segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

a coisa sensata

Leia trecho do livro:
2
4 Contos de F. Scott Fitzgerald

A coisa sensata

Ao chegar a Grande Hora do Almoço, o jovem George O'Kelly organizou detalhadamente os papéis em sua escrivaninha, com um ostensivo ar de interesse. Ninguém no escritório devia saber que ele estava com pressa, porque o sucesso é uma questão de aparência, e não fica bem ostentar o fato de que sua cabeça está separada do trabalho por uma distância de mil e duzentos quilômetros.
Mas, finalmente fora do edifício, ele trincou os dentes e começou a correr, só às vezes olhando para a tarde alegre que se abria naquele começo de primavera que inundava a Times Square e pairava a menos de cinco metros das cabeças na multidão. Todos enviesavam os olhos para cima e respiravam fundo o ar de março, mas o sol ofuscava seus olhos, de modo que quase ninguém enxergava ninguém, exceto seus próprios reflexos no céu.
George O'Kelly, cuja cabeça estava justamente a mais de mil e duzentos quilômetros dali, achava aquilo tudo horrível. Correu para o metrô e, por noventa e cinco quarteirões, concentrou o olhar num anúncio que mostrava vivamente como ele tinha apenas vinte por cento de chance de conservar seus dentes pelos próximos dez anos. Na rua 137, interrompeu seu estudo da arte publicitária, saiu do metrô e começou a correr de novo, uma corrida incansável e ansiosa que, desta vez, o levou a sua casa - um quarto num prédio de apartamentos, alto e horroroso, no meio do nada.
Lá estava, em sua mesa, a carta - escrita com tinta sagrada, em papel abençoado. Em toda a cidade, as pessoas, se prestassem atenção, poderiam ouvir bater o coração de George O'Kelly. Ele leu as vírgulas, os borrões, a marca do polegar na margem, e se atirou desesperado na cama.
Sua vida estava uma bagunça, uma bagunça que era corriqueira na vida dos pobres e que persegue a pobreza como aves de rapina. Os pobres se dão mal ou se dão bem, ou vão para o buraco ou apenas vão em frente, à sua maneira - mas a pobreza era tal novidade para George O'Kelly que, se alguém lhe dissesse que seu caso não tinha nada de diferente, ele ficaria espantado.
Menos de dois anos antes, ele se formara com distinção no Instituto de Tecnologia de Massachusetts e arranjara um bom empreno numa firma de engenharia civil no Sul do Tennessee. A vida toda, só pensara em túneis, arranha-céus, grandes represas e pontes de três andares como se fossem dançarinos de mãos dadas, com cabeças da altura de cidades e saias formadas por tramas de cabos. George O'Kelly achava romântico mudar o curso dos rios e a forma das montanhas, de modo que a vida florescesse nas velhas terras incultas do mundo onde até então nunca plantara raízes. Amava o aço, e sempre havia aço por perto em seus sonhos, aço líquido, aço em lingotes e blocos, em vigas, e massas informes de plástico , que esperavam por ele como tintas e telas ao alcance da mão. Aço inexaurível, a ser tornado belo e austero pelo fogo de sua imaginação.
Neste momento, ele trabalhava como agente de seguros, a quarenta dólares por semana, e o sonho se desmilingüia rapidamente às suas costas. A mocinha morena responsável por sua desgraça, essa terrível e intolerável desgraça, esperava que ele a mandasse buscar numa cidade do Tennessee.
Dali a quinze minutos, a mulher de quem ele alugava o quarto bateu à porta para perguntar, com uma gentileza de dar nos nervos, se, já que tinha chegado, não gostaria de almoçar. Disse que não, mas a interrupção o despertara e, levantando-se da cama, escreveu um telegrama.
CARTA ME DEPRIMIU VOCÊ PERDEU A CORAGEM VOCÊ É BOBA ESTÁ CHATEADA NEM PENSE EM TERMINAR POR QUE NÃO NOS CASAMOS LOGO VAI DAR TUDO CERTO
Hesitou por um agitado minuto e acrescentou, numa letra que mal podia reconhecer como sua: "Chego amanhã às seis".
