domingo, 25 de janeiro de 2009

Pequena conversa com uma múmia, de Edgar Allan Poe

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O banquete da noite precedente me abalara um tanto os nervos.  Estava com uma forte dor de cabeça e sentia-me desesperadamente sonolento. Em vez de sair, portanto, para passar a noite fora, como tencionava, ocorreu-me que o que melhor poderia fazer, após saborear uma pequena ceia, era meter-me logo na cama.
Uma ceia, leve, sem dúvida. Gosto imensamente de queijo derretido com cerveja e torrada quente. Mais de uma libra de uma vez, porém, pode nem sempre ser aconselhável. Entretanto, não pode haver objeção material a duas. E realmente, entre duas e três, há apenas uma unidade de diferença. Arrisquei-me, talvez, a quatro. Minha mulher afirma que foram cinco — mas, certamente, confundiu duas coisas bem distintas. O número abstrato, cinco, estou disposto a admiti-lo; mas, concretamente, refere-se a garrafas de cerveja preta, sem as quais, a modo de tempero, aquele manjar deve ser evitado.
       Tendo dessa forma concluído uma refeição frugal e colocado na cabeça meu barrete de dormir, com a suave esperança de gozar dele, até o meio-dia seguinte, repousei a cabeça no travesseiro e, graças a uma excelente consciência, mergulhei sem demora no mais profundo sono.
      Mas quando teve a humanidade realizadas as suas esperanças? Não completara ainda meu terceiro ronco, quando a campainha da porta da rua começou a tocar violentamente e, depois, impacientes pancadas com a aldrava me despertaram incontinenti. Um minuto depois, e enquanto ainda esfregava os olhos, meteu-me minha mulher diante do nariz um bilhete, de meu velho amigo, o Dr. Ponnonner.
      "Largue tudo imediatamente, meu caro e bom amigo, logo que receba este. Venha participar de nossa alegria. Afinal, depois de longa e perseverante diplomacia, obtive o consentimento dos diretores do Museu da Cidade, para examinar a Múmia. (Você sabe a que múmia me refiro ). Tenho permissão de desenfaixá-la e abri-la, se for preciso. Estarão presentes apenas poucos amigos — você é um deles — está claro. A Múmia acha-se agora em minha casa e começaremos a desenrolá-la, às onze horas da noite.
Sempre seu
Ponnonner".
      Ao chegar à assinatura de "Ponnonner", senti que já me achava tão desperto quanto um homem necessita estar. Saltei da cama, num estado de êxtase, derrubando tudo quanto se encontrava em meu caminho; vesti-me com uma rapidez verdadeiramente incrível, e dirigi-me, a toda pressa, para a casa do doutor.
      Ali encontrei reunido um grupo bem ansioso. Aguardavam minha chegada, com grande impaciência. A Múmia estava estendida sobre a mesa de jantar, e logo que entrei o exame dela foi começado.
      Era uma das múmias trazidas, muitos anos atrás, pelo Capitão Artur Sabrestash, primo de Ponnonner, de um túmulo perto de Eleithias, nas montanhas da Líbia, a grande distância de Tebas, às margens do Nilo. As grutas nesse lugar, embora menos magníficas que os sepulcros de Tebas, despertam mais interesse, pelo fato de oferecerem maior número de ilustrações sobre a vida privada dos egípcios. A sala, donde fora retirado o nosso exemplar, era, dizia-se, riquíssima de tais ilustrações, estando as paredes inteiramente recobertas de pinturas a fresco e de baixos-relevos, enquanto estátuas, vasos e mosaicos de magníficos desenhos, indicavam a valiosa fortuna dos mortos.
      A preciosidade fora depositada no museu, exatamente nas mesmas condições em que o Capitão Sabrestash a havia descoberto, isto é, o sarcófago estava intacto. Durante oito anos, assim permanecera, exposto apenas, externamente, à curiosidade pública. Tínhamos pois agora a Múmia completa à nossa disposição; e para aqueles que sabem quão raramente chegam intactas às nossas plagas as antiguidades, torna-se evidente, logo, que possuíamos razões de sobra, para congratularmo-nos por nossa boa sorte.
      Aproximando-me da mesa, vi sobre ela, uma grande caixa, ou estojo, de quase sete pés de comprimento e talvez com três pés de largura, por dois e meio de profundidade. Era oblonga, mas sem forma de ataúde. Julgamos a princípio que o material empregado fora a madeira do alcômoro, contudo, logo ao cortá-lo, verificamos que era papelão, ou mais propriamente, papel comprimido, feito de papiro. Estava densamente ornamentada de pinturas, representando cenas funerárias e outros assuntos fúnebres, entre os quais serpeavam, nas mais variadas posições, numerosas séries de caracteres hieróglifos, significando, sem dúvida, o nome do falecido. Por felicidade, fazia parte do nosso grupo, o Sr. Gliddon, que não teve dificuldade em traduzir os caracteres, simplesmente fonéticos e representando a palavra Allamistakeo.
      Não foi sem esforço que conseguimos abrir a caixa, sem danificá-la, mas tendo finalmente conseguido o que desejávamos, chegamos a uma segunda, em forma de ataúde, e de tamanho consideravelmente menor, que o da de fora, mas, semelhante a ela, exatamente, sob todos os aspectos. O intervalo entre as duas estava preenchido de resina que havia, até certo ponto, apagado as cores da caixa interna.
      Ao abrir esta última (trabalho que executamos com bastante felicidade) demos com uma terceira caixa, também em forma de ataúde, e não se diferenciando da segunda em nada de particular a não ser no material de que era feita, de cedro, e ainda exalava o odor característico e altamente aromático dessa madeira. Entre a segunda a terceira e caixa, não havia intervalo, estando uma encerrada ajustadamente dentro da outra.
      Removendo a terceira caixa, descobrimos o próprio corpo, que tiramos para fora. Esperávamos encontrá-lo, como de costume, enrolado em numerosas faixas, ou ligaduras de linho; mas, em lugar destas, encontramos uma espécie de bainha, feita de papiro, e revestida duma camada de gesso, densamente dourada e pintada. As pinturas representavam assuntos relativos a vários supostos deveres da alma, e sua apresentação a diferentes divindades, com numerosas figuras humanas idênticas, intentando representar, bem provavelmente, retratos das pessoas embalsamadas. Estendendo-se da cabeça aos pés, havia uma inscrição colunar ou perpendicular, em hieróglifos fonéticos, dando de novo seu nome e títulos de seus parentes.
      Em volta do pescoço, assim desembainhado, havia um colar de contas coloridas e colocadas de modo a formar imagens de divindades, do escaravelho, etc., com o globo alado. Na parte mais delgada da cintura, havia um colar semelhante a um cinturão.
      Retirando o papiro, encontramos a carne em excelente estado de preservação, sem nenhum odor perceptível. A cor era avermelhada. A pele rija, macia e lustrosa. Os dentes e os cabelos achavam-se em boas condições. Os olhos (parecia), tinham sido arrancados e substituídos por outros de vidro, muito bonitos e imitando perfeitamente os naturais, cem exceção da fixidez do olhar, um tanto acentuada. Os dedos e as unhas estavam brilhantemente dourados.
      O Sr. Gliddon foi de opinião, em face do vermelho da epiderme, que o embalsamamento se efetuara, totalmente, por meio de asfalto; mas tendo raspado a superfície, com um instrumento de aço, e lançado ao fogo um pouco de pó, assim obtido, o odor de cânfora e de outras gomas aromáticas se tornou sensível.
      Rebuscamos bem atentamente o cadáver, para encontrar as aberturas usuais, pelas quais são extraídas as entranhas, mas, com surpresa nossa, nenhuma descobrimos. Nenhum dos presentes, nessa ocasião, sabia ainda que não são raras de encontrar múmias inteiras, ou não cortadas. O cérebro era habitualmente retirado pelo nariz; os intestinos, por incisão ao lado; o corpo era em seguida, raspado, lavado e salgado; depois deixavam-no assim, durante várias semanas, quando começavam a operação de embalsamamento, propriamente dita.
