terça-feira, 26 de julho de 2011

VERÃO

J.M. COETZEE

  Coetzee, Verão

Outra das mulheres que dão depoimentos sobre o personagem John Coetzee:

“Uma noite, John chegou num estado de excitação que não era normal. Estava com um pequeno toca-fitas e pôs um cassete, um quinteto para cordas de Schubert. Não era o que se pudesse chamar de música sexy, nem eu estava muito no clima, mas ele queria fazer amor e, especificamente – perdoe se sou explícita –, queria que a gente coordenasse nossas atividades com a música, com o movimento lento.

Bom, o movimento lento em questão pode ser muito bonito, mas eu achava que estava longe de ser excitante. Some-se a isso que eu não conseguia esquecer a imagem da caixa do cassete: Franz Schubert parecendo não um deus da música, mas um funcionário vienense com gripe.

Não sei se você lembra do movimento lento, mas tem uma longa ária de violino com a viola pulsando por baixo, e dava para sentir John tentando manter o mesmo ritmo. A coisa toda me parecia forçada, ridícula. De alguma forma o meu distanciamento passou para John. ‘Esvazie e mente’, ele sussurrou para mim. ‘Sinta através da música.’

Bom, não tem nada mais irritante do que dizerem o que você tem de sentir. Eu me afastei dele e esse pequeno experimento erótico desmoronou na hora.

Depois, ele tentou se explicar. Queria me provar alguma coisa sobre a história do sentimento, ele disse. Sentimentos tinham histórias naturais próprias. Eles surgiam no tempo, floresciam por um momento ou não conseguiam florescer, depois morriam ou murchavam. Os sentimentos dos tipos que floresceram na época de Schubert estavam mortos, em sua maioria. O único jeito que nos restava para reexperimentar esses sentimentos era por meio da música da época. Porque a música era o traçado, a inscrição do sentimento.

Tudo bem, eu disse, mas por que nós temos de trepar ouvindo a música?

Porque acontece que o movimento lento do quinteto é sobre trepar, ele respondeu. Se em vez de resistir, eu tivesse deixado a música fluir em mim e me animar, eu teria experimentado vislumbres de alguma coisa bem rara: como era fazer amor na Áustria pós-Bonaparte.

‘Como era para o homem pós-Bonaparte ou como era para a mulher pós-Bonaparte?’, eu perguntei. ‘Para o senhor Schubert ou para a senhora Schubert?’

Isso o deixou realmente chateado. Ele não gostava que brincassem com suas teorias favoritas.

‘Música não tem nada a ver com trepar’, continuei. ‘Música tem a ver com as preliminares. Tem a ver com a corte. Você canta para a donzela antes de ir para a cama com ela, não enquanto está na cama com ela. Você canta para seduzir a moça, para ganhar seu coração (…). Se não está contente comigo na cama, talvez seja porque você não conquistou meu coração’.

Eu devia ter parado por aí, mas não parei, fui em frente: ‘O erro que nós dois cometemos’, eu disse, ‘foi que nós pulamos as preliminares (…). Sexo é melhor quando tem antes uma boa e longa corte. Mais satisfatório emocionalmente. Mais satisfatório eroticamente também. Se você está querendo melhorar a sua vida sexual, não vai conseguir isso me fazendo trepar no ritmo da música.’

Eu estava bem preparada para ele reagir, para discutir a questão do sexo musical, mas ele não mordeu a isca. Em vez disso, ficou com uma cara amarrada, derrotada, e virou de costas para mim (…).

Então, lá estávamos. Eu tinha tomado a ofensiva, não podia voltar atrás. ‘Volte para casa e treine a sua corte’, eu disse ‘Vá. Vá embora. Leve o seu Schubert com você. Volte quando souber fazer melhor as coisas.’

Foi cruel, mas ele mereceu, por não revidar.

‘Certo – eu vou’, ele disse, com uma voz amuada. ‘Tenho mesmo coisas para fazer’. E começou a vestir a roupa.

Coisas para fazer! Eu peguei o objeto mais à mão, que por acaso era um pratinho de barro cozido bem bonito, marrom com a borda pintada de amarelo (…). Por um instante eu ainda consegui enxergar o lado cômico da coisa: a amante de madeixas escuras e seios nus exibindo seu temperamento centro-europeu xingando aos berros e atirando a louça. Aí, joguei o prato.

Bateu no pescoço dele e caiu no chão sem quebrar. Ele encolheu os ombros e virou com um olhar perplexo para mim. ‘Vá!’, eu gritei, talvez tenha berrado mesmo, e gesticulei para ele. Chrissie acordou e começou a chorar.

Estranho dizer que não senti nenhum remorso depois. Ao contrário, fiquei animada, excitada, orgulhosa de mim mesma.Direto do coração!, eu disse para mim mesma. Meu primeiro prato!”

Michel Laub.

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