Quando acabou, saiu correndo do apartamento rumo ao correio perto da estação do metrô. Suas posses no mundo não chegavam a cem dólares, mas a carta significava que ela estava "nervosa" e isso não lhe deixava escolha. Sabia o que "nervosa" significava - que ela estava emocionalmente abalada e que a idéia de se casarem e levarem uma vida de luta e pobreza estava sendo demais para o seu amor por ele.

George O'Kelly chegou à companhia de seguros à sua habitual velocidade, uma velocidade que se tornara quase sua segunda natureza e parecia expressar a tensão em que vivia. Foi direto ao escritório do gerente.
"Senhor Chambers, preciso falar com o senhor", anunciou, quase sem conseguir respirar.
"Sim?" Dois olhos, lembrando um par de janelas hibernais, darjedaram sobre ele de forma implacável e impessoal.
"Queria tirar quatro dias de férias."
"Mas... Você tirou férias há apenas duas semanas!", disse o sr. Chambers, surpreso.
"É verdade", admitiu o jovem, meio perturbado, "mas agora preciso tirar de novo."
"Aonde foi da última vez? Para a casa de sua família?"
"Não, fui para... um lugar no Tennessee."
"Pelo menos, você é coerente", disse seco o gerente. "Mas eu não sabia que você tinha sido contratado aqui como caixeiro-viajante."
"Não fui", disse George, já desesperado. "Mas preciso ir!"
"Pois então vá", concordou o sr. Chambers. "Mas não precisa voltar. Portanto, não volte!"
"Não vou voltar." E, para sua surpresa, assim como a do sr. Chambers, o rosto de George ficou róseo de prazer. Sentiu-se feliz, exultante - pela primeira vez em seis meses, estava absolutamente livre. Seus olhos estavam marejados de lágrimas de gratidão e ele apertou calorosamente a mão do sr. Chambers.
"Quero lhe agradecer", disse, num ímpeto de emoção. "Não quero voltar. Acho que eu teria enlouquecido se o senhor dissesse que eu podia voltar. Eu não teria coragem de pedir demissão, sabe, e quero lhe agradecer por... ter me demitido."
Deu adeusinho com a mão, magnanimamente, e gritou ao sair: "O senhor me deve três dias de salário, mas não precisa pagar!", e correu para fora do escritório. O sr. Chambers ligou para sua estenógrafa e perguntou se O'Kelly tinha lhe parecido esquisito nos últimos tempos. Já demitira muita gente em sua carreira e eles tinham reagido de muitas maneiras, mas ninguém até então lhe agradecera por isso - nunca, jamais.

II.

Jonquil Cary era o nome dela, e, para George O'Kelly, nada podia ser tão fresco e pálido quanto seu rosto quando ela o viu e correu para ele ansiosamente na plataforma da estação. Seus braços se abriram para ele e sua boca estava a meio caminho de um beijo quando ela estacou de repente e, com uma ponta de embaraço, olhou em volta. Dois rapazes pouco mais novos que George estavam nas proximidades.
"Lembra-se do senhor Craddock e do senhor Holt?", anunciou, alegremente. "Você os conheceu quando esteve aqui da outra vez."
Perturbado por essa transmutação de um beijo numa apresentação e suspeitando de algum significado oculto, George ficou ainda mais confuso ao descobrir que o carro que os levaria à casa de Jonquil pertencia a um dos rapazes. Parecia colocá-lo em situação desvantajosa. No caminho, Jonquil tagarelava entre os bancos da frente e de trás e, quando ele tentou enlaçá-la pela cintura, beneficiando-se da luz do crepúsculo, ela rapidamente ofereceu a mão, em troca.
"Este é o caminho para sua casa?", ele sussurrou. "Não estou reconhecendo a rua."
"Não, é uma nova avenida. Jerry pegou este carro hoje e queria que eu passasse por ela antes de nos levar para casa."