      Como não fosse possível encontrar nenhum sinal de abertura, preparava o Dr. Ponnonner, os instrumentos para a dissecação, quando observei, então, que já passava das duas horas. Por esse motivo todos concordaram em deixar para depois o exame interno, para a noite seguinte e já nos dispúnhamos a separar-nos, quando alguém sugeriu uma ou duas experiências com a pilha de Volta.
      A aplicação da eletricidade a uma múmia velha de três ou quatro mil anos, pelo menos, era uma idéia se não bastante sensata, contudo suficientemente original e todos a acolhemos sem protesto. Com quase um décimo de seriedade e nove décimos de brincadeiras, dispusemos uma bateria no gabinete do Doutor e para lá levamos o egípcio.
      Só depois do muito trabalho, foi que conseguimos pôr a nu algumas partes do músculo temporal, que se mostrou com menos rigidez pétrea, do que outras parte do corpo, mas que, como sem dúvida prevíramos, não dava indício de suscetibilidade galvânica, quando em contato com o fio.
      Esta primeira experiência, de fato, pareceu decisiva e, com uma cordial risada ao nosso próprio absurdo, estávamos dando boa-noite uns aos outros, quando, casualmente, meus olhes fitaram os da múmia, e ficaram neles cravados de espanto. Meu breve olhar, na verdade, bastara para assegurar-me de que es glóbulos, que todos nós julgávamos de vidro e que, anteriormente, se distinguiam por certa fixidez estranha, estavam agora tão bem recobertos pela pálpebras, que só uma pequena parte da Túnica Albugínea permanecia visível.
      Com um grito, chamei a atenção para e fato, que se tornou logo evidente a todos.
      Não posso dizer que fiquei alarmado, diante do fenômeno, porque, no meu caso, "alarmado" não é bem o termo. É possível, porém, que, sem as cervejas pretas talvez me tivesse sentido um pouco nervoso. Quanto a meus companheiros, não tentaram ocultar o terror alarmante, que deles se apossara. O Dr. Ponnonner causava lástima. O Sr. Gliddon, graças a não sei que processo especial, tornara-se invisível. Creio que o Sr. Silk Buckingham não terá por certo a coragem de negar, que se arrastou de quatro pés para baixo da mesa.
      Depois do primeiro choque de espanto, porém, resolvemos, como coisa natural, tentar, imediatamente, nova experiência. Nossas operações se dirigiram agora para o artelho do pé direito.
      Fizemos uma incisão por cima da parte exterior do osso sesamoideum pollicis pedix e assim chegamos à raiz do músculo obdutor.
      Reajustando a bateria, aplicamos então o fluido aos nervos expostos, quando, com um movimento de excessiva vivacidade, a Múmia, primeiro levantou e joelho direito, a ponto de pô-lo quase em contato com o abdômen, e depois, endireitando com inconcebível força, acertou um pontapé no doutor Ponnonner, tendo, com efeito, lançado este cavalheiro, como o dardo duma catapulta, pela janela lá embaixo na rua. Precipitamo-nos, en masse, para ir buscar os restos despedaçados da vítima, mas tivemos a felicidade de encontrá-la na escada, subindo numa pressa inconcebível, repleta da mais ardente filosofia e mais do que nunca convencida da necessidade de prosseguir nossa experiência com vigor e com zelo.
      Foi a conselho seu, portanto, que fizemos, sem demora, uma profunda incisão, na ponta do nariz do paciente, enquanto o próprio doutor deitando mãos fortes sobre ele, punha-o em vibrante contato com o fio. Moral e fisicamente, figurativa e literalmente, o efeito foi elétrico. Em primeiro lugar, o cadáver abriu os olhos, e piscou com bastante rapidez, durante alguns minutos, como o faz o Sr. Barnus na pantomima; em segundo lugar, espirrou; em terceiro, sentou-se; Em quarto, agitou o punho diante do rosto do Dr. Ponnonner; em quinto, voltando-se para os Srs. Gliddon e Buckinghan, dirigiu-se-lhes, no mais puro egípcio, da seguinte maneira:
      — Devo dizer-vos, cavalheiros, que estou tão surpreso quanto mortificado pela vossa conduta. Do Dr. Ponnonner, nada de melhor se poderia esperar. É um pobre toleirão, que nada sabe de nada. Tenho pena dele e perdôo-lhe. Mas vós, Sr. Gliddon, e vós Silk, que viajastes pelo Egito, e lá residistes, a ponto de poder crer que lá houvésseis estado desde o berço — vós, digo eu, que tanto vivestes entre nós a ponto de falardes o egípcio tão bem, penso, como escreveis vossa língua materna — vós, a quem sempre fui levado a olhar, como o amigo fiel das múmias — realmente, esperava de vós uma conduta mais cavalheiresca. Que devo pensar de vossa atitude tranqüila, vendo-me assim tão estupidamente tratado? Que devo supor de vós, consentindo que Fulano, Sicrano e Beltrano me arranquem dos meus caixões, tirem-me as roupas, neste clima miseravelmente frio?
      Sob que aspecto (para acabar com isto), deve encarar o fato de estardes a ajudar e incitar esse miserável velhaco do Dr. Ponnonner a puxar-me o nariz?
      Há de supor-se, sem dúvida, que, ao ouvir tal discurso, naquelas circunstâncias, todos nós corremos para a porta, ou caímos em violentos ataques histéricos ou mesmo desmaiamos todos. Uma destas três coisas, digo eu, era de esperar. De fato, cada uma dessas três maneiras de proceder poderia ter sido seguida. E, palavra de honra, não posso compreender como, ou por que foi, que não fizemos nem uma coisa nem outra.
      Mas talvez, a verdadeira razão esteja no espírito deste tempo, que procede totalmente de acordo com a regra dos contrários, e é agora usualmente admitida como solução de todos os paradoxos e impossibilidades. Ou talvez, quem sabe, foi somente o ar excessivamente natural e familiar da Múmia, que destituía suas palavras de seu aspecto terrível. Seja o que for, os fatos são claros, e nenhum dos presentes demonstrou qualquer medo particular, ou pareceu acreditar que se houvesse passado qualquer coisa de especialmente irregular.
      Quanto a mim, achava-me convencido de que tudo aquilo estava direito e simplesmente me coloquei do lado, fora do alcance do punho da múmia. O Dr. Ponnonner meteu as mãos nos bolsos das calças, fitou diretamente a múmia e ficou excessivamente vermelho.
      O Sr. Gliddon cofiava suas suíças e ajeitava o colarinho da camisa. O Sr. Buckingham baixou a cabeça e meteu o polegar direito no canto esquerdo da boca.
      O egípcio olhou-o, com expressão severa, durante alguns minutos, e disse, por fim, com escárnio:
      — Por que não fala, Sr. Buckinghan? Ouviu ou não e que lhe perguntei? Tire o polegar da boca!
      O Sr. Buckingham, em conseqüência, teve um leve sobressalto, tirou o polegar direito do canto esquerdo da boca e, a título de indenização, inseriu o polegar esquerdo, no canto esquerdo da abertura acima mencionada.
      Não tendo conseguido arrancar uma resposta do Sr. Buckingham, a Múmia se voltou, de mau humor, para o Sr. Gliddon e, em tom peremptório, perguntou, em termos gerais, o que todos nós queríamos.
      O Sr. Gliddon depois de grande demora, respondeu em termos fonéticos; e, não fosse a deficiência de caracteres hieroglíficos nas tipografias americanas, grande prazer me seria dado, em transcrever aqui, no original, todo seu excelente discurso.
      Aproveito a ocasião para observar que toda a conversa subseqüente, em que a Múmia tomou parte, foi travada em egípcio primitivo, por intermédio (pelo menos no que se refere a mim e aos outros membros não viajados do grupo), dos Srs. Gliddon e Buckingham, como intérpretes.

