sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Coisas Frágeis, de Neil Gaiman

Leia trecho do livro

UM ESTUDO EM ESMERALDA

1.O novo amigo 114930__fragile_l

Recém-chegada de sua estupenda turnê européia, durante a qual se apresentou para várias cabeças coroadas da Europa, arrancando aplausos e elogios com desempenhos dramáticos magníficos, combinando comédia e tragédia, a companhia teatral Strand deseja informar que estará em cartaz no Royal Court Theatre, na Drury Lane, por uma curta temporada em abril, apresentando Meu Irmão Tom, Meu Sósia!, A Pequenina Vendedora de Violetas e Aí Vêm os Gigantes Antigos (este último, um épico histórico cheio de esplendor e encanto), cada qual uma peça completa em um ato! Os ingressos já estão disponíveis na bilheteria.

Acredito que seja a imensidão. O tamanho das coisas lá embaixo. A escuridão dos sonhos.
Mas estou devaneando. Perdoem-me. Não sou um literato.
Eu precisava de hospedagem. Foi assim que o conheci. Eu queria alguém para dividir o aluguel do quarto comigo. Fomos apresentados por um conhecido comum, nos laboratórios químicos de St. Bart’s.
– Percebo que esteve no Afeganistão – foi isso que ele me disse, e meu queixo caiu e meus olhos se arregalaram.
– Incrível – comentei.
– Na verdade, não – continuou o estranho de jaleco branco que se tornaria meu amigo. – Olhando para o seu braço, vejo que o senhor foi ferido, e de modo peculiar. O senhor é bem bronzeado e tem postura de militar, e há poucos lugares do Império onde um militar pode se bronzear e também, considerando a natureza do ferimento no seu ombro e os costumes dos povos afegãos das cavernas, ser torturado.
Explicado assim, claro, parecia absurdamente simples e lógico. E realmente era. Eu tinha mesmo um bronzeado jambo. E de fato fora, como ele observou, torturado.
Longe de serem sensatos, os deuses e os homens do Afeganistão eram selvagens e se recusavam a ser governados por Whitehall, Berlim ou até Moscou. Eu fora enviado para aquelas colinas junto com o _o Regimento. Enquanto a luta .cou nas montanhas, combatemos em pé de igualdade, mas, quando descemos para a escuridão das cavernas, .camos encrencados até o pescoço, em larga desvantagem.
Jamais vou esquecer a superfície espelhada do lago subterrâneo, nem a coisa que emergiu dele, seus olhos abrindo e fechando, e os sussurros melódicos que acompanhavam sua entrada em cena, envolvendo-a como o zumbido de moscas gigantescas.
Que eu tenha sobrevivido foi um milagre, mas sobrevivi, e voltei para a Inglaterra com meus nervos em frangalhos. O lugar onde aquela boca de sanguessuga me tocara .cou tatuado para sempre, uma pele branca feito barriga de sapo, no meu ombro, atualmente atro.ado. Eu já fora um exímio atirador. Agora não me restava nada além do medo do mundo subterrâneo, quase um pânico, que me fazia pagar de bom grado seis pence da minha pensão militar por uma charrete em vez de um penny para viajar de metrô.
Ainda assim, as névoas e a escuridão de Londres me confortavam, me acolhiam. Eu perdera minha moradia anterior porque gritava à noite. Eu estivera no Afeganistão, mas não estava mais lá.
– Eu grito à noite – contei.
– Já me falaram que eu ronco – ele disse. – Também tenho horários irregulares, e costumo praticar a pontaria na lareira. Vou precisar da saleta para receber clientes. Sou egoísta, reservado e me entedio facilmente. Tudo bem para você?
Eu sorri, meneei a cabeça e estendi o braço. Selamos o acordo com um aperto de mão.
Os aposentos que ele encontrara para nós, na Baker Street, eram mais do que su.cientes para dois solteirões. Lembrando o que meu amigo dissera sobre ter privacidade, evitei perguntar qual era a sua pro.ssão. No entanto, muito havia para me instigar a curiosidade. Visitantes chegavam a qualquer hora, e então eu saía da saleta e me recolhia ao meu dormitório, perguntandome o que eles poderiam ter em comum com meu amigo: a mulher pálida com um olho esbranquiçado, o homenzinho que parecia um caixeiro-viajante, o dândi corpulento de paletó de veludo, e o resto deles. Alguns faziam visitas freqüentes, vários outros só vinham uma vez, falavam com ele e iam embora, ora preocupados, ora satisfeitos.
Ele era um mistério para mim.
Certa manhã, quando estávamos nos fartando com um magnífico café-da-manhã servido pela proprietária, meu amigo tocou a sineta para chamar aquela boa mulher.
– Um cavalheiro se juntará a nós em aproximadamente quatro minutos – anunciou ele. – Vamos precisar de mais um lugar à mesa.
– Muito bem – ela disse –, vou pôr mais salsichas na grelha.
Meu amigo voltou a ler o seu jornal. Esperei impacientemente por uma explicação, até que não agüentei mais.
– Não entendo. Como pode saber que daqui a quatro minutos receberemos uma visita? Não houve nenhum telegrama nem mensagem.
Ele sorriu discretamente.