Vinte minutos depois, ao serem depositados na casa de Jonquil, George sentiu que sua primeira sensação de felicidade, a alegria que reconhecera nos olhos da namorada ao encontrá-la na estação, fora dissipada pela intrusão daquele passeio de carro. Alguma coisa que ele tanto esperava se perdera com a maior naturalidade, e era isso o que o preocupava quando desejou boa-noite aos jovens com voz contida. Mas seu mau humor logo desapareceu quando Jonquil o puxou para seus braços e, à meia-luz do vestíbulo, contou-lhe de todas as maneiras, das quais a melhor foi a sem palavras, quanto sentira a sua falta. A emoção de Jonquil reconfortou-o e prometeu a seu sofrido coração que, no fim, tudo acabaria dando certo.
Sentaram-se juntinhos no sofá, dominados pela presença um do outro e alheios a tudo mais, exceto fragmentárias meiguices. À hora do jantar, os pais de Jonquil apareceram e mostraram-se felizes de ver George. Gostavam dele e tinham se interessado por sua carreira na engenharia quando ele viera pela primeira vez ao Tennessee, um ano antes. Lamentaram que tivesse desistido e ido para Nova York em busca de algo mais imediatamente lucrativo, mas, ao mesmo tempo que deploravam essa interrupção na carreira, solidarizaram-se com ele e aceitavam seu compromisso com Jonquil. Durante o jantar, perguntaram-lhe como estava se saindo em Nova York.
"Tudo muito bem", ele contou com entusiasmo. "Fui promovido - salário melhor."
Sentiu-se miserável ao dizer isso, mas eles ficaram tão felizes.
"Devem gostar de você", disse a sra. Cary. "Isso é certo, ou não o deixariam sair duas vezes em três semanas para vir até aqui."
"Não tiveram escolha", explicou George apressadamente. "Disse que, se não deixassem, não trabalharia mais para eles."
"Mas você precisa guardar algum dinheiro", admoestou-o gentilmente a sra. Cary. "Não devia gastá-lo todo nessa viagem cara."
O jantar chegou ao fim. George e Jonquil viram-se sozinhos e ela voltou para seus braços.
"Que bom que você está aqui", ela suspirou. "Gostaria que nunca mais tivesse de ir embora, querido."
"Sente falta de mim?"
"Ah, muita, muita."
"Você... digo, outros homens vêm visitá-la com freqüência? Como aqueles dois meninos?"
A pergunta a espantou. Os olhos pretos de veludo o encararam.
"Ora, claro. O tempo todo. Ora... eu já lhe contei sobre isso nas cartas."
Era verdade. Quando ele viera à cidade pela primeira vez, havia uns dez rapazes em volta dela, reagindo à sua pitoresca fragilidade com uma adoração adolescente, alguns deles percebendo que seus belos olhos eram também sensatos e gentis.
"Você acha que vou ficar trancada em casa", Jonquil perguntou, reclinando-se contra as almofadas do sofá até parecer que olhava para ele a quilômetros de distância, "e cruzar os braços e ficar parada aqui para sempre?"
"O que isso significa?", ele deixou escapar, em pânico. "Você pensa que eu nunca terei dinheiro para me casar com você?"
"Não tire conclusões apressadas, George."
"Não estou tirando conclusões. Foi o que você disse."
George de repente percebeu que estava pisando em terreno perigoso. Ele não tivera a intenção de permitir que coisa alguma estragasse aquela noite. Tentou envolvê-la de novo nos braços, mas ela resistiu inesperadamente, dizendo:
"Está quente. Vou ligar o ventilador."
Quando o ventilador foi ajustado, sentaram-se, mas agora ele estava muito sensível e, sem querer, mergulhou outra vez no mundo específico que tentara evitar.
"Quando vai se casar comigo?"
"Você está preparado para que eu me case com você?"
De repente ele perdeu o controle dos nervos e se levantou de um salto.
"Vamos desligar esse maldito ventilador", gritou, "ele está me deixando louco. Parece um cronômetro fazendo passar o tempo que estou com você. Vim aqui para ser feliz e esquecer Nova York e..."