Esses cavalheiros falavam a língua materna da Múmia com inimitável fluência e graça; mas não posso deixar de observar que (devido, sem dúvida, à introdução de imagens inteiramente modernas e, como é natural, inteiramente novas para o estranho) os dois exploradores foram, por vezes, forçados ao emprego de formas visíveis, para traduzir algum significado especial.
      Em dado momento, por exemplo, o Sr. Gliddon não pode fazer o egípcio compreender a palavra "política", enquanto não esboçou sobre a parede, com um pedaço de carvão, um homenzinho de nariz cônico, cotovelos esburacados, de pé sobre um cepo, com a perna esquerda lançada para trás, o braço direito atirado para a frente, o punho fechado, os olhos girando pelo céu e a boca aberta, num ângulo de noventa graus. De modo bem igual, o Sr. Buckingham não conseguiria explicar a idéia absolutamente moderna de "whig", sem que (a uma sugestão do Dr. Ponnonner), empalidecendo, tirasse o chinó.
      Facilmente se compreenderia que o discurso do Sr. Gliddon versou principalmente sobre os vastos benefícios, extraídos para a ciência, do desempacotamento e do escavamento, das múmias, desculpando-se, desse modo, por qualquer incômodo, que pudesse ter-lhe sido causado, pessoalmente, à Múmia chamada Allamistakeo; e concluindo com uma simples insinuação (pois mal podia ser considerada mais do que isso) de que, explicados agora esses pequenos pormenores, muito bem se poderia continuar a investigação pretendida. Nesse ponto o Dr. Ponnonner preparou seus instrumentos.
      Relativamente às últimas sugestões do orador, parece que Allamistakeo teve certos escrúpulos de consciência, sobre cuja natureza não fui precisamente informado; manifestou-se, porém, satisfeito com a s desculpas apresentadas e, descendo da mesa, fez volta ao grupo, apertando a mão de todos.
      Quando terminou esta cerimônia, ocupamo-nos, imediatamente, em reparar os danos infligidos ao sujeito pelo escalpelo. Costuramos o ferimento de sua têmpora, pusemos-lhe uma atadura no pé e aplicamos uma polegada quadrada de emplastro preto, na ponta do nariz.
      Observou-se então que o Conde (era esse, parece, o título de Allamistakeo) teve um leve tremor, sem dúvida de frio.
      O Doutor imediatamente encaminhou-se para o seu armário e logo voltou com uma casaca preta, pelo melhor figurino de Jenning, um par de calças de xadrez, azul-celeste, uma camisa de gingão cor de rosa, um colete de brocado com abas, um sobretudo branco, uma bengala de passeio com ganho, um chapéu sem aba, botinas de verniz, luvas de pele ce cabrito, cor de palha, um monóculo, um par de suíças e uma gravata cascata. Devido à disparidade de tamanho, entre Conde e o Doutor (sendo a proporção de dois para um), houve certa dificuldade em ajustar esses trajes à pessoa do egípcio: mas quando tudo se arranjou, podia-se dizer que ele estava bem vestido. O Sr. Gliddon lhe deu, portanto, o braço e levou-o a uma confortável cadeira, junto à lareira, enquanto o Doutor tocava imediatamente a campainha e ordenava fossem trazidos mais charutos e vinho.
      A conversa em breve se animou. Muita curiosidade, sem dúvida, foi expressa, a respeito do fato, seu tanto quanto notável, de estar Allarnistakeo ainda vivo.
      — Eu teria pensado — disse o Sr. Buckingham — que já faz muito tempo que o senhor está morto.
      — Ora! replicou o Conde, bastante espantado. — Tenho pouco mais de setecentos anos de idade! Meu pai viveu mil e não se achava de modo algum caduco, quando morreu.
      Seguiu-se então uma rápida série de perguntas e cálculos, por meio dos quais se tornou evidente que a Antigüidade da Múmia fora erroneamente estimada. Já se haviam passado cinco mil e cinqüenta anos e alguns meses, desde que fora ela depositada nas catacumbas de Eleithias.
      — Mas minha observação — continuou o Sr. Buckingham — não se refere à sua idade, por ocasião do enterro (quero crer de fato, que o senhor é ainda um homem moço) e minha alusão foi à imensidade de tempo durante o qual, segundo sua própria explicação, o senhor tem estado empacotado em asfalto.
      — Em quê? — perguntou o Conde.
      — Em asfalto — repetiu o Sr. Buckingham.
      — Ah! sim; tenho uma fraca noção do que o senhor quer dizer; de certo isso poderia dar resultado, mas no meu tempo empregava-se raramente outra coisa que não fosse o bicloreto de mercúrio.
      — Mas o que especialmente não achamos jeito de compreender — disse o Dr. Ponnonner — é como acontece que, tendo morrido e sido enterrado no Egito, há mais de mil anos, esteja o senhor hoje aqui vivo e parecendo tão magnificamente bem.
      — Se eu estivesse morto, como o senhor diz — replicou o Conde — é mais que possível que morto ainda estaria, pois percebo que os senhores estão ainda na infância do galvanismo e não podem realizar com ele o que era coisa comum entre nós, antigamente. Mas o fato é que sofri um ataque de catalepsia e meus melhores amigos acharam que eu estava morto, ou deveria estar. De acordo com isso, embalsamaram-me imediatamente.
      Suponho que os senhores tem conhecimento do principal mestre do processo de embalsamamento.
      — Bem, não totalmente.
      — Ah! percebo... deplorável estado de ignorância! Muito bem, não posso entrar em pormenores neste momento, mas é necessário explicar, que embalsamar (propriamente falando), no Egito, era paralisar indefinidamente todas as funções animais sujeitas a este processo. Uso a palavra "animais", no seu sentido mais lato, como incluindo não só o ser físico, como o ser modal e vital. Repito que o primeiro princípio do embalsamamento consistiu, entre nós. na paralisação imediata e na manutenção perpétua em suspenso, de todas as funções animais, sujeitas ao processo.
      Para ser breve, em qualquer estado em que se encontrasse e indivíduo, no período de embalsamamento, não permaneceria vivo. Ora, como tenho a felicidade de ser do sangue do Escaravelho, fui embalsamado vivo, como os senhores me vêem agora.
      — O sangue do Escaravelho! — exclamou o Dr. Ponnonner.
      — Sim. O Escaravelho era o emblema, ou as "armas" duma distintíssima e pouco numerosa família patrícia. Ser "do sangue do Escaravelho" é apenas ser um dos membros daquela família de que o Escaravelho é o emblema. Estou falando figurativamente.
      — Mas que tem isso com o fato de estar vivo o senhor?
      — Ora, é costume geral no Egito, antes de embalsamar um cadáver, extrair-lhe os intestinos e os miolos; só a raça dos Escaravelhos não se conformava com esse costume. Portanto, não tivesse eu sido um Escaravelho, e me haveriam extraído intestinos e miolos, e sem uns e outros é inconveniente viver.
      — Entendo — disse o Sr. Buckingham — e suponho que todas as múmias intactas, que nos têm chegado às mãos, são da raça dos escaravelhos.
      — Sem dúvida alguma.
      — Eu pensava. — disse o Sr. Gliddon, com timidez que o Escaravelho era um dos deuses egípcios.
      — Um dos egípcios quê? — perguntou a Múmia, dando um salto.
      — Deuses! — repetiu o viajante.
      — Sr. Gliddon, estou realmente atônito por ouvi-lo falar neste estilo — disse o Conde, tornando a sentar-se. Nenhuma nação, sobre a face da terra, jamais conheceu senão um único Deus. O Escaravelho, o íbis, etc., eram entre nós (o que outros seres têm sido para outras nações) os símbolos, ou intermediários, através dos quais prestávamos culto ao Criador, demasiado augusto para que dele nos aproximássemos de mais perto.
      Houve aqui uma pausa. Finalmente, reatou-se a conversa pelo Dr. Ponnonner.
      — Não é impossível, então, pelo que o senhor acaba de explicar — disse ele — que entre as catacumbas, perto do Nilo, possam existir outras múmias da tribo do Escaravelho, em condições de vitalidade.
      — Não pode haver dúvida alguma a respeito — respondeu o Conde. — Todos os Escaravelhos embalsamados, acidentalmente, quando ainda vivos, estão vivos. Mesmo alguns dos que foram propositadamente assim embalsamados podem ter sido esquecidos pelos seus executores testamentários e ainda permanecem nos túmulos.
      — Quer ter a bondade de explicar — perguntei eu, o que quer o senhor dizer com "propositadamente assim embalsamados"?
      — Com grande prazer — respondeu a Múmia, depois de me haver examinado à vontade, através de seu monóculo, pois era a primeira vez que me aventurara a fazer uma pergunta direta.
      — Com grande prazer — disse ele. — A duração habitual da vida de um homem, no meu tempo, era de quase oitocentos anos. Poucos homens morriam, a não ser em virtude do mais extraordinário acidente, antes dos seiscentos anos; poucos viviam mais do que uma década de séculos; mas oitocentos anos eram considerados o termo natural.
Depois da descoberta do princípio do embalsamamento, como já descrevi aos senhores, ocorreu a nossos filósofos que se poderia satisfazer uma louvável curiosidade e. ao mesmo tempo, fazer avançar os interesses da ciência, vivendo-se esse termo natural a prestações.
      Relativamente à ciência histórica, de fato, a experiência demonstrava que algo dessa natureza era indispensável. Tendo por exemplo um historiador atingido a idade de quinhentos anos, escrevia um livro, com grande trabalho, e depois fazia-se embalsamar, com todo o cuidado, deixando instruções a seus executores testamentários pro tempore, para que o fizessem reviver, depois de certo lapso de tempo — digamos quinhentos ou seiscentos anos. Voltando à vida, ao expirar aquele prazo, encontraria invariavelmente sua grande obra convertida numa espécie de caderno de notas à toa, isto é, uma espécie de arena literária, para as conjecturas antagônicas, enigmas e rixas pessoais de rebanhos inteiros de comentaristas exasperados. Essas conjecturas, etc., que passavam sob o nome de anotações, ou emendas, verificavam-se haver tão completamente envolvido, torturado e sufocado e texto, que o autor era obrigado a sair de lanterna na mão, à busca de seu próprio livro. Ao descobri-lo, nunca merecia o trabalho da busca. Depois de reescrevê-lo, totalmente, cabia ainda, come dever obrigatório do historiador, pôr-se a trabalhar, imediatamente, em corrigir, de acordo com seu saber individual a e a sua experiência, as tradições do dia, concernente à época em que ele havia originalmente vivido. Ora, este processo de recomposição e retificação pessoal, levado a efeito por diferentes sábios, de tempos em tempos, tinha como resultado evitar que nossa história degenerasse em fábula completa.
      — Peço-lhe perdão — disse o Dr. Ponnonner, neste ponto, pousando delicadamente sua mão sobre o braço do egípcio — peço-lhe perdão, senhor, mas posso ter a liberdade de interrompê-lo um instante?
      — Perfeitamente, senhor — respondeu o Conde, afastando-se um pouco.
      — Desejava fazer-lhe simplesmente uma pergunta — disse o Doutor. — O senhor se referiu à correção pessoal do historiador, nas tradições relativas à sua própria época. Rogo-lhe que que me diga, qual a proporção, em média, de verdade misturada. a essa Cabala?
      — A Cabala, como o senhor muito bem definiu, gozava em geral de fama de estar justamente a par dos fatos relatados nas próprias histórias não reescritas, isto é, jamais se viu, em circunstâncias alguma um simples jota em qualquer deles, que não estivesse absoluta e radicalmente errado.
