sábado, 3 de janeiro de 2009

Retrato do Artista Quando Velho, de Joseph Heller

Leia trecho do livro

TOMretratoartista

"Tom."
Nenhuma resposta.
"Tom."
De novo nenhuma resposta.
“Que merda", disse Tia Polly. "Onde esse menino se enfiou?"
O menino, Tom Sawyer, refestelado numa poltrona na sala de estar, trajava seu novo casaco esporte Armani de casimira, calculando prazerosamente a valorização overnight de suas ações e títulos, enquanto esperava a chegada de quatro amigos na enorme limusine alugada, com arrogantes janelas de vidro fumê, que levaria todos eles ao camarote de luxo do estádio para o grande jogo de futebol, ou basquete, já não se lembrava, quem sabe fosse até uma luta de boxe. Para ele pouco importava. 0 que importava era estar lá. Ele se paramentara com uma camisa Turnbull & Asser com listras verticais roxo-escuras, colarinho branco brilhante, desabotoada no pescoço. Seus suspensórios eram largos, com bolinhas vermelhas e brancas. Orgulhosa e astutamente, concebera uma nova chamada que levaria seus ingênuos amigos, mais uma vez, a apostas de trezentos dólares cada um, que teriam certeza de ganhar, mas que sem dúvida haveriam de perder. Primeiramente, iria induzi-los com uma observação sem importância, dando a impressão de que estava pensando alto, a vaga suposição "Sabem, pra mim é difícil admitir o fato de que..."
Que merda, suspirou o velho escritor, desapontadíssimo, decidindo abandonar aquele livro também.
Desanimado, empurrou para longe a caneta esferográfica. A última coisa que ele queria fazer naquele momento, dizia para si mesmo, era exigir do cérebro que bolasse um enigma astucioso e convincente, capaz de satisfazer as expectativas despertadas no texto de forma a levá-lo adiante. O que tinha em mente no início já usara antes, de passagem, num romance anterior: a afirmação de que Reno, Nevada, e Spokane, Washington, encontram-se mais a oeste que Los Angeles. Ninguém perceberia a repetição. Mas ele saberia, e esse único truque seria suficiente para provocar desprezo por si mesmo e levá-lo a relaxar em outras áreas também. 0 esforço não valia a pena, ele já percebera. Essa paródia, em livro, de Tom Sawyer, o romance americano popular por excelência, com um Tom Sawyer contemporâneo, bacharel de direito por Yale ou em administração de empresas por Harvard, definitivamente não iria criar, na forja de sua alma, a consciência incriada do mundo, ou de sua raça, ou qualquer que fosse. Não agora, refletiu ele com um sorriso triste, certamente não o livro no qual já começara a pensar consigo mesmo, com uma ironia desalentada, como o último retrato, em forma literária, do artista quando velho. Embora aquilo, como sempre, não fosse um projeto em que ele, nem por um minuto, pensasse seriamente. E nem mesmo James Joyce tinha conseguido percorrer o longo caminho para a perfeição metafísica em seu Retrato do artista quando jovem. E esse último truque, avaliava agora, era uma sátira simples e banal, que não comportava muita experimentação estética, conflitos domésticos ambivalentes nem tragédias dilacerantes, e do tipo que um bando de talentosos escritores de jornais e revistas poderia produzir em meio dia, com oitocentas palavras, enquanto ele iria precisar de três ou quatro anos para escrever o romance e preencher quatrocentas páginas.
A experiência de toda uma vida o ensinara a nunca jogar fora uma página que tivesse escrito, por pior que fosse, enquanto não voltasse a ela para aprimorá-la, ou pelo menos guardá-la numa pasta ou num arquivo do computador.
Quanto a esta agora, não pensou duas vezes. Que merda, repetiu devagar, dessa vez falando alto, e com gestos lentos retirou as páginas de cima de uma pilha de folhas amarelas pautadas e empurrou-as numa cestinha de lixo de vime. Ele resistiu ao desejo de deitar-se para um segundo cochilo matinal. Suspirando novamente, pegou um suéter cardigã e um cachecol e saiu do escritório para ir à praia fazer uma caminhada que, esperava, iria desanuviar-lhe a mente, tornando-a mais ágil e desperta do que naquele momento. Quando, num passo fatigado, estava descendo pelo caminho de entrada, avistou sua mulher do outro lado do gramado, olhando-o de um canto da casa, junto de um grande balde, segurando um regador com as duas mãos. Não precisou olhar com atenção