Afundou-se de novo no sofá, com a mesma rapidez com que se levantara. Jonquil desligou o ventilador e, acomodando a cabeça dele em seu colo, começou a acariciar-lhe o cabelo.
"Vamos ficar sentados aqui, quietinhos", disse suavemente, "bem quietinhos, e vou fazer você dormir. Você está cansado e nervoso, e sua namorada vai cuidar de você."
"Mas eu não quero ficar quietinho", ele reclamou, erguendo a cabeça bruscamente. "Não quero mesmo. Quero que você me beije. Isso é a única coisa que me fará descansar. E quem disse que estou nervoso? Você é que está nervosa. Não estou nervoso!"
Para provar que não estava nervoso, pulou do sofá e aboletou-se numa cadeira de balanço no outro lado da sala.
"Justamente quando estou pronto para me casar com você, você me escreve essas cartas nervosas, como quem vai dar para trás, e eu tenho de vir correndo..."
"Você não precisa vir, se não quiser."
"Mas eu quero!", insistiu George.
Ele estava se achando muito racional e senhor de si, e estava convencido de que era ela quem tentava deliberadamente desnorteá-lo. Mas, a cada palavra, os dois se afastavam mais - e ele não conseguia parar de falar ou de disfarçar o aborrecimento e a dor em sua voz.
Jonquil começou a chorar, magoada, e ele voltou ao sofá e abraçou-a de novo. Agora, era ele quem a reconfortava, trazendo-lhe a cabeça para junto do ombro, murmurando coisinhas familiares até ela ficar mais calma, só tremendo um pouco, espasmodicamente, nos braços dele. Ficaram ali por mais de uma hora, enquanto os pianos da noite martelavam seus últimos acordes lá fora na rua. George não se movia, nem pensava ou sonhava, entorpecido pela premonição do desastre. O relógio bateu onze horas, doze, e então a sra. Cary chamou-os gentilmente do alto da escada - a partir dali, só o esperavam o amanhã e o desespero.

III.

No calor do dia seguinte, veio o ponto de ruptura. Eles já haviam percebido a verdade um sobre o outro, mas, dos dois, somente Jonquil estava disposta a avaliar a situação.
"Não faz sentido continuar", ela disse, com ar infeliz. "Você sabe que detesta esse negócio de seguros e nunca se dará bem nele."
"Não é isso", ele teimou. "Detesto é continuar sozinho. Se você casar comigo e me acompanhar, e me der uma oportunidade, posso me sair bem em qualquer coisa, mas não enquanto estiver me preocupando com você aqui."
Ela ficou em silêncio por um longo tempo antes de responder. Não estava pensando - pois já tinha enxergado o fim -, mas apenas esperando, porque sabia que cada palavra pareceria mais cruel do que a anterior. Finalmente, falou:
"George, eu amo você de todo o coração, e não vejo como possa amar qualquer outro. Se você estivesse pronto para mim há dois meses, eu teria me casado - agora não posso porque não me parece uma coisa sensata."
Ele lhe fez violentas acusações, havia alguém, ela estava escondendo alguma coisa dele!
"Não, não há ninguém."
Era verdade. Mas, lutando contra a tensão dessa relação, encontrara alívio na companhia de jovens como Jerry Holt, que tinha o mérito de não significar absolutamente nada em sua vida.
George não aceitou bem a situação - ao contrário. Agarrou-a pelos braços e tentou literalmente convencê-la, aos beijos, a se casar com ele de imediato. Quando isso fracassou, atirou-se a um longo monólogo de autopiedade e só parou ao perceber que estava se fazendo de desprezível aos olhos dela. Ameaçou ir embora sem ter a menor intenção de fazer isso e recusou-se a ir quando ela disse que, pensando bem, seria melhor que ele fosse.
Por alguns momentos, Jonquil teve pena; depois, só quis ser delicada. Mas terminou por gritar:
"Por que não vai embora?", e tão alto que a sra. Cary desceu, alarmada, as escadas.
"Algum problema?"