      — Mas já que está perfeitamente claro — continuou o Doutor — que pelo menos cinco mil anos se passaram, desde que o senhor foi enterrado, tenho como certo que vossos anais daquele período, senão vossas tradições, eram suficientemente explícitos, a respeito daquele tópico de interesse universal, que é a Criação, a qual se realizou, como suponho que é de seu conhecimento, havia apenas dez séculos antes.
      — O senhor! — disse o Conde Allamistakeo.
      O Doutor repetiu suas observações, mas, somente depois de muita explicação adicional, foi que o estrangeiro pôde chegar a compreendê-las. Por mim, respondeu, hesitantemente:
      — As idéias que o senhor me apresentou são, confesso, extremamente novas, para mim. No meu tempo, não conheci ninguém que sustentasse fantasia tão singular, como essa de que o universo (ou este mundo, se gostar mais) tivesse uma vez um começo. Lembro-me de que uma vez, uma vez apenas, ouvi algo de remotamente vago, de um homem de muito saber, a respeito da origem da raça humana, e esse homem empregava essa mesma palavra Adão (ou Terra Vermelha), de que o senhor fez uso. Empregava-a, porém, em sentido genérico, com referência à germinação espontânea do limo da terra (da mesma maneira por que são geradas milhares de criaturas dos mais baixos genera), a geração espontânea digo eu, de cinco vastas hordas de homens, simultaneamente brotada em cinco distintas e quase iguais divisões do globo.
      Aqui, todos os presentes encolheram os ombros e um ou dois de nós tocou na fronte, com ar bastante significativo.
      O Sr. Buckingham, depois de lançar ligeiro olhar para o occipício e depois para o sincipício de Allamistakeo, disse o seguinte:
      — A longa duração da vida humana no seu tempo, e ainda mais a prática ocasional de passá-la, como o senhor explicou, a prestações, deve ter contribuído, na verdade, bastante poderosamente, para o desenvolvimento geral e acumulação do saber. Suponho, por conseqüência, que devemos atribuir a acentuada inferioridade dos velhos egípcios, em todos os ramos da ciência, quando comparados com os modernos e, mais especialmente, com os ianques, inteiramente à solidez mais considerável do crânio egípcio.
      — Confesso novamente — respondeu o Conde, com bastante mansidão — que estou um tanto em dificuldade para compreendê-lo; por obséquio, a que ramos de ciência alude o senhor?
      Aqui, todo o grupo, unindo as vozes, pormenorizou prolixamente, as aquisições da frenologia e as maravilhas do magnetismo animal.
      Tendo-os ouvido até o fim, o Conde começou a contar algumas anedotas, que demonstraram terem florescido e fenecido no Egito, há tanto tempo, a ponto de terem sido quase esquecidas, tipo de Gall, Spurheim, de que os processos de Mesmer não passavam realmente de desprezíveis artifícios, quando comparados com os positivos milagres dos sábios tebanos, que criavam piolhos e muitos outros seres dessa espécie.
      Nisto perguntei ao Conde se o seu povo era capaz de calcular eclipses. Ele sorriu, com certo desdém, e disse que era.
      Isto me perturbou um pouco, mas comecei a fazer outras perguntas, a respeito de seu saber astronômico, quando um membro do grupo, que ainda não abrira a boca, cochichou a meu ouvido que, para informação a respeito do assunto, melhor seria que eu consultasse Ptolomeu (quem era esse tal de Ptolomeu?), bem como um tal Plutarco, no capítulo de facie lunae.
      Interroguei depois a Múmia, a respeito de lentes convexas e doutra espécie, e, em geral, acerca da manufatura de vidro. Nas ainda não terminara eu minha pergunta e já o companheiro silencioso, de novo me tocava de mansinho o cotovelo e pedia-me, pelo amor de Deus, que desse uma olhadela em Diodoro Sículo. Quanto ao Conde, perguntou-me simplesmente, a modo de réplica, se nós modernos, possuímos microscópios, que nos permitissem gravar camafeus, no estilo dos egípcios. Enquanto pensava na maneira de responder a esta pergunta, o miúdo Doutor Ponnonner se pôs a falar de maneira verdadeiramente extraordinária.
      — Veja a nossa arquitetura! — exclamou ele, com grande indignação dos dois viajantes que o beliscavam, mas sem resultado.
      — Veja — gritou ele, com entusiasmo — a Fonte do Jogo de Bola de New York! Ou se o espetáculo é por demais imponente, contemple por um instante o Capitólio, em Washington, D. C.! — e o bom doutorzinho se pôs a pormenorizar, com toda a prolixidade, as proporções do edifício a que se referia. Explicou que só o pórtico estava adornado de não menos de vinte e quatro colunas, de cinco pés de diâmetro, e dez pés de distância uma das outras.
      O Conde disse que lamentava não poder lembrar-se, justamente naquele momento, das dimensões precisas de qualquer dos principais edifícios da cidade de Aznac, cuja fundação se perdia na noite do Tempo, mas cujas ruínas estavam ainda de pé, na época do seu sepultamento, numa vasta planície arenosa, a oeste de Tebas. Lembrava-se, porém, (a propósito de pórticos) que um havia, pertencente a um palácio inferior, numa espécie de subúrbio chamado Carnac, e formado de cento e quarenta e quatro colunas, de trinta e sete pés de circunferência e distantes umas das outras vinte e cinco pés. Chegava-se do Nilo a esse pórtico, através duma avenida de duas milhas de extensão, formada de esfinges, estátuas e obeliscos, de vinte, de sessenta e de cem pés de altura. O próprio palácio (pelo que podia lembrar) tinha, só numa direção, duas milhas de comprimento e ao todo poderia ter cerca de sete de circuito. Suas paredes estavam todas ricamente pintadas, por dentro e por fora, de hieróglifos. Não pretendia afirmar que mesmo cinqüenta ou sessenta dos Capitólios do Doutor pudessem ter sido construídos, dentro daquelas paredes, mas de nenhum modo achava impossível que duzentos ou trezentos deles pudessem ser lá dentro comprimidos, sem muita dificuldade. Aquele palácio de Carnac não passava afinal duma insignificância. Ele (o Conde), porém, não podia em consciência recusar-se a admitir a engenhosidade, a magnificência e a superioridade da Fonte do Jogo da Bola, tal como foi descrita pelo Doutor. Nada de semelhante, era forçado a convir, fora jamais visto no Egito, nem em qualquer outra parte.
      Perguntei então ao Conde qual sua opinião a respeito de nossas estradas de ferro.
      — Nada de particular — respondeu ele.
      Eram um tanto fracas, um tanto mal projetadas e toscamente construídas. Não podiam ser comparadas, por certo, com as estradas vastas, planas, retas e raiadas de ferro, sobre as quais os egípcios transportavam templos inteiros e sólidos obeliscos, de cento e cinqüenta pés de altura. Falei de nossas gigantescas forças mecânicas.
      Concordou que alguma coisa conhecíamos nesse particular, mas indagou quanto teria eu de trabalhar, para levantar as cornijas sobre os dintéis, como do pequeno palácio de Carnac.
      Resolvi não dar por ouvida esta pergunta e perguntei se ele tinha alguma idéia de poços artesianos, mas ergueu simplesmente as sobrancelhas, enquanto o Sr. Gliddon piscava fortemente para mim e dizia, em voz baixa, que fora descoberto um, recentemente, por engenheiros encarregados de canalizar água para o Grande Oásis.
Mencionei depois nosso aço, mas o estrangeiro levantou o nariz e perguntou-me se nosso aço podia ter executado o duro trabalho de insculpir os obeliscos, realizado totalmente com instrumentos cortantes de cobre.
      Isto nos desconcertou tanto que achamos prudente mudar nosso ataque para a metafísica. Mandamos buscar um exemplar do livro, chamado o Relógio de Sol, e lemos um capítulo ou dois, a respeito dum assunto não bastante claro, mas que os bostonianos chamam de Grande Movimento do Progresso.
      O Conde disse simplesmente que Grandes Movimentos eram coisas excessivamente comuns no seu tempo e quanto ao Progresso, foi, em certo tempo, uma completa calamidade, porém jamais progredira.
      Falamos então da grande beleza e da importância da Democracia e muito nos esforçamos para fazer bem compreender ao Conde as vantagens de que gozávamos em viver num país onde havia sufrágio ad libitum, e não havia rei. Ele escutou com todo interesse e de fato mostrou-se não pouco divertido. Quando acabamos, disse ele que, há muitíssimo tempo, ocorrera algo bem semelhante. Treze províncias egípcias resolveram tornar-se imediatamente livres e dar assim um magnífico exemplo ao resto da humanidade. Reuniram-se seus sábios e cozinharam a mais engenhosa constituição, que é possível conceber-se. Durante algum tempo, as coisas correram admiravelmente bem, somente que seu costume de ufanar-se era prodigioso. A coisa acabou, porém, com a consolidação dos treze estados, com mais quinze ou vinte outros, no mais odioso e insuportável despotismo de que jamais se ouviu falar na superfície da Terra.
      Perguntei o nome do tirano usurpador.
      Tanto quanto podia lembrar-se, era POPULAÇA.
      Não sabendo que dizer a isso, ergui a voz e deplorei que os egípcios não conhecessem o vapor.
      O Conde olhou para mim com bastante espanto, mas não deu resposta. O cavalheiro silencioso, porém, deu-me uma violenta cotovelada nas costelas dizendo-me que eu já me havia suficientemente comprometido duma vez, e perguntou se eu era tão maluco, realmente, para não saber que a moderna máquina a vapor deriva da invenção de Hero, através de Salomão de Caus.
      Estávamos agora em eminente perigo de sermos derrotados, mas nossa boa sorte fez que o Doutor Ponnonner, tendo-se reanimado, voltasse em nosso auxílio e perguntasse se o povo do Egito pretendia seriamente rivalizar com os modernos, em todas as importantíssimas particularidade, do trajo.
      Ouvindo isto, o Conde baixou a vista sobre as alças de suas calças e, depois, pegando a ponta de uma das abas de sua casaca, levou-a até bem perto dos olhos, examinando-a, durante alguns minutos. Deixando-a cair, por fim, sua boca escancarou-se gradualmente, duma orelha à outra, mas não me recordo se ele disse qualquer coisa à guisa de resposta.
      Neste momento, recuperamos nossas energias e o Doutor, aproximando-se da Múmia, com grande dignidade, rogou-lhe que lhe dissesse, com toda a franqueza, e sob sua honra de cavalheiro, se os egípcios tinham compreendido em alguma época, a fabricação, quer das pastilhas de Ponnonner, quer das pílulas de Bandreth.
      Aguardávamos, com profunda ansiedade, uma resposta, mas foi em vão. A resposta não chegava. O egípcio enrubesceu e baixou a cabeça. Jamais houve triunfo mais consumado; jamais derrota alguma foi suportada de tão má vontade. De fato, não podia tolerar o espetáculo da mortificação da pobre Múmia. Peguei do chapéu, cumprimentei-a e despedi-me.
      Ao chegar em casa, já passava das quatro horas e fui imediatamente para a cama. São agora dez horas da manhã. Estou de pé desde as sete, escrevendo estas notas, em benefício da minha família e da humanidade. Quanto à primeira, não mais a verei. Minha mulher é uma víbora. A verdade é que estou nauseado, até o mais íntimo, desta vida e do século dezenove em geral. Estou convencido de que tudo vai de pernas viradas. Além disso, estou ansioso por saber quem será o Presidente, em 2045. Portanto, logo que acabar de barbear-me e de tomar uma xícara de café, irei até a casa de Ponnonner fazer-me embalsamar per uns duzentos anos.

