sábado, 20 de dezembro de 2008

Baltimore e o Vampiro, de Mike Mignola e Christopher Golden

Leia trecho do livro:Baltimore

Em uma fria noite de outono, sob um céu negro despido de estrelas  e sem lua, o capitão Henry Baltimore apanha seu rifle, fita o sombrio abismo do campo de batalha e sabe, dentro de sua alma, que estas são as câmaras de tortura do inferno, certo de que a perdição o aguarda poucos passos à frente.

Ele pára apoiado em um joelho, tentando ouvir, porém o único som audível vem do gélido vento outonal que traz consigo um fedor de morte e ruína. Baltimore acena para os homens que o seguem descobrindo caminhos em meio ao negrume e então se arrasta até uma pequena elevação que poderia ser um monte de lama remexida pela guerra... ou um amontoado de corpos.

Ele se ajoelha atrás da barragem; na verdade, uma inocente pilha de terra revolvida na escavação de uma trincheira. Mas Baltimore não sente alívio algum por essa descoberta, exceto pelo fato deste pequeno morro oferecer melhor proteção do que um monte de cadáveres. Balas atravessam carne putrefeita muito mais fácil do que terra dura.

No meio da noite, apenas um lunático tentaria cruzar a devastada terra de ninguém que separa seu batalhão dos campos hessianos. A tundra revirada está repleta de trincheiras úmidas, lamacentas e cravejada de corpos já sem vida. Fardos de arame farpado se estendem como enormes serpentes pelo campo.

No entanto, o termo lunático lhes caía bem. O comandante do batalhão ordenou que alguém atravessasse aquele sinistro caminho no escuro para atacar os inimigos em seu próprio território. O desespero exigia isso. Sem alguma reviravolta do destino, trazida pelos deuses ou pelos homens, ao amanhecer eles estariam em uma situação tenebrosa.

A missão foi entregue ao capitão Baltimore.

Ele liderou seu pelotão quarenta e cinco metros adentro da terra de ninguém, para longe da segurança do acampamento, para fora da floresta, que agora parecia ter ficado muito distante. Adiante, restam ainda ao menos quatro vezes essa distância até que eles alcancem uma cobertura razoável. Os hessianos estão acampados nos densos bosques no lado oposto do campo de batalha.

Baltimore sabe que está nos confins do mundo. O que mais explicaria o pavor que se esgueira no vazio de seu peito e envolve sua alma? Ele deve estar nas fronteiras do inferno, pois não consegue vislumbrar solo mais distante de sua família e do conforto de seu lar. Mas é essa a natureza da guerra. Tornar-se um soldado, derramar sangue e abater as almas dos homens em nome da fé ou da pátria, significa viajar para tão longe de casa que esta mesma se torna uma memória tão distante e querida quanto a inocência.

Ele sente saudade dessas duas coisas, mesmo finalmente percebendo – apenas agora, apenas aqui – que, para ele, ambas se perderam para sempre.

Quando garoto, ele ficava em seu quarto nos dias de chuva para brincar com seus soldadinhos de chumbo, separando-os em exércitos inimigos e fazendo-os trucidar uns aos outros no campo de batalha de seu cobertor. Mas soldadinhos de chumbo não sangram. Eles voltam para sua caixa e sobrevivem para guerrear no dia seguinte.

Soldados de carne e osso também acabam em caixas, mas feitas de madeira mais pesada. Baltimore já viu soldados demais sangrarem e acabarem em pedaços nessas caixas. O medo corre por suas veias agora, dificultando seus movimentos. A morte o espera naquele terreno destroçado e ele não tem vontade alguma de encontrá-la. Seus ossos ardem com um calafrio causado mais pelo terror e pela angústia do que pelo ar de novembro, e ele mal consegue respirar.

Ele ergue sua mão e sinaliza para seus homens, primeiro para a esquerda, depois para a direita. Em duas linhas, eles correm adiante, flanqueando sua posição pelos dois lados. Seus movimentos são um mero sussurro em meio à escuridão, mas, para Baltimore, soam alto demais. Conforme os soldados se aproximam, ele pode ouvir a suave cadência das botas contra o chão duro e grunhidos profundos de homens amargos cansados de matar.

Eles tomam forma entre as trevas: figuras equipadas com os capacetes achatados das forças aliadas e rifles em punho. Mais próximo a Baltimore está o sargento Tomlin, que segura o rifle em seus braços como um bebê recém-nascido.

O céu noturno parece baixo por causa das nuvens volumosas. Apenas uma mísera réstia de luz vaza pelos céus. Os olhos de Tomlin cintilam na escuridão e, agora que ele está perto, Baltimore percebe a urgência em seu rosto. Sua pele se retorce de medo e seu peito dói com o martelar de seu coração. Baltimore nunca foi um covarde, mas por um momento ele hesita, no pior lugar imaginável para uma pausa como essa.

Sem outra escolha, ele acena com a cabeça, ergue sua mão e sinaliza novamente.