"Vou-me embora, senhora Cary", disse George, aos pedaços. Jonquil já tinha saído da sala.
"Não fique assim, George." A sra. Cary piscou para ele num gesto inútil de solidariedade - triste, mas ao mesmo tempo feliz de que a pequena tragédia estivesse quase no fim. "Se eu fosse você, iria para a casa de sua mãe por uma semana ou mais. Talvez, no fim das contas, esta seja a coisa mais sensata..."
"Por favor, não fale", ele gritou. "Por favor, não diga mais nada agora."
Jonquil voltou à sala. Sua dor e seu nervosismo vinham encobertos sob pó-de-arroz, rouge e chapéu.
"Chamei um táxi", ela disse impessoalmente. "Podemos dar uma volta até seu trem chegar."
Saiu em direção à varanda. George pôs o casaco e o chapéu e, por um minuto, parou exausto no hall - mal tinha beliscado alguma coisa desde que saíra de Nova York. A sra. Cary aproximou-se, puxou a cabeça dele e beijou-o no rosto, e ele se sentiu ridículo e fraco em sua consciência de que, no fim, aquela cena tinha sido ridícula e fraca. Se tivesse ido embora na noite anterior, se a tivesse deixado pela última vez, com seu orgulho intacto.
O táxi chegou e, por uma hora, o casal de ex-namorados rodou pelas ruas menos movimentadas. Ele segurava sua mão e foi se acalmando à luz do sol, constatando muito tarde que não havia nada a fazer ou dizer.
"Um dia vou voltar", ele disse.
"Eu sei", ela respondeu, tentando colorir a voz com um pouco de fé e animação. "E vamos nos escrever - de vez em quando."
"Não", ele disse. "Não vamos nos escrever. Eu não conseguiria suportar. Um dia vou voltar."
"Nunca esquecerei você, George."
Chegaram à estação e ela o acompanhou enquanto ele comprava a passagem.
"Ora, George O'Kelly e Jonquil Cary!"
Eram um homem e uma moça que George conhecera quando trabalhara na cidade, e Jonquil pareceu aliviada com a presença deles. Por intermináveis cinco minutos, ficaram ali conversando; então, o trem entrou rugindo na estação e, com mal disfarçada agonia no rosto, George estendeu os braços para Jonquil. Ela deu um passo incerto em sua direção, hesitou e, rapidamente, apertou sua mão, como se estivesse se despedindo de um simples conhecido.
"Adeus, George", disse. "Espero que faça boa viagem."
"Adeus, George. Venha nos visitar de novo."
Apatetado, quase cego de dor, ele pegou sua maleta e, como um sonâmbulo, entrou no trem.
A máquina atravessou os cruzamentos com seu clangor, ganhando velocidade ao vencer os vastos espaços suburbanos em direção ao pôr-do-sol. Talvez ela também estivesse vendo aquele crepúsculo e parasse por um momento para recordar, antes que o amor se evaporasse no passado com o sono dele. A noite cobriria para sempre o sol, as árvores, as flores e os risos de sua juventude.

IV.

Numa tarde úmida de setembro do ano seguinte, um rapaz de rosto moreno como cobre desceu de um trem numa cidade do Tennessee. Olhou em volta ansioso e pareceu aliviado ao constatar que ninguém na estação o esperava. Tomou um táxi para o melhor hotel da cidade, onde se registrou, com certa satisfação, como George O'Kelly, de Cuzco, Peru.
Já em seu quarto, sentou-se por alguns minutos perto da janela, olhando para a rua tão familiar lá embaixo. Depois, com mão trêmula, tirou o telefone do gancho e discou um número.
"A senhorita Jonquil está?"
"Sou eu."
"Ah..." Sua voz, vencendo uma tendência a vacilar, continuou com formal cordialidade:
"É George O'Kelly. Recebeu minha carta?"
"Sim. Achei que você chegaria hoje."
A voz de Jonquil, fria e impassível, perturbou-o, mas não tanto quanto ele temia. Era a voz de uma estranha, moderadamente feliz em ouvi-lo, mas sem excitações, ele pensou. Queria pôr de lado o telefone e recuperar o fôlego.