coraline

frases de filmes: clube da luta

fight-club1

"Somos uma geração sem peso na história. Sem propósito ou lugar. ... Nossa Guerra é a espiritual. Nossa Depressão, são nossas vidas. "

adiva

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15

True Blood

sábado, 24 de janeiro de 2009

Questão de Sangue, de Ian Rankin

Leia trecho do livro

INTRODUÇÃO238003

O problema de escrever a respeito de uma cidade real em tempo  real é ter de levar em conta as mudanças. Foi impossível para mim não escrever sobre o novo Parlamento escocês, por exemplo, por isso Set in darkness passou a existir. Do mesmo modo, eu estava na metade da versão inicial de Questão de sangue quando recebi uma mensagem de texto de um detetive meu amigo. Dizia apenas: "St. Leonard’s não tem mais um Departamento de Investigações Criminais. Rá rá rá". Ele sabia que eu teria de mudar Rebus de St. Leonard’s por causa de algumas dúzias de leitores de Edimburgo, pois do contrário eles saberiam que eu estava abandonando o realismo. Isso explica a dedicatória a St. Leonard’s, in memoriam: seria o último livro passado lá.

O estímulo que originou Questão de sangue foi uma questão levantada por uma fã numa sessão de perguntas e respostas. Ela me perguntou por que eu nunca falava do sistema de escolas particulares de Edimburgo. Por volta de um quarto dos estudantes do ensino médio da cidade freqüenta instituições pagas - uma porcentagem muito mais alta do que a de qualquer outra cidade da Escócia (e talvez do Reino Unido inteiro). Minha resposta naquela noite foi superficial: creio ter dito que não sabia nada a respeito de tais escolas, por isso considerava difícil escrever sobre elas. Mas ela me fez pensar. Os livros de Rebus sempre se detiveram na dupla identidade de Edimburgo, sua natureza Jekyll e Hyde. Escolas particulares fazem parte da estrutura da cidade, sendo uma questão polêmica em alguns círculos. Eu já decidira que o livro seguinte abordaria o problema dos que ficam de fora. Rebus é um eterno excluído, incapaz de trabalhar em equipe. Em minhas incursões regulares à Cockburn Street para comprar discos eu também topava com grupos de adolescentes góticos. Eles me lembravam que um dia eu também quisera ser visto pela sociedade como marginal: eles se vestiam como góticos; eu era punk.

Como dei a Rebus um passado nas forças armadas, fico de olho em notícias sobre militares (inclusive uma nota a respeito da queda de um helicóptero ao largo da costa escocesa), além de ter montado um arquivo sobre os efeitos dos combates nos soldados da ativa. Quando a tropa deixa o exército, muitos encontram dificuldade para voltar à vida civil. Alguns se tornam agressivos em casa, passam a beber e acabam morando na rua. Continuam sendo marginais, por assim dizer. Pensei que seria interessante criar um enredo no qual essas várias questões se entrelaçassem, e um tiroteio numa escola particular parecia ser a resposta. Mudei a ação de Edimburgo para South Queensferry, em parte por não querer que nas escolas existentes pensassem que eu calcara nelas a Port Edgar Academy, e em parte por querer investigar os efeitos de um crime assim numa comunidade pequena e fechada. Rebus, pelo que sabemos, foi enviado a Lockerbie logo depois da queda do vôo Pan-Am 101, e ele comenta a "dignidade quieta" da cidade. Dunblane estava na minha cabeça também, é claro, mas eu não ia escrever um livro "sobre Dunblane": examinaria as razões para a ocorrência de atrocidades numa sociedade aparentemente civilizada.

Comecei a planejar o livro durante a filmagem de um documentário em três partes sobre o "mal", para o Channel 4, e minhas idéias para a série afetaram as idéias de Questão de sangue. Entrevistei neurologistas, psiquiatras, estudiosos e advogados, criminalistas e assassinos... e até um exorcista simpático. A série tentava responder três perguntas fundamentais: O que queremos dizer com a palavra "mal"? De onde vem o mal? E o que podemos fazer a respeito? As diversas respostas que recebi durante minhas viagens formariam a espinha dorsal moral do livro. Meu caderno de anotações da época registra, entre passagens teológicas de santo Agostinho e Auschwitz, possíveis rumos que Questão de sangue tomaria. Desde o início eu me detive no duplo sentido do título: sangue não somente como líquido vital, mas também no sentido de laços familiares.

Se isso tudo soa um tanto maçante e edificante, não deveria: Questão de sangue foi muito divertido de escrever, e creio que é igualmente divertido de ler. Nos livros recentes leiloei "direitos de personagem" para várias instituições de caridade, e Questão de sangue contém alguns de meus favoritos. Por exemplo, há um gato chamado Boécio no livro só porque seu dono pagou para que ele fosse mencionado (além de mandar fotos e uma biografia extensa para garantir que eu ia fazer tudo certo). Nesse meio-tempo, um policial que atuava em Edimburgo também ganhou o direito de aparecer no livro - fácil e tranqüilo, pensei, até ficar sabendo que ele era australiano e tinha doutorado em astronomia (ou disciplina similar). Seu nome é Brendan Innes e ele é policial no livro, mas não menciono sua nacionalidade, nem sua formação acadêmica: como lhe expliquei, ao contrário da vida real, a ficção precisa ser realista!

Há no livro um personagem chamado Peacock Johnson. Ele também conquistou o direito de aparecer no livro. Alguém me falou para dar uma espiada no website dele, que mostrava um sujeito suspeito de camisa estilo havaiano e óculos tipo Elvis. O blog dele deixava claro que ele operava no limite da ilegalidade. Mandei-lhe um e-mail e disse que ele daria um ótimo pistoleiro profissional no meu livro. Ele disse que tudo bem, e que gostaria que eu mencionasse seu colega, Wee Evil Bob. Concordei. Acabei me divertindo ao criar o alter ego ficcional do sr. Johnson, e quando o livro ficou pronto mandei uma cópia por e-mail, para que ele soubesse.

O e-mail voltou.

Fui ao website dele.

Não estava mais lá.

Isso me forçou a bancar o detetive, e acabei descobrindo que o conjunto Belle e Sebastian comparecera ao leilão dos personagens. Curiosamente, o endereço de e-mail de Peacock era semelhante ao de um membro da banda, o baixista Stuart David, conhecido por suas brincadeiras. Ele acabou confessando. Eu pensava que Peacock fosse real, mas tudo não passara de ficção desde o começo. Além disso, Stuart também havia escrito um romance... e adivinhe quem era o herói?

Peacock Johnson.

Até personagens de ficção, pelo jeito, podem ter uma personalidade complexa...

Ian Rankin

PRIMEIRO DIA

Terça-feira

1

"Nenhum mistério", disse a sargento-detetive Siobhan Clarke. "Herdman perdeu o juízo, só isso."

Ela estava sentada ao lado de um leito hospitalar da recém-inaugurada Royal Infirmary de Edimburgo. O complexo situava-se na parte sul da cidade, numa área chamada Little France. Fora construído graças à destruição de boa parte de uma área verde, e mesmo assim já havia queixas de falta de espaço interno e de vagas para estacionamento do lado de fora. Siobhan acabou arranjando uma vaga, mas descobriu depois que o privilégio seria cobrado.

Ela havia contado tudo isso ao inspetor detetive John Rebus ao chegar a seu leito. As mãos de Rebus estavam enfaixadas até os pulsos. Quando ela serviu um pouco de água, ele levou o copo plástico à boca, bebendo cautelosamente enquanto ela o observava.

"Viu?", ele zombou, depois. "Não derramei nem uma gota."

Mas ele estragou tudo quando deixou o copo cair ao manobrar para devolvê-lo à mesinha-de-cabeceira. Quando a base tocou o chão, Siobhan o apanhou antes que ele emborcasse.

"Muito bem", Rebus admitiu.

"Sem problemas. Estava vazio, de todo modo."

Desde então ela falava coisas sem importância, os dois sabiam que evitava perguntas que estava desesperada para fazer. Em vez disso, passava detalhes a respeito da chacina em South Queensferry.

Três mortos e um ferido. Uma cidade costeira tranqüila, ao norte da capital. Escola particular para rapazes e moças de cinco a dezoito anos. Seiscentos alunos, menos dois agora.

O terceiro corpo pertencia ao atirador, que voltou a arma contra si. Nenhum mistério, como Siobhan disse.

Exceto pelo motivo.

"Ele era como você", ela disse. "Ex-militar, sabe. Acham que fez isso por ressentimento contra a sociedade."

Rebus notou que ela mantinha as mãos firmes dentro do bolso do casaco. Calculou que cerrara os punhos e procurava evitar que ele percebesse.

"Os jornais dizem que ele tinha uma empresa", ele comentou.

"Uma lancha potente, para prática de esqui aquático."

"E guardava ressentimento?"

