quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

O Orientalista, de Tom Reiss

Leia trecho do livro

CAPÍTULO 1
A Revolução

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LEV NUSSIMBAUM NASCEU EM OUTUBRO DE 1905, na época em que a cultura tolerante e haute capitaliste de Baku começava a entrar em decadência. No dia 17 de outubro, o czar Nicolau II prometeu a seu povo uma constituição. Essa foi uma falsa promessa destinada a provocar um curtocircuito no crescente desejo de revolução e nos movimentos por toda a Rússia com badernas, pilhagens e assassinatos que estavam na ordem do dia. Em Baku, os cossacos cavalgavam pela cidade atacando cidadãos com o pretexto de restabelecer a ordem, enquanto azerbaijanos e armênios transformavam sua cidade cosmopolita em zona de guerra medieval. Elegantes villas eram cercadas se seus proprietários pertencessem a um grupo étnico ou religioso que desagradasse a um determinado grupo de baderneiros. Como outros autores nascidos nos últimos anos de um império em decadência, Lev idealizava aquele seu mundo que finalmente sucumbiu pouco depois de ele completar 15 anos, quando muitos habitantes precisaram fugir para salvar suas vidas, alguns deixando o jantar servido à mesa. Lev se recordava de Baku como um lugar cuja benevolência tinha raízes na antiguidade e na relativa fraqueza das autoridades que a governavam. Lev passaria o resto da vida opondo-se aos revolucionários que acabaram com a complexa rede das antigas religiões e dos antigos impérios, substituindo-a por um novo credo autoritário. Para Lev, as forças revolucionárias responsáveis pelas mudanças políticas seriam sempre lembradas pela "loucura furiosa que tomou a cidade de assalto",

pelos esgares que o povo passou a usar no lugar de seus rostos. Tudo que havia de mais infernal, de mais animalesco, de mais medíocre de que a natureza humana é capaz estava escrito naqueles esgares. Era como se as expressões daqueles rostos, tendo sido dominadas pela violência, tivessem atingido uma nova liberdade e se apresentassem agora em sua forma mais estúpida, mais animalesca e "livre". (...) O bolchevismo começou por transformar rostos humanos em esgares. A cidade de Baku não tinha qualquer registro do nascimento de Lev Nussimbaum em seus arquivos. Tampouco o tinham as cidades de Tiflis e Kiev, Odessa ou Zurique. Lev sugeriu, em um dos muitos relatos de seus primeiros anos de vida, esse publicado em um jornal de Berlim em 1931, que ele não havia nascido em lugar algum:

Nascido em...? Aqui tem início a problemática natureza da minha existência. A maioria das pessoas é capaz de indicar uma casa ou pelo menos uma cidade onde nasceram. A esse lugar, ou a essa casa, uma pessoa faz peregrinações nos seus últimos anos de vida, a fim de se deleitar com recordações sentimentais. Eu teria que fazer uma peregrinação a um vagão de um trem expresso. Nasci durante a primeira greve ferroviária da Rússia, no meio das estepes russas, entre a Europa e a Ásia. Minha mãe retornava de Zurique, sede dos revolucionários russos, para Baku, onde morava nossa família. No dia em que nasci, o czar proclamou o manifesto no qual assegurava aos russos que eles teriam uma constituição. No dia de minha chegada a Baku, a cidade estava tomada pelas chamas da Revolução e multidões estavam sendo massacradas. Eu mesmo tive que ser levado até meu pai em um cocho de cavalo tomar água, e meu pai quis atirar-me para fora de casa juntamente com minha ama-de-leite. Assim teve início minha existência. Pai: um magnata da indústria do petróleo; mãe: uma revolucionária radical.