Formas enegrecidas cruzam o campo. Baltimore e o sargento Tomlin se separam, circundam o morro lamacento e, mesmo a essa distância, o sargento parece pouco mais que uma mancha escura de sombra em movimento. Baltimore agarra seu rifle com tanta força que suas mãos doem. Suas pernas parecem ter vontade própria, carregando-o pelo terreno arrebentado. Ele quase tropeça sobre um soldado morto, cujo corpo fora tão violentamente calcinado que agora é impossível saber se ele era aliado ou inimigo. O rosto do homem escorreu como cera derretida.

– Meu Deus – murmura Baltimore para a noite.

Tomlin se apressa pela esquerda para encontrar seu destacamento enquanto Baltimore desvia o olhar do cadáver para se juntar ao grupo pela direita. Suaves lamentos e o leve farfalhar da lona e do algodão de seus uniformes podem ser ouvidos pela linha onde o grupo de Tomlin se reúne, embora a noite já tivera mergulhado seus corpos na escuridão.

Agachado, Baltimore se esgueira pelo solo acidentado, enquanto seus homens seguem pelos lados. Ele ergue uma das mãos e olha à sua volta procurando Norwich, o cabo que leva o alicate, e o encontra logo ao seu lado com as hastes da ferramenta despontando de sua mochila.
Um de cada vez, eles se aproximam do arame farpado, um confuso emaranhado da altura de um homem. Baltimore se ajoelha e faz um sinal para o cabo Norwich. O soldado entrega seu rifle ao companheiro ao lado e puxa o alicate de sua mochila. Com agilidade e o máximo de silêncio possível, Norwich começa a cortar os fios. Mais adiante, o destacamento de Tomlin irá fazer o mesmo.

Baltimore se levanta e tenta olhar para o outro lado do campo de batalha através da muralha de escuridão. As árvores mais próximas do descampado são como listras de sombra contra as trevas mais profundas da floresta.

Norwich havia chegado à metade do rolo de quase dois metros de arame farpado. Nos pontos onde ele já abrira caminho, o arame se retorceu para trás como a carne em volta de um ferimento. Norwich secciona um arame que chicoteia para trás e corta seu rosto, rasgando sua carne. O cabo solta um profundo gemido, larga o alicate e traz a mão ao rosto, sem soltar um grito ou impropério. Baltimore se apressa pela abertura no arame farpado. Faz um sinal para o soldado que está com o rifle de Norwich e juntos os dois o arrastam pelas pernas para fora dali.

Os olhos do cabo estão arregalados pela dor e por uma profunda fúria desorientada. O sangue deixa rastros negros por seu rosto, vazando pela mão pressionada contra a ferida.

Baltimore acena com a cabeça para Norwich aprovando seu esforço para se manter em silêncio. Em seguida, gesticula para o soldado que o ajudou a puxar o cabo para fora dos arames, um comando silencioso para que pegue o alicate e continue o trabalho. Ele hesita por um instante, como se na esperança de que a ordem fosse para algum outro soldado, e então se arrasta relutante para dentro dos arames e pega o alicate do chão.

Uma figura indefinida de manchas negras e acinzentadas se aproxima, emergindo entre o amontoado de soldados que aguardam. Ela tira seu capacete achatado e Baltimore reconhece o médico, Stockton. O homem enfia a mão em uma bolsa que traz presa ao ombro e retira uma pequena caixa de primeiros socorros. Com rapidez, enquanto o esquálido soldado corta fio após fio do arame, abrindo uma trilha entre os rolos farpados, Stockton limpa a ferida de Norwich e espalha uma pomada coagulante sobre ela. Não há nada mais a ser feito. Pela localização do corte, ficaria muito difícil fazer uma atadura ali no campo.

Stockton dá uma última olhada no corte, mas no escuro é impossível perceber maiores detalhes. O médico faz um sinal de positivo para o capitão Baltimore e segue agachado até se juntar aos soldados que aguardam a ordem para prosseguir. Uma silhueta escura usando um capacete como aquele de Mercúrio, porém sem asas, entrega-lhe seu rifle.

O esquálido soldado emerge dos arames, abaixado. Ele havia terminado o trabalho que Norwich começara. Agora, eles têm um caminho aberto.

Fazendo uma careta, Norwich se levanta e pega o alicate para guardá-lo em sua mochila. Ele e o soldado disparam um olhar de expectativa para seu capitão. Baltimore acena para que sigam adiante. O soldado Macintosh assume a ponta. Baltimore não teria como confundir a silhueta daquele gigantesco brutamonte. O capitão se junta aos seus homens como o quinto da fila enquanto eles atravessam com pressa o buraco aberto entre o emaranhado de arame farpado.

Ao saírem do outro lado, eles se espalham, fazendo uma fileira ao longo da parte interna da parede de arames. Baltimore examina o campo de batalha esburacado e destruído logo à frente. O vento fica mais forte. Ele estremece enquanto um calafrio atravessa seu uniforme e se embrenha em seus ossos.

A menos de três metros à frente fica uma trincheira que se abre como um corte talhado na terra. A escuridão naquele fosso faz a noite parecer clara. Pela esquerda, o destacamento de Tomlin já deve ter atravessado, completando o pelotão. Eles esperarão suas ordens, como se houvesse alguma outra escolha possível além de seguir em frente, descendo pela trincheira e saindo pelo outro lado

Baltimore ergue sua mão para comandar o avanço.

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