Ela deu de ombros. Rebus sabia que ela torcia para conseguir um lugar no caso, qualquer coisa capaz de afastar sua mente do outro inquérito - um inquérito interno, no qual ela ocupava uma posição central.

Ela olhava para a parede acima da cabeça dele, como se ali houvesse algo que a interessasse, além da pintura e da saída de oxigênio.

"Você ainda não me perguntou se estou me sentindo bem", ele disse.

Ela o encarou. "Está se sentindo bem?"

"Estou ficando louco de desespero, obrigado por perguntar."

"Você só passou uma noite aqui."

"Parece mais."

"O que os médicos disseram?"

"Ninguém veio falar comigo ainda. Hoje, não. Digam o que disserem, saio daqui esta tarde."

"E depois?"

"Como assim?"

"Você não pode retornar ao trabalho." Finalmente, ela fixou a vista nas mãos dele. "Como pretende dirigir, ou digitar um relatório? E os telefonemas?"

"Darei um jeito." Ele olhou em torno, sua vez de evitar contato visual. Rodeado de homens da sua idade, que exibiam a mesma palidez acinzentada. A dieta escocesa cobrara sem dúvida um preço alto daquele grupo. Um sujeito tossia, desesperado para fumar. Outro dava a impressão de ter problemas respiratórios. A massa obesa de fígado inchado que formava a população masculina local. Rebus ergueu uma das mãos para esfregar o antebraço na face direita, sentindo a barba por fazer. Os pêlos, sabia, tinham o mesmo tom prateado das paredes da enfermaria.

"Darei um jeito", ele repetiu no silêncio que se seguiu, baixando o braço, arrependido de tê-lo erguido. Os dedos formigaram de dor quando latejaram por causa da circulação do sangue. "Conversaram com você?", ele perguntou.

"Sobre o quê?"

"Tenha dó, Siobhan..."

Ela o encarou sem piscar. As mãos saíram do esconderijo, quando se debruçou para a frente na cadeira.

"Outra sessão esta manhã."

"Com quem?"

"A chefe." Ela se referia à superintendente-chefe Gill Templer. Rebus acenou a cabeça, satisfeito por saber que por enquanto o caso ainda não subira ao alto escalão.

"O que você pretende dizer a ela?", Rebus perguntou.

"Não há nada a dizer. Não tive nada a ver com a morte de Fairstone." Ela fez uma pausa, outra pergunta pendente entre eles: E você? Ela parecia esperar que Rebus dissesse algo, mas ele permaneceu em silêncio. "Ela vai perguntar sobre você", Siobhan acrescentou. "Como veio parar aqui."

"Eu me queimei", Rebus disse. "Foi uma coisa estúpida, mas aconteceu."

"Sei o que você alega ter ocorrido..."

"Escute, Siobhan, foi exatamente isso que aconteceu. Pergunte aos médicos, se não acredita em mim." Ele olhou em torno novamente. "Se conseguir achar algum..."

"Provavelmente ainda estão rodando atrás de uma vaga."

O comentário não foi muito engraçado, mas Rebus riu assim mesmo. Ela demonstrava que não pretendia pressioná-lo mais. O sorriso foi um sinal de gratidão.

"Quem está no comando de South Queensferry?", ele perguntou, mudando de assunto.

"Acho que quem está na chefia é o inspetor Hogan."

"Bobby é um cara legal. Se for possível dar um jeito, ele dará."

"Um circo para a mídia, de todo modo. Grant Hood foi chamado para ser o oficial de ligação."

"Isso nos deixa com falta de pessoal em St. Leonard’s, certo?" Rebus ficou pensativo. "Mais uma razão para eu voltar para lá."

"Principalmente se eu for suspensa..."

"Você não será suspensa. Você mesma disse, Siobhan - não teve nada a ver com Fairstone. Pelo que entendo, foi um acidente. Agora que temos um caso mais importante, este vai morrer de morte natural, por assim dizer."

"Um acidente", ela repetiu suas palavras.

Ele balançou a cabeça devagar. "Não se preocupe com isso. A não ser, claro, que você tenha apagado o cretino."

"John..." Havia um toque de alerta em sua voz. Rebus sorriu novamente e piscou um olho.

"Brincadeira", disse. "Sei muito bem quem Gill vai querer enquadrar, no caso de Fairstone."

"Ele morreu num incêndio, John."

"E isso quer dizer que eu o matei?" Rebus ergueu as duas mãos, virando-as para um lado e para outro. "Escaldadas, Siobhan. Só isso. Escaldadas."

Ela se levantou da cadeira. "Se você está dizendo, John..." Depois ela parou na frente dele, que baixava as mãos, sufocando a súbita agonia. Uma enfermeira se aproximava, dizendo algo a respeito da troca de ataduras.

"Estou de saída", Siobhan a informou. Depois, para Rebus: "Seria de doer se você tivesse feito uma besteira, imaginando me defender".

Ele começou a acenar a cabeça lentamente, ela deu meia-volta e se afastou. "Tenha confiança, Siobhan", ele gritou.

"Sua filha?", a enfermeira perguntou, puxando conversa.

"Só uma amiga. Colega de serviço."

"Você tem algo a ver com a Igreja?"

Rebus fez uma careta quando ela tirou a primeira atadura. "Por que você está perguntando isso?"

"Você falou algo a respeito de ter fé."

"No meu ramo de atividade, precisamos mais do que a maioria." Ele fez uma pausa. "Bem, talvez isso valha para o seu caso também."

"Meu?" Ela sorriu, sem tirar os olhos do curativo. Era baixa, comum, eficiente. "Não posso esperar que a fé faça alguma coisa aqui. Como você arranjou isso?" Ela se referia às mãos em carne viva.

"Enfiei na água fervendo", ele explicou, sentindo uma gota de suor iniciar a lenta jornada têmpora abaixo. Posso suportar a dor, pensou. O problema estava no resto. "Não podemos passar para algo mais leve que as ataduras?"

"Está ansioso para tomar seu rumo?"

"Ansioso para segurar uma xícara sem deixar cair." Ou um telefone, pensou. "Além disso, deve haver alguém lá fora precisando mais do que eu deste leito."

"Você é muito responsável socialmente, pelo que vejo. Depende do que o médico disser."

"E quem seria esse médico?"

"Tenha um pouquinho de paciência, está bem?"

Paciência: ele não tinha tempo para isso.

"Além disso, você receberá visitas", a enfermeira acrescentou.

Ele duvidava. Ninguém sabia que estava internado ali, exceto Siobhan. Pedira que telefonassem para ela, assim poderia avisar Templer que ele não iria trabalhar por motivo de doença, voltaria em dois dias no máximo. Mas a ligação fizera com que Siobhan corresse para o hospital. Ele devia saber que seria assim; talvez por isso mesmo tivesse telefonado para ela, e não para a delegacia.

Ele fora internado na véspera, durante a tarde. Pela manhã desistira de se medicar e consultara seu médico. O clínico o examinara superficialmente e lhe dissera para ir ao hospital. Rebus pegara um táxi até a A&E. Passara constrangimento quando o motorista precisou revirar o bolso da sua calça para pegar o dinheiro da corrida.

"Ouviu a notícia?", o taxista indagara. "Tiroteio numa escola."

"Provavelmente alguma brincadeira."

Mas o motorista, balançando a cabeça: "Nada disso. Deu no rádio que...".

Rebus esperou a vez no A&E. Depois de um tempo fizeram curativos em suas mãos, os ferimentos não eram graves o suficiente para justificar uma transferência para a Unidade de Queimados em Livingston. Mas ele apresentou um quadro de febre e decidiram transferi-lo de A&E para Little France. Ele calculou que queriam ficar de olho nele, caso entrasse em choque ou algo assim. Talvez tivessem pensado que fosse um desses sujeitos que se machucam de propósito. Ninguém veio tratar do assunto. Talvez por isso estivesse internado: esperando uma brecha na agenda de algum psiquiatra.

Ele pensou por um momento em Jean Burchill, a única pessoa que poderia notar seu súbito desaparecimento de casa. Mas a relação esfriara um pouco. Eles passavam uma noite juntos a cada dez dias, aproximadamente. Falavam pelo telefone com mais freqüência, tomavam café juntos à tarde, de vez em quando. Já estava virando rotina. Ele se lembrou da época em que saíra com uma enfermeira, por pouco tempo. Não sabia se ela ainda trabalhava ali. Poderia perguntar, mas o nome lhe escapava no momento. Era um problema: dificuldade para lembrar nomes. Esquecia encontros marcados. Nada sério, claro, só parte integrante do processo de envelhecimento. Mas ele sabia que precisava cada vez mais consultar suas anotações, quando testemunhava num julgamento. Dez anos antes não precisava de notas ou registros. Mostrava mais confiança, e isso impressionava os jurados, segundo os advogados.

"Prontinho." A enfermeira endireitou o corpo. Passara pomada e trocara a gaze das mãos. Depois as enrolara com as ataduras antigas. "Está mais confortável?"

Ele fez que sim. Um pouco de frescor na pele, mas ele sabia que não ia durar.

"Você está tomando algum analgésico?" A pergunta era retórica. Ela havia consultado a ficha ao pé da cama. Antes, após a visita ao toalete, ele mesmo a lera. Constavam a temperatura e os medicamentos usados, mais nada. Nenhuma informação em código que só poderia ser entendida pelos profissionais. Nenhum registro da história que contara ao ser examinado.

Preparei um banho bem quente... escorreguei e caí lá dentro.

O médico emitiu um ruído no fundo da garganta, algo para dar a entender que aceitaria aquilo sem necessariamente acreditar. Excesso de trabalho, falta de sono - seu serviço não era investigar. Médico, não detetive.