Nessa versão da história de seu nascimento, Lev veio ao mundo em meio à convulsão política e social que determinou sua vida, e em seus muitos relatos acerca de sua família e de sua origem ele jamais se desviou desses fatos básicos.* E por mais absurda que essa história pareça, ela pode ser verdadeira. Outras fontes dão conta de história semelhante, inclusive a governanta alemã de Lev, Alice Schulte. Frau Schulte escreveu suas memórias de Lev com uma caligrafia caprichada, na década de quarenta, em um convento no norte da Itália onde passou a viver depois que o menino que ela acompanhara por toda a vida tornou-se um homem perseguido. Ela parece ter se sentido obrigada a colocar os fatos da vida confusa de Lev em alguma ordem, porém o documento é frustrante por ser muito breve. E como Frau Schulte está enterrada como indigente em um cemitério próximo ao convento desde 1958, perdeu-se essa preciosa fonte de informação. O primeiro livro de Lev, Sangue e petróleo no Oriente, estabelece as bases do mito no qual o autor estava por se transformar, ligando sua história pessoal à história do Cáucaso. Lev apresenta seu pai, Abraham, a passear diante da cadeia local, com "um gorro oriental de lã de carneiro na cabeça e nas mãos um rosário de âmbar sem o que ninguém pode passar em Baku". Os traços bronzeados do pai, que Lev em outra parte atribuiu a uma herança racial equilibrada das aristocracias persa e turca, revelavam "uma expressão facial imperturbável, fatigada, mas também a de um homem ansioso por ação, a expressão de um oriental que trocou suas antigas tradições de comando pela vida social da jovem cidade petrolífera". Nesse relato seu pai compra a liberdade de sua mãe ("uma moça muito jovem de olhos escuros(...) membro do Partido Bolchevista da Rússia"), que se encontrava em uma prisão imperial aguardando para ser deportada como agitadora política. Abraham prontamente casa-se com ela e a leva para seu harém. A mãe de Lev, por sua vez, assume o controle da casa e despacha o harém. *O significado dos acontecimentos do dia em que ele nasceu assombraria Lev por toda sua vida, mas ele nunca soube ao certo que dia foi aquele. Às vezes ele o datava de 20 de outubro, mas outras vezes falava em final de outubro ou início de novembro; seu pai lhe disse que ele havia nascido em outubro, mas tampouco tinha certeza do dia. Para aumentar a confusão, havia ainda o fato de o calendário tradicional da Rússia, o calendário juliano em vigor até 1917, diferir do moderno calendário gregoriano em 11 dias. Portanto, em certo sentido, Lev poderia ter nascido em outubro e em novembro. Não é de surpreender que ele tenha comemorado seu aniversário certa vez em Nova York durante uma semana. A idéia de que Abraham Nussimbaum fosse um aristocrata muçulmano de origem persa e turca — qualquer coisa menos um judeu de origem européia — era parte do personagem que Lev criou para si. O velho Nussimbaum nasceu, de fato, em Tiflis — atualmente Tbilissi, a capital oficial do Cáucaso administrado pela Rússia — no dia 24 de agosto de 1875. (O registro deste nascimento existe.) O pai de Lev era um judeu asquenaze cujos pais haviam chegado ao Cáucaso vindos de Kiev ou de Odessa, os grandes centros judaicos da Área de Estabelecimento fora dos quais os judeus russos não tinham permissão para viajar ou trabalhar (apesar de muitos deles conseguirem, por meio de suborno, ir para outros lugares do império). A Área de Estabelecimento consistia de territórios que haviam caído sob o domínio do cada vez mais reduzido commonwealth polonês — basicamente a Bielorússia, a Lituânia e a Ucrânia ocidental — até serem anexados à força por Catarina, a Grande em 1772, 1793 e 1795.* Juntamente com milhões de cristãos ortodoxos e de católicos eslavos, quase meio milhão de judeus passaram a ser súditos do Império Russo expandido. Até a anexação dos territórios poloneses, o Império Russo praticamente não tinha judeus e encontrava-se muito mal preparado para lidar com aquele novo acréscimo à sua composição étnica e religiosa. A solução oficial do governo russo para a questão dos judeus foi confiná-los às áreas que Catarina havia anexado — conhecidas como Área de Estabelecimento. Na prática, isso criou o maior gueto da história, uma vasta prisão geográfica para os novos judeus "russos". Os territórios que compreendiam a Área de Estabelecimento eram provincianos, anti-semitas e sujeitos a desabastecimento e a outras crises econômicas. *O que a princípio foi uma invasão limitada de território pelos monarcas da Rússia, da Prússia e da Áustria tornou-se um desmembramento territorial em grande escala na década de 1790, depois que os poloneses, inspirados pelos ventos vindos da França, aboliram sua monarquia e redigiram uma constituição. A czarina Catarina liderou o ataque para a eliminação das "contagiosas