e essencial à minha completa existência.

Haverá quem desconfie da veracidade do que lerá aqui, mas se tratará de um ingênuo, um alienado nefelibata, ou um dos incontáveis desavisados que não acreditam que o ser humano é irreparavelmente solitário, do nascimento à morte, convicção que a todo momento fragorosamente se prova insustentável, mas da qual todos parecem necessitar e se recusam a aceitar as irretorquíveis evidências em contrário. Escusando-me por repetir truísmo tão martelado, mas movido pelo conhecimento de que os truísmos são parte inseparável da boa retórica narrativa, até porque a maior parte das pessoas não sabe ler e é no fundo muito ignorante, rol no qual incluo arbitrariamente você, repito o que tantos já dizem e vivem repetindo, como quem usa chupetas: a realidade é, sim, muitíssimo mais inacreditável do que qualquer ficção, pois esta requer uma certa arrumação falaciosa, a que a maioria dá o nome de verossimilhança. Mas ocorre precisamente o oposto. Lê-se ficção para fortalecer a noção estúpida de que há sentido, lógica, causa e efeito lineares e outros adereços que integrariam a vida. Lê-se ficção, ou mesmo livros de historiadores ou jornalistas, por insegurança, porque o absurdo da vida é insuportável para a vastidão dos desvalidos que povoa a Terra. A dúvida quanto a este relato é, portanto, para mim, absolutamente inadmissível e o mataria, sim, se tivesse os meios - e provavelmente os conseguiria -, caso você, que me lê, duvidasse e eu soubesse. Ou, na pior das hipóteses, morreria eu mesmo, se você, como adversário, estivesse à minha altura, o que não acho fácil.

O final da narrativa, porém, apesar de estar bem vivo, ardendo em minha cabeça como a chama de um maçarico, talvez seja algo que se precise omitir ou mudar. Não tenho certeza, o que me causa algum desgosto, porque me decepciona não tê-la. Mas digo que talvez mude o final, por mim e por você. Por mim, entra o quê? Entra principalmente a vontade de enfrentar e expor o medo embutido na existência, o medo perene que não cessa de assombrar cada um e com o qual raramente se aprende a lidar com eficiência. E entra, talvez tão principalmente, a vontade de contribuir para que o homem sucumba de vez perante o que costuma denominar de Mal e que é a parte mais enraizada de sua natureza, a ponto de, para mim, como você na certa perceberá, se prosseguir na leitura, o Mal ser o Bem e o Bem ser o Mal. São ambos nomes para as mesmas coisas. Entram meus interesses, poderia resumir, mas não gosto desta palavra e só a emprego sentindo um laivo azedo na boca. E entra também sua felicidade, se você se ilude em tê-la, nos moldes em que definiram para você, desde criança, contrariando tudo o que é inato em você ou em qualquer outro. Só fazemos o Bem porque somos maus. E só fazemos o Mal porque somos bons. Dá tudo na mesma, mas não vou me dar ao trabalho de explicar o que para mim é tão óbvio que já se tornou tedioso. Desejo estragar, ou macular definitivamente, sua falsa felicidade, se você se ilude em tê-la. Minha esperança é que ela possa mirrar ou extinguir-se inteiramente, para que você veja o mundo como ele é, ou enlouqueça, ou morra, ou ambas as coisas, pois quase todos, insisto, sobrevivem apenas porque crêem que não são sozinhos. São, sim. Você é sozinho e permanentemente ameaçado, e somente um voluntarismo animalesco lhe faz ver o mundo de maneira diversa. E não sei qual dos fins, entre o verdadeiro e os falsos, lhe faria maior mal, apenas isso.

Sou um faroleiro singular, que vive nesta ilhota, ironicamente chamada de Água Santa, por causa de fonte de água pura e cristalina que brota, fraca, mas constante, de uma rocha quase no meio dela, formando uma lagoa minúscula e, logo depois, um pequeno riacho que mal chega à praia. Por que sou singular, direi no momento apropriado, se bem que você poderá ir especulando na direção certa, no decorrer desta leitura, e não precisar de explicações.

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