"Você quer tomar um paracetamol?", a enfermeira perguntou.

"Se tiver uma cerveja para acompanhar."

Ela abriu de novo o sorriso profissional. Em seus muitos anos de trabalho em hospitais públicos ela provavelmente não ouvira muitas tiradas originais.

"Verei o que posso fazer."

"Você é um anjo", Rebus disse, surpreso. Supunha que um paciente diria algo no gênero dos clichês esperados. De saída, ela talvez nem o tivesse escutado. Devia haver algo na natureza dos hospitais. Mesmo que o sujeito não se sentisse doente, o local provocava seus efeitos, tornando a pessoa mais lenta, mais dócil. Institucionalização. Algo a ver com a combinação de cores, com os ruídos de fundo. O aquecimento também poderia ajudar na submissão. Em St. Leonard’s eles mantinham uma cela especial para os "malucos". Era rosa forte, supostamente os acalmava. Por que uma abordagem psicológica similar não era usada ali? A última coisa que desejavam era um paciente descontrolado, gritando ao saltar da cama a cada cinco minutos. Daí o número sufocante de cobertores, bem presos para evitar movimentos. Fique quieto, deitado... recostado nos travesseiros... tomando banho de luz e calor... sem criar caso. Mais um pouco daquele tratamento, pensou, e esqueceria o próprio nome. O mundo lá fora deixaria de fazer diferença. Nada de emprego a sua espera. Nada de Fairstone. Nem do maníaco a disparar tiros na sala de aula...

Rebus virou de lado, usando as pernas para soltar as cobertas. Era uma luta árdua, como a de Harry Houdini contra a camisa-de-força. O homem no leito vizinho abrira os olhos e o observava. Rebus piscou para ele ao erguer os pés no ar.

"Não pare de cavar", disse ao homem. "Vou dar uma volta, tirar a terra da perna da calça."

Pelo jeito, a alusão não fez sentido para seu companheiro de cela...

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

poesia de dylan thomas

lone 

AMOR NO HOSPÍCIO

Uma estranha chegou
A dividir comigo um quarto nessa casa que anda mal da cabeça,
Uma jovem louca como os pássaros

Que trancava a porta da noite com seus braços, suas plumas.
Espigada no leito em desordem
Ela tapeia com nuvens penetrantes a casa à prova dos céus

Até iludir com seus passos o quarto imerso em pesadelo,
Livre como os mortos,
Ou cavalga os oceanos imaginários do pavilhão dos homens.

Chegou possessa
Aquela que admite a ilusória luz através do muro saltitante,
Possuída pêlos céus
Ela dorme no catre estreito, e no entanto vagueia na poeira
E no entanto delira à vontade
Sobre as tábuas do manicômio aplainadas por minhas lágrimas deâmbulas.
E arrebatado pela luz de seus braços, enfim, meu Deus, enfim
Posso de fato
Suportar a primeira visão que incendeia as estrelas.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

frases de filmes: o advogado do diabo

satan

"Eu sou a mão por baixo da saia da Monalisa. "

O Orientalista, de Tom Reiss

Leia trecho do livro

CAPÍTULO 1
A Revolução

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LEV NUSSIMBAUM NASCEU EM OUTUBRO DE 1905, na época em que a cultura tolerante e haute capitaliste de Baku começava a entrar em decadência. No dia 17 de outubro, o czar Nicolau II prometeu a seu povo uma constituição. Essa foi uma falsa promessa destinada a provocar um curtocircuito no crescente desejo de revolução e nos movimentos por toda a Rússia com badernas, pilhagens e assassinatos que estavam na ordem do dia. Em Baku, os cossacos cavalgavam pela cidade atacando cidadãos com o pretexto de restabelecer a ordem, enquanto azerbaijanos e armênios transformavam sua cidade cosmopolita em zona de guerra medieval. Elegantes villas eram cercadas se seus proprietários pertencessem a um grupo étnico ou religioso que desagradasse a um determinado grupo de baderneiros. Como outros autores nascidos nos últimos anos de um império em decadência, Lev idealizava aquele seu mundo que finalmente sucumbiu pouco depois de ele completar 15 anos, quando muitos habitantes precisaram fugir para salvar suas vidas, alguns deixando o jantar servido à mesa. Lev se recordava de Baku como um lugar cuja benevolência tinha raízes na antiguidade e na relativa fraqueza das autoridades que a governavam. Lev passaria o resto da vida opondo-se aos revolucionários que acabaram com a complexa rede das antigas religiões e dos antigos impérios, substituindo-a por um novo credo autoritário. Para Lev, as forças revolucionárias responsáveis pelas mudanças políticas seriam sempre lembradas pela "loucura furiosa que tomou a cidade de assalto",

pelos esgares que o povo passou a usar no lugar de seus rostos. Tudo que havia de mais infernal, de mais animalesco, de mais medíocre de que a natureza humana é capaz estava escrito naqueles esgares. Era como se as expressões daqueles rostos, tendo sido dominadas pela violência, tivessem atingido uma nova liberdade e se apresentassem agora em sua forma mais estúpida, mais animalesca e "livre". (...) O bolchevismo começou por transformar rostos humanos em esgares. A cidade de Baku não tinha qualquer registro do nascimento de Lev Nussimbaum em seus arquivos. Tampouco o tinham as cidades de Tiflis e Kiev, Odessa ou Zurique. Lev sugeriu, em um dos muitos relatos de seus primeiros anos de vida, esse publicado em um jornal de Berlim em 1931, que ele não havia nascido em lugar algum:

Nascido em...? Aqui tem início a problemática natureza da minha existência. A maioria das pessoas é capaz de indicar uma casa ou pelo menos uma cidade onde nasceram. A esse lugar, ou a essa casa, uma pessoa faz peregrinações nos seus últimos anos de vida, a fim de se deleitar com recordações sentimentais. Eu teria que fazer uma peregrinação a um vagão de um trem expresso. Nasci durante a primeira greve ferroviária da Rússia, no meio das estepes russas, entre a Europa e a Ásia. Minha mãe retornava de Zurique, sede dos revolucionários russos, para Baku, onde morava nossa família. No dia em que nasci, o czar proclamou o manifesto no qual assegurava aos russos que eles teriam uma constituição. No dia de minha chegada a Baku, a cidade estava tomada pelas chamas da Revolução e multidões estavam sendo massacradas. Eu mesmo tive que ser levado até meu pai em um cocho de cavalo tomar água, e meu pai quis atirar-me para fora de casa juntamente com minha ama-de-leite. Assim teve início minha existência. Pai: um magnata da indústria do petróleo; mãe: uma revolucionária radical.