idéias democráticas" da Polônia. Do ponto de vista pós- 1939, a solução de Catarina — o desmembramento à força da Polônia, com tropas alemãs atacando pelo oeste e tropas russas atacando pelo leste — parece uma espécie de ensaio feito no século XVIII para o pacto entre Hitler e Stalin. A Rússia já era uma terra de tamanho fervor religioso que até mesmo seus governantes cristãos ortodoxos eram considerados hereges por uma grande percentagem de seu povo: os "Antigos Crentes" — milhões de fundamentalistas apocalípticos que não aceitavam algumas pequenas modificações do ritual da igreja russa feitas no século XVII para aproximá-la das práticas ortodoxas gregas. Os Antigos Crentes ficaram tão revoltados com a possibilidade de aquelas modificações prejudicarem sua salvação eterna que se lançaram em grandes rebeliões contra as "legiões de anticristos" do czar e, em protesto, muitos imolaram-se pelo fogo (mas ainda havia cerca de 13 milhões deles quando Lev nasceu). Havia também os "judaizantes", cristãos que decidiram renunciar a Cristo e seguir apenas o Antigo Testamento, guardando o sábado como dia sagrado, além de adotar vários outros costumes judaicos sem, todavia, considerarem- se judeus. Auxiliados pelos eremitas trans-Volga, os judaizantes levaram a ortodoxia russa até o ponto mais próximo que ela esteve de uma reforma — e provocaram uma reação que barrou a presença dos verdadeiros judeus da Rússia ao longo dos três séculos seguintes. Quando o czar Ivan III, que gostava dos judaizantes, convidou-os a ir a Moscou, estes acabaram por converter tantos membros da nobreza da corte nas últimas décadas do século XV que os tradicionalistas sentiram necessidade de fazer oposição a essa tendência selecionando alguns deles para serem queimados em praça pública. O clero ortodoxo também pressionou os czares a banir os judeus, que eram acusados de ter dado início à heresia dos judaizantes; a expulsão foi levada a cabo em meados do século XVI, motivo pelo qual o império era tão desprovido de judeus quando adquiriu a Área de Estabelecimento no final do século XVIII. Assim como a maçonaria — com a qual era intimamente associado, principalmente depois que os maçons russos adotaram a Cabala e começaram a eleger os "Cohens" para seus templos — o judaísmo era simplesmente considerado uma religião explosiva e contagiosa demais para ser permitida em território russo. As permanentes crises religiosas da Rússia acrescentaram premência ao desejo oficial de converter sua grande e nova população de judeus. Em 1817, o czar Alexandre I fundou pessoalmente a Sociedade dos Israelitas Cristãos, mas teve menos sorte na derrota do judaísmo do que havia tido derrotando Napoleão; ao contrário, servos e comerciantes não judeus de áreas próximas à Área de Estabelecimento começaram a dar preocupantes sinais "judaizantes". A religião ainda era uma força tão anárquica e volátil na Rússia que quando o czar Alexandre morreu em 1825, em uma viagem ao Mar Negro, muitos russos insistiram em dizer que ele não tinha realmente morrido, mas que havia aderido secretamente a uma nova seita e que passara a percorrer o país com o nome de Fedor Kuzmich. No século XIX foram muitos os planos, por parte do czar e de seus opositores revolucionários, para lidar com o "elemento estranho", os judeus. Os planos foram se tornando cada vez mais violentos no decorrer do século. Na década de 1820, o conde Pestel, um nobre livre-pensador, sugeriu que fosse dado aos judeus um Estado independente na Ásia Menor e que eles fossem deportados em massa para lá. Porém já no final daquele século, Constantine Pobedonostsev, principal conselheiro dos dois últimos czares, sugeria que o "problema judaico" da Rússia fosse resolvido em três partes: um terço deveria emigrar, um terço deveria adotar o cristianismo e um terço deveria morrer de inanição. A Okhrana, a polícia czarista, forjou um documento que se tornou conhecido como Os protocolos dos sábios do Sião, um suposto plano de tomada do poder pelos judeus através de uma revolução global. Durante a abortada revolução de 1905, a Rússia foi varrida por pogroms que chocaram o mundo. Nesse vasto império anti-semita, o Cáucaso era um excepcional oásis. Ali os judeus eram simplesmente uma minoria em meio a outras, por sinal uma minoria antiga e bastante admirada. Muitos judeus haviam fugido para lá com a destruição do Segundo Templo, no ano 70 da era cristã, e o Azerbaijão tinha absorvido remanescentes do exílio da Babilônia, que fugiram para as terras altas ao norte de Baku durante a conquista islâmica da Pérsia. Até mesmo os judaizantes, os judeus nãojudeus da Rússia, lá encontraram abrigo e se estabeleceram nas florestas junto à fronteira entre a Pérsia e o Azerbaijão. Aos olhos dos cãs muçulmanos que governavam grande parte do Cáucaso, a condição dos judeus