"Não nos vemos há... bastante tempo." Ele conseguiu dar um tom cordial à frase. "Mais de um ano."
Sabia muito bem há quanto tempo não se viam, quantos dias.
"Vai ser ótimo revê-lo", ela disse.
"Estarei aí em uma hora."
Desligou. Por quatro longas estações do ano, cada minuto de seu lazer fora ocupado pela expectativa dessa hora, e agora a hora chegara. Pensava encontrá-la casada, noiva, apaixonada - qualquer coisa, menos tão alheia à sua chegada.
Nunca mais haveria em sua vida, pensou, outros dez meses como os que acabara de passar. Ele próprio tinha de admitir que realizara uma notável proeza para um engenheiro da sua idade - tropeçara em duas incríveis oportunidades, uma no Peru, de onde acabava de voltar, e outra, por conseqüência, em Nova York, para onde estava indo. Nesse curto período, passara da pobreza a uma posição de prosperidade sem limites.
Olhou-se no espelho da penteadeira. Estava quase negro de tão queimado, mas era uma cor romântica e, na última semana, desde que tivera tempo para pensar no assunto, essa cor lhe dera considerável prazer. A dureza de seus traços também lhe provocava uma espécie de fascínio. Perdera um pedaço da sobrancelha em algum lugar e ainda estava usando um esparadrapo num joelho, mas era muito jovem para deixar de notar que, no vapor, muitas mulheres o tinham olhado com grande interesse.
Suas roupas, naturalmente, eram horrendas. Tinham sido feitas por um alfaiate grego em Lima - em dois dias. Mas, como era jovem, sentiu-se obrigado a explicar essa deficiente indumentária a Jonquil no lacônico bilhete que lhe enviara. O único outro detalhe contido no bilhete era o pedido de que ninguém o esperasse na estação.
George O'Kelly, de Cuzco, Peru, esperou por uma hora e meia no hotel - para ser exato, até que o sol estivesse bem alto no céu. Depois, recém-barbeado e tendo aplicado talco para tornar sua tez um pouco mais caucasiana - a vaidade sobrepujando-se no último instante ao romantismo -, chamou um táxi e mandou tocar para aquela casa que conhecia tão bem.
Sua respiração parecia forte - percebeu isso, mas disse a si mesmo que se tratava de excitação, não de emoção. Ele continuava aqui; e ela não se casara - era o que bastava. Não sabia direito o que iria dizer-lhe. Mas este era um momento de sua vida que ele nunca teria dispensado. Não haveria triunfo sem uma mulher com quem dividi-lo, e, mesmo que não depusesse seu espólio aos pés de Jonquil, poderia pelo menos exibi-lo por um momento aos olhos dela.
A casa avultou subitamente a seu lado, e o primeiro pensamento de George foi o de que ela assumira uma estranha irrealidade. Nada mudara - apenas tudo mudara. Era menor e parecia mais surrada do que antes - nenhuma nuvem de magia pendia sobre o telhado ou saía das janelas no andar de cima. Tocou a campainha e uma empregada negra, que ele não conhecia, abriu a porta. A srta. Jonquil desceria em um minuto. Umedeceu os lábios nervosamente e caminhou até a sala - e o sentimento de irrealismo aumentou. Afinal de contas, como ele podia ver, aquela era apenas uma sala, e não a câmara encantada onde passara horas tão pungentes. Sentou-se numa cadeira, espantado de que fosse apenas uma cadeira, e se deu conta de que sua imaginação distorcera e colorira as coisas mais simples e familiares.
Então a porta se abriu e Jonquil entrou na sala - e foi como se tudo mais formasse um borrão diante de seus olhos. Ele não se lembrava do quanto ela era bonita e sentiu que seu rosto empalidecera e sua voz se reduzira a um pobre suspiro na garganta.