para saber que ela estaria com aquela expressão, já conhecida, de simpatia e desapontamento ante a evidência do fracasso de sua última tentativa, mesclada, talvez, com uma ponta do desprezo momentâneo que ele estava sentindo por si mesmo. Seu nome era Polly - também; a repetição do nome feminino com o qual ele estava trabalhando no papel lhe ocorreu pela primeira vez, e então soou-lhe como uma ligeira coincidência. Ele lhe fez um aceno frouxo e inexpressivo, tentou esboçar um sorriso e apressou o passo até chegar ao final da rampa de entrada e sair de seu campo de visão. Voltou então ao seu passo letárgico, quase com um suspiro de alivio, ao sentir que não estava sendo observado.
Levou 35 minutos para chegar à praia. Não tinha a menor pressa. Quando chegou percebeu que estava ofegante, mas não excessivamente, esperava ele, para um homem de sua idade. 0 banco de madeira no qual se sentou para descansar estava vazio. Procurou olhar com a mente desanuviada o plácido panorama de areia, água e o horizonte vazio, esperando que alguma coisa maravilhosa o surpreendesse. Olhou sem o menor interesse as muitas pessoas que perambulavam ao longe pela praia, algumas acompanhadas de seus cães sem coleiras. A maioria era mulheres - nos últimos tempos ele se dera conta de que sua atenção se fixava cada vez mais nas mulheres, e mais ainda depois que elas começaram a usar calças justas do tipo que marca claramente a calcinha, e minissaias também - e aquelas mulheres lhe pareciam visivelmente mais baixas e mais troncudas do que o normal, andando com dificuldade na areia. Raramente prestava atenção a aparência dos homens e nem ligava para isso.
Ele se perguntava para onde tinha ido sua capacidade de criar. Podia imaginar algumas respostas, aplicáveis a si mesmo, a muitos contemporâneos seus e a outros célebres praticantes do mesmo ofício, desaparecidos havia muito tempo. Na época de maior vigor mental juvenil e de mais elã, as sólidas criações literárias e inspirações que surgiam do nada em sua mente, sempre que as invocava, pareciam-lhe inexauríveis. Agora ele tinha que refletir e esperar. Refletindo e esperando, fitou com olhos vazios os bandos de aves livres, as gaivotas e andorinhas-do-mar que planavam no alto, os maçaricos correndo a passos curtos pela costa, buscando sua ração de vermes enquanto os últimos borrifos da arrebentação eram sugados de volta para o mar. Ele desejava, quase com desespero, que o lampejo de uma idéia fecunda surgisse de algum lugar, num clarão revelador, como um pássaro, um belo e luminoso pássaro que aparecesse espontaneamente, como nunca deixara de acontecer em seu passado mais prolífico, uma idéia prenhe de palpitantes possibilidades, capaz de revitalizar a imaginação e de revigorar seu espírito. Sua mente devaneava, os olhos embaciavam. A cabeça começava a pesar e a pender. Deixou que as pálpebras se fechassem devagar. Talvez tenha dado um cochilo. Despertou lentamente, pensando, com os lábios movendo-se num dialogo, e endireitou-se, já alerta, sentindo que seus desejos tinham sido atendidos de uma forma mística. Levantou-se de um salto.
Levou menos tempo para percorrer o caminho de volta. Dirigiu-se diretamente para a construção baixa, de madeira, que lhe servia de escritório e de quarto de hóspedes para os seus raros convidados. Estava com a respiração mais pesada que antes, mas não prestava atenção nisso. Polly, agora trabalhando com o podão e observando-o atentamente, percebeu seu passo mais vigoroso e sua atitude mais resoluta. Ela deu um sorriso de aprovação e respondeu ao seu aceno animado com uma radiante expressão de satisfação e de otimismo. Ele estava suando um pouco. No escritório, lavou o pescoço e o rosto com água fria na pia do banheiro e dirigiu-se com pressa à cadeira giratória da escrivaninha. Ligando o rádio, pegou o bloco de anotações amarelo e a esferográfica. Percebia apenas vagamente que estivera cantarolando a melodia de uma canção caribenha chamada "Pássaro amarelo", até o momento em que a música jorrou da emissora de música clássica na qual o rádio costumava ficar sintonizado. Por pura sorte, o exuberante último movimento do popular concerto de Haydn para violoncelo. Um bom presságio. Sentia-
se exultante.

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