como Povo do Livro situava- os um pouco acima dos zoroastras e das várias seitas pagãs. Judeus asquenazes da Área de Estabelecimento partiram clandestinamente para o Cáucaso — uma viagem de poucos dias através do Mar Negro — ao lon- go do século XIX. Esse movimento tornou-se mais intenso com o boom do petróleo a partir de 1870. É provável que o avô de Lev tenha migrado da Área de Estabelecimento para Tiflis nos anos 1850 ou 1860, e que seu pai tenha saído de Tiflis para Baku no início dos anos 1890. Lev jamais revelou essa parte de seu passado, mas é provável que Abraham Nussimbaum tenha visto em Baku o mesmo que viu seu contemporâneo Ossip Benenson, outro judeu asquenaze que enriqueceu com o petróleo. Flora, filha de Benenson, relata que seu pai pouco depois de casar-se, por volta de 1880, deixou a família na Área de Estabelecimento porque "tinha visões do distante Cáucaso, um lugar que no século XIX fazia parte dos sonhos românticos de todos os jovens russos... [porém ele] nada tinha de romântico; foi seu espírito de jogador que o levou a arriscar-se em um lugar tão distante de suas raízes". Flora Benenson cresceu no mesmo ambiente que Lev. Ambos milionários em uma cidade onde os judeus eram minoria, os Benenson e os Nussimbaum certamente se conheciam. Abraham Nussimbaum enriqueceu como comissário do petróleo de Baku, uma espécie de intermediário legal que também possuía poços de petróleo, mas o petróleo de Baku fez dos Benenson uma das famílias mais ricas da Rússia. Em 1912 a família comprou uma mansão em São Petersburgo da qual se podia ver o palácio do czar. Porém as recordações de Flora da primeira celebração da páscoa judaica em São Petersburgo contrastam de maneira chocante com a festa de natal interétnica da qual o jovem Lev participou no final daquele mesmo ano. Ela se lembrava de que na noite do seu seder, "quando tudo estava pronto, nosso mordomo foi à frente de uma delegação de empregados até os aposentos de minha mãe. Haviam feito todo o serviço, disse ele, e estavam se retirando da casa. ‘Não podemos servir uma refeição na qual os senhores consomem o sangue de uma criança cristã’, informou o mordomo à minha mãe. ‘Amanhã estaremos de volta’." Era essa a diferença entre as outras cidades do Império Russo e Baku. A despeito da Área de Estabelecimento, o judeu que tivesse dinheiro suficiente podia viver onde bem entendesse no império do czar. Mas somente no Cáucaso ele podia se esquecer do estigma de ser judeu. E o lugar mais tolerante e cosmopolita do Cáucaso era a capital do Azerbaijão, Baku. A palavra persa para fogo é azer, e desde tempos remotos a abundância de petróleo e de gás natural no Azerbaijão, que levava as encostas das montanhas a explodir em incêndios espontâneos, fez daquela região o centro do zoroastrismo, a antiga religião persa pré-muçulmana. Praticamente todas as religiões encontraram abrigo naquela região. Quando Roma ainda matava cristãos, dois reinos que faziam fronteira com o Azerbaijão, a Armênia e a Geórgia, foram dos primeiros países a se converterem ao cristianismo. Quando exércitos muçulmanos se espalharam a partir da Arábia no século VIII muitos cristãos, zoroastras e pagãos adotaram a fé muçulmana, porém muitos foram também os que não a adotaram. O islamismo simplesmente juntou-se à babel de religiões daquela área. Quando os cruzados foram expulsos da Palestina três séculos depois, encontraram um novo lar nas montanhas do Azerbaijão, onde estabeleceram reinos que ainda existiam e chocaram os antropólogos no início do século XX. Com o passar do tempo, como sua cultura se desenvolveu ao lado da cultura persa, o Azerbaijão se transformou no único país muçulmano além do Irã que é oficialmente xiita — que reverencia uma linhagem de mártires sagrados enviados por Ali, sobrinho e genro do Profeta. Em várias ocasiões, os cãs azerbaijanos apossaram-se do trono da própria Pérsia; a partir do século XVI, as grandes dinastias persas tinham à frente governantes da etnia azerbaijana. A influência russa espalhou-se rapidamente pela região no início do século XIX. Quando as tropas do czar conquistaram o Cáucaso, os azerbaijanos romperam os laços com os conservadores xiitas do Irã e tornaram-se "europeus". Umm-El-Banu Asadullayeva, que partiu de Baku em 1922 e escreveu suas memórias em Paris sob o pseudônimo de Banine, lembra-se de que em sua própria "família de muçulmanos fanáticos" as mulheres só se interessavam, de fato, por roupas, jóias e móveis vindos de Paris e de Moscou e por jogos de azar (o pai, antes um fazendeiro, tornou-se milionário quando descobriu petróleo em suas terras). Suas tias, "gordas, morenas e com buço", fumavam, falavam da vida alheia o dia todo e "jogavam pôquer com uma paixão inigualável". Assim resumiu ela, com espírito crítico, a virada do século na Baku de sua infância:

O jogo de azar é proibido pelo Alcorão — toda Baku jogava cartas e grandes somas de dinheiro trocavam de mãos em apostas. Fortes bebidas alcoólicas como a vodca e o conhaque substituíram o vinho, que era condenado pelo Profeta, com o pretexto de aquelas não serem tecnicamente condenadas. A reprodução do rosto humano era também proibida — os fotógrafos, porém, não davam conta dos novos fregueses. Os muçulmanos se deixavam fotografar de perfil ou de frente, desde que o fundo fosse um parque ou uma cortina fechada.

O boom do petróleo nos Estados Unidos teve início com o primeiro jorro na Pensilvânia na década de 1850, mas em Baku o petróleo já jorrava havia dois mil anos. O petróleo de Baku iluminava os templos de Zaratustra, e Marco Pólo já falava do lugar como um dos principais pontos de parada dos mercadores da rota da seda. Mas por quase dois milênios, o fluxo constante do ouro negro não provocava paixões em ninguém além dos zoroastras, que fizeram de Baku o centro de seu culto. Grandes quantidades de estóicos emaciados e de monges adoradores do fogo viajavam de lugares tão remotos como a Índia para passar a vida sentados em fortalezas onde o fogo ardia, suportando a fome para melhor se nutrirem das chamas eternas e purificadoras. Para o restante da população, o óleo cru era uma lama permanente na cidade onde viviam poucos milhares de pessoas. Ele envenenava o solo e forçava os habitantes a partir para as estepes e para as florestas montanhosas do Azerbaijão — nenhum outro país tem mais zonas climáticas em área tão pequena — à procura de solo não contaminado pelo óleo cru. Até mesmo as águas do Mar Cáspio freqüentemente se incendiavam quando a borra de óleo se tornava espessa demais. "Tenho lembranças de ondas em chamas", escreveu uma das imigrantes recordando-se de sua infância em Baku, "que provocavam um clarão na noite, quando os vapores explodiam em milhares de fagulhas." Até o século XIX, o petróleo era usado principalmente em remédios, e quase todo mundo acreditava em suas propriedades medicinais. Algumas tribos caucasianas adoravam o petróleo como elemento divino. Acreditava- se que seus vapores tivessem salvo Baku da Peste Negra. Em sua viagem pelo Cáucaso na década de 1850, Alexandre Dumas ficou maravilhado com os cidadãos anacrônicos do Azerbaijão, que tinham o espírito aventureiro e a famosa bravura de seus mosqueteiros; Dumas escreveu em seu diário que "entrar em Baku é como penetrar em uma das fortalezas mais poderosas da Idade Média". Mas logo tudo isso ia mudar. Em meados do século XIX, quando o querosene feito do petróleo começou a substituir o caro óleo de baleia, teve início a Era da Iluminação. O querosene tornou-se subitamente a mais valiosa commodity do mundo e as forças que propulsaram Rockefeller e a Standard Oil foram deflagradas em Baku. Os poços de Baku, chamados de "fontes", tinham tamanho e força jamais vistos antes. Com apelidos como Ama-de-leite e Bazar do Ouro, eles acabavam por se transformar em pequenos vulcões de petróleo que escapavam ao controle. Tingiam de negro as praias de Baku e o litoral do Mar Cáspio logo ficou tão tomado por torres de petróleo que em certos lugares não era possível ver os navios que se aproximavam. A primeira "fonte" de Baku, perfurada em junho de 1873, jorrou petróleo durante quatro meses até que seus donos conseguissem controlá-la, quando o equivalente a várias dezenas de milhões de barris de petróleo já haviam encharcado a terra. Durante alguns meses esse único poço fez cair vertiginosamente o preço do petróleo e dois anos depois ele ainda tinha força suficiente para lançar ao ar uma coluna de quase 3 metros de largura e 14 metros de altura. Em 1901, Baku já produzia metade do petróleo consumido em todo o mundo. Da noite para o dia, a cidade tornou-se internacional e a população de azerbaijanos passou a ser menor do que a de russos, georgianos e de pessoas vindas dos quatro cantos do mundo. Entre 1856 e 1910, a população de Baku cresceu em ritmo mais acelerado que as de Londres, Paris e Nova York. Os irmãos Nobel, que dominaram a indústria petrolífera nas primeiras décadas, inventaram o navio petroleiro para atender a demanda do Oriente pelo petróleo de Baku e deram a seu primeiro petroleiro o nome apropriado de Zoroaster. A família Nobel fez a maior parte de sua fortuna com o petróleo de Baku, apesar de a invenção da dinamite pelo irmão Alfred ter ficado mais famosa.

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