Ela estava vestida de verde-claro, e uma fita dourada prendia seu cabelo preto por trás, como uma coroa. Os olhos de veludo capturaram os seus assim que ela entrou, e um espasmo de medo atravessou-o diante do poder de sua beleza dolorosa.
Ele disse "Olá", e ambos deram alguns passos à frente e apertaram-se as mãos. Depois, sentaram-se em cadeiras bem distantes e ficaram se olhando através da sala.
"Você voltou", ela disse, e ele respondeu com a mesma falta de jeito:
"Pensei em dar uma parada aqui e ver como você estava indo."
Tentou neutralizar o tremor da voz olhando para qualquer lugar, menos para o rosto dela. A obrigação de falar era dele, mas, a menos que começasse imediatamente a se gabar, parecia que não havia nada a dizer. Nunca houvera nada de casual em suas relações até então - não parecia possível que pessoas na situação deles começassem a falar do tempo.
"Isso é ridículo", ele explodiu, num súbito constrangimento. "Não sei muito bem o que fazer. Minha presença aqui a incomoda?"
"Não." A resposta era, ao mesmo tempo, reticente e impessoalmente triste. Aquilo o deprimiu.
"Você está noiva?", ele perguntou.
"Não."
"Está apaixonada por alguém."
Ela fez que não com a cabeça.
"Ah!" Ele se acomodou na cadeira. Outro assunto já se exaurira - a conversa não estava seguindo o caminho que ele planejara.
"Jonquil", ele recomeçou, desta vez num tom mais baixo, "depois de tudo o que aconteceu entre nós, eu queria voltar e dizer 'Não importa o que eu faça no futuro, nunca vou amar outra garota como amei você'."
Esse era um dos discursos que ele havia preparado. No vapor, ele lhe parecera o mais adequado - uma referência à ternura que sempre sentiria por ela, combinada a uma atitude sem compromisso relativa a seu atual estado de espírito. Aqui, com o passado à sua volta, a seu lado, e pesando mais a cada minuto, o discurso lhe parecia artificial e vazio.
Ela não disse nada. Continuou sentada, imóvel, de olhos fixos nele, numa expressão que podia significar qualquer coisa ou nada.
"Você não me ama mais, não é?", ele perguntou com voz neutra.
"Não."
Quando a sra. Cary entrou, um minuto depois, e falou de seu sucesso - o jornal local dera uma notícia a respeito -, ele sentia uma barafunda de emoções. Sabia agora que ainda queria essa garota, e sabia também que às vezes o passado pode voltar - só isso. No mais, devia ser forte e cuidadoso, para ver no que dava.
"E agora", a sra. Cary estava dizendo, "queria que vocês fossem visitar uma senhora que cultiva crisântemos. Ela me disse que gostaria de conhecê-lo, porque leu a seu respeito no jornal."
Foram visitar a mulher dos crisântemos. Caminharam pela rua e ele se lembrou, com uma espécie de excitação, de como os passinhos mais curtos de Jonquil adequavam-se aos seus. A mulher se revelou muito agradável e os crisântemos eram enormes e extraordinariamente bonitos. Os jardins da mulher estavam repletos deles, brancos, rosa e amarelos - estar entre eles era uma viagem ao coração do verão. Havia dois jardins cheios, divididos por um portão; quando eles se encaminharam ao segundo jardim, a senhora passou primeiro pelo portão.
Então uma coisa curiosa aconteceu. George afastou-se para dar passagem a Jonquil, mas, em vez de entrar, ela parou e olhou para ele por um minuto. O importante não foi o olhar, que não chegava a ser um sorriso, mas o momento de silêncio. Viram-se nos olhos um do outro, ambos sentiram a respiração acelerar e só então entraram no segundo jardim. Só isso.
A tarde desfalecia. Agradeceram à senhora e voltaram devagar para casa, pensativos, lado a lado. Durante o jantar, continuaram em silêncio. George contou ao sr. Cary um pouco do que lhe acontecera na América do Sul e conseguiu passar a impressão de que estava com a vida feita.
