domingo, 4 de janeiro de 2009

Homem Lento, de J.M. Coetzee

slow man Leia trecho do livro

O choque o colhe pela direita, duro, surpreendente e doloroso, como uma faísca elétrica, e levanta seu corpo da bicicleta. Relaxe!, ele diz a si mesmo enquanto voa pelo ar (voa pelo ar tão cheio de graça!)* e de fato sente os membros obedientemente moles. Como um gato, diz a si mesmo: role, depois se ponha de pé, pronto para o que vier em seguida. A palavra pouco usual limber ou limbre** também está à vista.

Mas não é bem assim que as coisas acontecem. Seja porque suas pernas desobedecem, seja porque de momento está tonto (ouve, mais do que sente, o impacto do crânio no asfalto, distante, oco, como um golpe de marreta), ele absolutamente não se levanta; ao contrário, desliza metro após metro, sem parar, até se sentir quase embalado pelo deslizar.

* "He flies through the air with the greatest of ease, this daring young man on his flying trapeze" ["Ele voa pelo ar tão cheio de graça, o ousado rapaz do trapézio voador"]: verso de uma conhecida canção norte-americana. (N. T.) ** Maleável. (N. T.)

Fica esticado no chão, em paz. É uma manhã gloriosa. O toque do sol é suave. Há coisas piores do que largar o corpo, esperar a força voltar. Na verdade, pode haver coisas piores do que tirar uma soneca rápida. Fecha os olhos; o mundo oscila debaixo dele, roda; ele apaga.

Por um momento, breve, volta a si. O corpo que voou tão leve no ar ficou pesado, tão pesado que não consegue levantar nem um dedo. E alguém está parado em cima dele, tirando-lhe o ar, um jovem de cabelo arrepiado e espinhas na testa. "Minha bicicleta", ele diz ao rapaz, enunciando a palavra difícil sílaba por sílaba. Quer perguntar o que aconteceu com sua bicicleta, se cuidaram dela, já que, como é bem sabido, uma bicicleta pode desaparecer num relâmpago; mas antes de chegarem essas palavras ele apaga de novo.

2.

Está sendo embalado de um lado para outro, transportado. De longe, chegam-lhe vozes, um tumulto que sobe e desce com ritmo próprio. O que está acontecendo? Se abrisse os olhos, saberia. Mas não consegue ainda. Alguma coisa está vindo até ele. Uma letra de cada vez, claque claque claque, uma mensagem sendo datilografada em uma tela rosada que treme como água cada vez que ele pisca e é, portanto, muito provavelmente, a parte interna de sua própria pálpebra. e-r-t-y, dizem as letras, depois f-r-i-v-o-l, depois um tremor, depois e, depois q-w-e-r-t-y, e assim por diante

Frivole.* É tomado por algo como pânico. Se retorce; da caverna interior um gemido cresce e explode de sua garganta.

"Dói muito?", diz uma voz. "Calma." A picada de uma agulha. Um instante depois, a dor é lavada, depois o pânico, depois a consciência em si.

Desperta em um casulo de ar morto. Tenta sentar-se, mas não consegue; é como se estivesse revestido de concreto. Em torno dele, uma brancura inexorável: teto branco, lençóis brancos, luz branca; também uma brancura granulosa como pasta de dentes velha em que sua mente parece envolta, de forma que não consegue pensar direito e se desespera. "O que é isso?", pronuncia ou talvez grite mesmo, querendo dizer O que é isto que está acontecendo comigo? ou Que lugar é este onde eu me encontro? ou mesmo Que destino é esse que me coube?

* Em francês, "frívolo". (N. T.)

Aparece do nada uma garota de branco, faz uma pausa, olha para ele vigilante. Em sua confusão mental, ele tenta criar uma interrogativa. Tarde demais! Com um sorriso e um tapinha tranqüilizador no braço que ele parece estranhamente ouvir, mas não sentir, ela segue seu rumo.

Isto é grave?: se houver tempo para uma pergunta apenas, a pergunta deverá ser essa, embora ele prefira não se deter no que a palavra grave possa significar. Ainda mais urgente, porém, que a questão da gravidade, mais urgente que a espreita da pergunta do que realmente aconteceu na rua Magill para atirá-lo nesse lugar morto, é a necessidade de encontrar seu rumo para casa, fechar a porta, sentar-se em ambiente familiar, recuperar-se.

Tenta tocar a perna direita, a perna que manda obscuros sinais de que agora é a perna errada, mas sua mão não sai do lugar, nada sai do lugar.

Minha roupa: talvez essa deva ser a inócua questão preparatória. Onde está minha roupa? Onde está minha roupa e até que ponto é grave a minha situação?

A garota flutua de novo para seu campo de visão. "Roupa", ele diz, com um imenso esforço, levantando o mais que pode as sobrancelhas para indicar urgência.

"Não se preocupe", diz a garota e dá-lhe a bênção de mais um de seus sorrisos, seus sorrisos positivamente angélicos. "Está tudo certo, tudo sob controle. O médico vem falar com o se- nhor daqui a pouquinho." E, de fato, antes que se passe um minuto um jovem que deve ser o médico mencionado se materializa ao lado da garota e murmura no ouvido dela.

"Paul?", diz o jovem médico. "Está me ouvindo? É esse mesmo o seu nome, Paul Rayment?"

"É", ele responde com cuidado.

"Bom dia, Paul. Deve estar se sentindo um pouco tonto agora. É porque tomou uma dose de morfina. Vamos entrar em cirurgia daqui a pouquinho. Você levou uma trombada, não sei até que ponto se lembra, e a sua perna ficou muito comprometida. Vamos dar uma olhada e ver quanto podemos salvar."

Ele arqueia as sobrancelhas de novo. "Salvar?", tenta dizer.

"Salvar sua perna", repete o médico. "Vamos ter de amputar, mas vamos salvar o que for possível."

Algo deve acontecer com o rosto dele nesse momento, porque o jovem faz uma coisa surpreendente. Estende a mão para tocar seu rosto e deixa a mão pousada ali, aninhando sua cabeça de velho. É o tipo de coisa que uma mulher poderia fazer, uma mulher com uma pessoa que amasse. O gesto o deixa constrangido, mas por educação não pode recuar.

"Vai confiar em mim?", diz o médico.

Tonto, ele pisca os olhos.

"Ótimo." Uma pausa. "Não temos escolha, Paul", diz ele. "Este não é um daqueles casos em que temos escolha. Você entende? Dá sua permissão? Não vou pedir que assine nada, mas temos o seu consentimento para prosseguir? Vamos salvar o que for possível, mas você levou uma pancada e tanto, o dano foi muito grande, não sei dizer agora se vamos conseguir salvar o joelho, por exemplo. O joelho foi quase completamente esmagado e uma parte da tíbia também."

Como se soubesse que estão falando a respeito dela, como se essas terríveis palavras a acordassem de um sono inquieto, a perna direita emite uma pontada de dor branca e aguda. Ele ouve a própria respiração entrecortada e depois o sangue latejando nos ouvidos

"Certo", diz o jovem, e dá-lhe um tapinha no rosto. "Hora de ir."

 

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