– Não ouviu o barulho de uma carruagem há alguns minutos? Ela diminuiu a velocidade ao passar por aqui. Obviamente, o condutor identi.cou nossa porta, depois acelerou e seguiu rumo a Marylebone Road. Há um congestionamento de carruagens e táxis deixando passageiros na estação de trem e no museu de cera, e é para lá que iria alguém que quisesse desembarcar sem ser notado. A caminhada até aqui leva apenas quatro minutos...
No instante em que ele olhou para o relógio de bolso, soaram passos na escada lá fora.
– Entre, Lestrade – gritou. – A porta está aberta, e suas salsichas já estão saindo da grelha.
Um homem, que deduzi ser Lestrade, abriu a porta, entrou e fechou-a cuidadosamente.
– Eu não deveria – ele disse. – Mas, para dizer a verdade, não tive oportunidade de fazer meu desjejum esta manhã. E certamente não poderia desperdiçar essas salsichas.
Ele era o homenzinho que eu observara em várias ocasiões, que tinha a .- sionomia de um vendedor de bugigangas de borracha ou de elixires milagrosos.
Meu amigo esperou até que a proprietária se retirasse antes de dizer:
– Obviamente, presumo que seja um assunto de interesse nacional.
– Pelos céus! – exclamou Lestrade, e empalideceu. – Não é possível que a notícia já tenha se espalhado. Diga que não é verdade. – Ele começou a encher seu prato com salsichas, .lés de salmão, kedgeere1 e torradas, mas suas mãos tremiam um pouco.
– Claro que não – respondeu meu amigo. – Acontece que, depois de tanto tempo, eu já reconheço o ranger das rodas de sua carruagem: um sol sustenido oscilante modulando um dó alto. E se o inspetor Lestrade, da Scotland Yard não pode ser visto entrando na sala do único consultor investigativo de Londres, e ainda assim ele entra, e antes de tomar o café, então sei que o caso não é de rotina. Logo, deve envolver aqueles que estão acima de nós e ser um assunto de interesse nacional.
Lestrade limpou a gema de ovo do queixo com o guardanapo. Olhei para ele. Não se parecia com a imagem que eu fazia de um inspetor de polícia – mas até aí, meu amigo tampouco se parecia com a imagem que eu tinha de um consultor investigativo, seja lá o que fosse isso.
– Talvez devêssemos discutir o assunto em particular – disse Lestrade, olhando para mim.
Meu amigo deu um sorrisinho maldoso e balançou a cabeça como sempre fazia quando estava se deleitando com alguma brincadeira secreta:
– Bobagem. Duas cabeças pensam melhor do que uma. E o que é dito para um de nós dois é dito para ambos.
– Se eu estiver atrapalhando... – comecei, emburrado, mas ele acenou para que eu .casse quieto.
Lestrade deu de ombros.
– Para mim, dá no mesmo – comentou, depois de um momento. – Se você resolver o caso, continuarei empregado. Caso contrário, estarei na rua. Só lhe peço que use seus métodos, porque as coisas não poderiam estar piores do que já estão.
– Se há algo que podemos aprender com a história, é que as coisas sempre podem piorar – disse meu amigo. – Quando iremos para Shoreditch?
Lestrade deixou cair o garfo.
– Assim não dá! – exclamou. – Você fica aí zombando de mim, quando já sabe tudo sobre o caso! Deveria se envergonhar...
– Ninguém me contou nada sobre o caso. Quando um inspetor da polícia entra em minha sala com barro amarelo-mostarda fresco em suas botas e calças, certamente posso ser perdoado por presumir que ele passou recentemente pelas escavações da Hobbs Lane, em Shoreditch, que é o único lugar de Londres, aparentemente, onde se pode encontrar barro dessa cor.
O inspetor Lestrade disse, constrangido:
– Agora que você explicou, parece tão óbvio. Meu amigo afastou o seu prato.
– Claro que parece – replicou, com certa irritação.
Eu e meu amigo pegamos um táxi para o East End, enquanto o inspetor Lestrade foi procurar sua carruagem na Marylebone Road, deixando-nos a sós.
– Então você é realmente um consultor investigativo?
– O único em Londres, ou talvez no mundo – respondeu ele. – Eu não aceito casos, apenas faço consultas. As pessoas me contam seus problemas insolúveis com detalhes, e às vezes eu os resolvo.
– Então aquelas pessoas que procuram você...
– São, na maioria, policiais ou mesmo detetives, sim.
Naquela bela manhã, sacolejávamos nos arredores do cortiço de St. Giles, um covil de ladrões e assassinos que assola Londres como um cancro no rosto de uma bela .orista. A luz que entrava na cabine era fraca e pálida.
– Tem certeza de que quer que eu o acompanhe?
Em resposta, meu amigo me olhou sem piscar:
– Tenho a sensação de que nos conhecemos por algum motivo. Que já lutamos o bom combate, lado a lado, no passado ou no futuro, não sei. Sou um homem racional, mas aprendi a dar valor a um bom companheiro e, desde que o vi, percebi que con.ava em você tanto quanto con.o em mim mesmo. Sim, quero que me acompanhe.
Fiquei vermelho, ou falei algo sem sentido. Pela primeira vez desde o Afeganistão, senti que eu tinha valor no mundo.

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