O jantar terminou, e ele e Jonquil estavam de novo na sala que fora palco do começo e do fim de seu caso de amor. Tudo lhe parecia muito antigo e indizivelmente triste. Naquele sofá, ele sofrera agonia e dor como nunca mais sentiria. Nunca mais seria tão fraco, exausto, miserável e pobre. E, no entanto, sabia que aquele rapaz de quinze meses atrás tinha alguma coisa, uma confiança, um calor que se perdera para sempre. A coisa sensata - eles tinham feito a coisa sensata. Trocara sua juventude pela força e, do desespero, arrancara o sucesso. Mas, junto com sua juventude, a vida levara o frescor de seu amor.
"Você não quer se casar comigo, não é?", ele perguntou, tranqüilamente.
Jonquil balançou seu cabelo escuro.
"Nunca irei me casar", respondeu.
Ele concordou.
"Vou a Washington amanhã de manhã", ele disse.
"Ah..."
"Tenho de ir. Preciso estar em Nova York no dia 1º-, mas, antes, quero dar uma passada em Washington."
"Negócios!"
"N... não", ele respondeu, como que relutando. "Há uma pessoa lá que foi muito boa comigo quando eu estava tão... por baixo."
Era invenção sua. Não havia ninguém que ele precisasse ver em Washington, mas, ao observar Jonquil bem de perto, teve certeza de que ela se agitou um pouco, que seus olhos se fecharam e depois se arregalaram de novo.
"Mas, antes de ir, gostaria de lhe contar as coisas que me aconteceram desde que nos despedimos e, como talvez nunca mais nos vejamos, fico pensando se... se pelo menos mais uma vez você se sentaria no meu colo como gostava de fazer. Eu não pediria isso, mas já que não há ninguém... então talvez não faça diferença."
Ela concordou e, num momento, estava sentada em seu colo, como fizera tantas vezes naquela primavera perdida. A sensação da cabeça dela contra seu peito, de seu corpo familiar, penetrou-o como um choque. Seus braços, estreitando-a, tendiam a apertá-la contra ele, por isso ele começou a falar de forma bem cuidadosa.
Contou-lhe de suas duas semanas desesperadoras em Nova York, que resultaram num trabalho atraente, mas não muito lucrativo, numa empresa de construção em Jersey City. Quando a proposta do Peru lhe foi apresentada, não parecia uma oportunidade tão extraordinária. Ele seria o terceiro engenheiro assistente numa expedição, mas apenas dez entre os americanos, incluindo oito operários e agrimensores, conseguiram chegar a Cuzco. Dez dias depois, o chefe da expedição morreu de febre amarela. Foi sua chance, a chance para qualquer um que não fosse um trouxa, uma chance maravilhosa...
"Para qualquer um que não fosse um trouxa?", ela interrompeu, inocentemente.
"Até para um trouxa", ele continuou. "Era maravilhosa. Bem, telegrafei para Nova York..."
"E então", ela interrompeu de novo, "eles responderam dizendo que você deveria aproveitar?"
"Deveria?", ele exclamou. "Que eu tinha de aproveitar. Não havia tempo a perder..."
"Nem um minuto?"
"Nem um minuto."
"Nem mesmo para...". Ela fez uma pausa.
"Para quê?"
"Olhe."
Ele inclinou a cabeça para a frente e ela se aproximou dele no mesmo instante, seus lábios entreabertos como uma flor.
"Sim!", ele sussurrou em sua boca. "Há todo o tempo do mundo..."
Todo o tempo do mundo - sua vida e a dela. Mas, por um instante, ao beijá-la, ele sabia que, mesmo que procurasse por toda a eternidade, nunca conseguiria recapturar aquelas horas perdidas de abril. Podia apertá-la contra si até que os músculos fizessem nós em seus braços - ela era algo tão raro e desejável, que ele lutara para ganhar e conseguira conquistar -, mas nunca mais conheceria o murmúrio intangível da penumbra ou da brisa da noite...
Ah, que importância tem, pensou. Aquele abril passou, aquele abril passou. Há todas as espécies de amor neste mundo, exceto o mesmo amor duas vezes.

(1924)

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