Nessa versão da história de seu nascimento, Lev veio ao mundo em meio à convulsão política e social que determinou sua vida, e em seus muitos relatos acerca de sua família e de sua origem ele jamais se desviou desses fatos básicos.* E por mais absurda que essa história pareça, ela pode ser verdadeira. Outras fontes dão conta de história semelhante, inclusive a governanta alemã de Lev, Alice Schulte. Frau Schulte escreveu suas memórias de Lev com uma caligrafia caprichada, na década de quarenta, em um convento no norte da Itália onde passou a viver depois que o menino que ela acompanhara por toda a vida tornou-se um homem perseguido. Ela parece ter se sentido obrigada a colocar os fatos da vida confusa de Lev em alguma ordem, porém o documento é frustrante por ser muito breve. E como Frau Schulte está enterrada como indigente em um cemitério próximo ao convento desde 1958, perdeu-se essa preciosa fonte de informação. O primeiro livro de Lev, Sangue e petróleo no Oriente, estabelece as bases do mito no qual o autor estava por se transformar, ligando sua história pessoal à história do Cáucaso. Lev apresenta seu pai, Abraham, a passear diante da cadeia local, com "um gorro oriental de lã de carneiro na cabeça e nas mãos um rosário de âmbar sem o que ninguém pode passar em Baku". Os traços bronzeados do pai, que Lev em outra parte atribuiu a uma herança racial equilibrada das aristocracias persa e turca, revelavam "uma expressão facial imperturbável, fatigada, mas também a de um homem ansioso por ação, a expressão de um oriental que trocou suas antigas tradições de comando pela vida social da jovem cidade petrolífera". Nesse relato seu pai compra a liberdade de sua mãe ("uma moça muito jovem de olhos escuros(...) membro do Partido Bolchevista da Rússia"), que se encontrava em uma prisão imperial aguardando para ser deportada como agitadora política. Abraham prontamente casa-se com ela e a leva para seu harém. A mãe de Lev, por sua vez, assume o controle da casa e despacha o harém. *O significado dos acontecimentos do dia em que ele nasceu assombraria Lev por toda sua vida, mas ele nunca soube ao certo que dia foi aquele. Às vezes ele o datava de 20 de outubro, mas outras vezes falava em final de outubro ou início de novembro; seu pai lhe disse que ele havia nascido em outubro, mas tampouco tinha certeza do dia. Para aumentar a confusão, havia ainda o fato de o calendário tradicional da Rússia, o calendário juliano em vigor até 1917, diferir do moderno calendário gregoriano em 11 dias. Portanto, em certo sentido, Lev poderia ter nascido em outubro e em novembro. Não é de surpreender que ele tenha comemorado seu aniversário certa vez em Nova York durante uma semana. A idéia de que Abraham Nussimbaum fosse um aristocrata muçulmano de origem persa e turca — qualquer coisa menos um judeu de origem européia — era parte do personagem que Lev criou para si. O velho Nussimbaum nasceu, de fato, em Tiflis — atualmente Tbilissi, a capital oficial do Cáucaso administrado pela Rússia — no dia 24 de agosto de 1875. (O registro deste nascimento existe.) O pai de Lev era um judeu asquenaze cujos pais haviam chegado ao Cáucaso vindos de Kiev ou de Odessa, os grandes centros judaicos da Área de Estabelecimento fora dos quais os judeus russos não tinham permissão para viajar ou trabalhar (apesar de muitos deles conseguirem, por meio de suborno, ir para outros lugares do império). A Área de Estabelecimento consistia de territórios que haviam caído sob o domínio do cada vez mais reduzido commonwealth polonês — basicamente a Bielorússia, a Lituânia e a Ucrânia ocidental — até serem anexados à força por Catarina, a Grande em 1772, 1793 e 1795.* Juntamente com milhões de cristãos ortodoxos e de católicos eslavos, quase meio milhão de judeus passaram a ser súditos do Império Russo expandido. Até a anexação dos territórios poloneses, o Império Russo praticamente não tinha judeus e encontrava-se muito mal preparado para lidar com aquele novo acréscimo à sua composição étnica e religiosa. A solução oficial do governo russo para a questão dos judeus foi confiná-los às áreas que Catarina havia anexado — conhecidas como Área de Estabelecimento. Na prática, isso criou o maior gueto da história, uma vasta prisão geográfica para os novos judeus "russos". Os territórios que compreendiam a Área de Estabelecimento eram provincianos, anti-semitas e sujeitos a desabastecimento e a outras crises econômicas. *O que a princípio foi uma invasão limitada de território pelos monarcas da Rússia, da Prússia e da Áustria tornou-se um desmembramento territorial em grande escala na década de 1790, depois que os poloneses, inspirados pelos ventos vindos da França, aboliram sua monarquia e redigiram uma constituição. A czarina Catarina liderou o ataque para a eliminação das "contagiosas idéias democráticas" da Polônia. Do ponto de vista pós- 1939, a solução de Catarina — o desmembramento à força da Polônia, com tropas alemãs atacando pelo oeste e tropas russas atacando pelo leste — parece uma espécie de ensaio feito no século XVIII para o pacto entre Hitler e Stalin. A Rússia já era uma terra de tamanho fervor religioso que até mesmo seus governantes cristãos ortodoxos eram considerados hereges por uma grande percentagem de seu povo: os "Antigos Crentes" — milhões de fundamentalistas apocalípticos que não aceitavam algumas pequenas modificações do ritual da igreja russa feitas no século XVII para aproximá-la das práticas ortodoxas gregas. Os Antigos Crentes ficaram tão revoltados com a possibilidade de aquelas modificações prejudicarem sua salvação eterna que se lançaram em grandes rebeliões contra as "legiões de anticristos" do czar e, em protesto, muitos imolaram-se pelo fogo (mas ainda havia cerca de 13 milhões deles quando Lev nasceu). Havia também os "judaizantes", cristãos que decidiram renunciar a Cristo e seguir apenas o Antigo Testamento, guardando o sábado como dia sagrado, além de adotar vários outros costumes judaicos sem, todavia, considerarem- se judeus. Auxiliados pelos eremitas trans-Volga, os judaizantes levaram a ortodoxia russa até o ponto mais próximo que ela esteve de uma reforma — e provocaram uma reação que barrou a presença dos verdadeiros judeus da Rússia ao longo dos três séculos seguintes. Quando o czar Ivan III, que gostava dos judaizantes, convidou-os a ir a Moscou, estes acabaram por converter tantos membros da nobreza da corte nas últimas décadas do século XV que os tradicionalistas sentiram necessidade de fazer oposição a essa tendência selecionando alguns deles para serem queimados em praça pública. O clero ortodoxo também pressionou os czares a banir os judeus, que eram acusados de ter dado início à heresia dos judaizantes; a expulsão foi levada a cabo em meados do século XVI, motivo pelo qual o império era tão desprovido de judeus quando adquiriu a Área de Estabelecimento no final do século XVIII. Assim como a maçonaria — com a qual era intimamente associado, principalmente depois que os maçons russos adotaram a Cabala e começaram a eleger os "Cohens" para seus templos — o judaísmo era simplesmente considerado uma religião explosiva e contagiosa demais para ser permitida em território russo. As permanentes crises religiosas da Rússia acrescentaram premência ao desejo oficial de converter sua grande e nova população de judeus. Em 1817, o czar Alexandre I fundou pessoalmente a Sociedade dos Israelitas Cristãos, mas teve menos sorte na derrota do judaísmo do que havia tido derrotando Napoleão; ao contrário, servos e comerciantes não judeus de áreas próximas à Área de Estabelecimento começaram a dar preocupantes sinais "judaizantes". A religião ainda era uma força tão anárquica e volátil na Rússia que quando o czar Alexandre morreu em 1825, em uma viagem ao Mar Negro, muitos russos insistiram em dizer que ele não tinha realmente morrido, mas que havia aderido secretamente a uma nova seita e que passara a percorrer o país com o nome de Fedor Kuzmich. No século XIX foram muitos os planos, por parte do czar e de seus opositores revolucionários, para lidar com o "elemento estranho", os judeus. Os planos foram se tornando cada vez mais violentos no decorrer do século. Na década de 1820, o conde Pestel, um nobre livre-pensador, sugeriu que fosse dado aos judeus um Estado independente na Ásia Menor e que eles fossem deportados em massa para lá. Porém já no final daquele século, Constantine Pobedonostsev, principal conselheiro dos dois últimos czares, sugeria que o "problema judaico" da Rússia fosse resolvido em três partes: um terço deveria emigrar, um terço deveria adotar o cristianismo e um terço deveria morrer de inanição. A Okhrana, a polícia czarista, forjou um documento que se tornou conhecido como Os protocolos dos sábios do Sião, um suposto plano de tomada do poder pelos judeus através de uma revolução global. Durante a abortada revolução de 1905, a Rússia foi varrida por pogroms que chocaram o mundo. Nesse vasto império anti-semita, o Cáucaso era um excepcional oásis. Ali os judeus eram simplesmente uma minoria em meio a outras, por sinal uma minoria antiga e bastante admirada. Muitos judeus haviam fugido para lá com a destruição do Segundo Templo, no ano 70 da era cristã, e o Azerbaijão tinha absorvido remanescentes do exílio da Babilônia, que fugiram para as terras altas ao norte de Baku durante a conquista islâmica da Pérsia. Até mesmo os judaizantes, os judeus nãojudeus da Rússia, lá encontraram abrigo e se estabeleceram nas florestas junto à fronteira entre a Pérsia e o Azerbaijão. Aos olhos dos cãs muçulmanos que governavam grande parte do Cáucaso, a condição dos judeus como Povo do Livro situava- os um pouco acima dos zoroastras e das várias seitas pagãs. Judeus asquenazes da Área de Estabelecimento partiram clandestinamente para o Cáucaso — uma viagem de poucos dias através do Mar Negro — ao lon- go do século XIX. Esse movimento tornou-se mais intenso com o boom do petróleo a partir de 1870. É provável que o avô de Lev tenha migrado da Área de Estabelecimento para Tiflis nos anos 1850 ou 1860, e que seu pai tenha saído de Tiflis para Baku no início dos anos 1890. Lev jamais revelou essa parte de seu passado, mas é provável que Abraham Nussimbaum tenha visto em Baku o mesmo que viu seu contemporâneo Ossip Benenson, outro judeu asquenaze que enriqueceu com o petróleo. Flora, filha de Benenson, relata que seu pai pouco depois de casar-se, por volta de 1880, deixou a família na Área de Estabelecimento porque "tinha visões do distante Cáucaso, um lugar que no século XIX fazia parte dos sonhos românticos de todos os jovens russos... [porém ele] nada tinha de romântico; foi seu espírito de jogador que o levou a arriscar-se em um lugar tão distante de suas raízes". Flora Benenson cresceu no mesmo ambiente que Lev. Ambos milionários em uma cidade onde os judeus eram minoria, os Benenson e os Nussimbaum certamente se conheciam. Abraham Nussimbaum enriqueceu como comissário do petróleo de Baku, uma espécie de intermediário legal que também possuía poços de petróleo, mas o petróleo de Baku fez dos Benenson uma das famílias mais ricas da Rússia. Em 1912 a família comprou uma mansão em São Petersburgo da qual se podia ver o palácio do czar. Porém as recordações de Flora da primeira celebração da páscoa judaica em São Petersburgo contrastam de maneira chocante com a festa de natal interétnica da qual o jovem Lev participou no final daquele mesmo ano. Ela se lembrava de que na noite do seu seder, "quando tudo estava pronto, nosso mordomo foi à frente de uma delegação de empregados até os aposentos de minha mãe. Haviam feito todo o serviço, disse ele, e estavam se retirando da casa. ‘Não podemos servir uma refeição na qual os senhores consomem o sangue de uma criança cristã’, informou o mordomo à minha mãe. ‘Amanhã estaremos de volta’." Era essa a diferença entre as outras cidades do Império Russo e Baku. A despeito da Área de Estabelecimento, o judeu que tivesse dinheiro suficiente podia viver onde bem entendesse no império do czar. Mas somente no Cáucaso ele podia se esquecer do estigma de ser judeu. E o lugar mais tolerante e cosmopolita do Cáucaso era a capital do Azerbaijão, Baku. A palavra persa para fogo é azer, e desde tempos remotos a abundância de petróleo e de gás natural no Azerbaijão, que levava as encostas das montanhas a explodir em incêndios espontâneos, fez daquela região o centro do zoroastrismo, a antiga religião persa pré-muçulmana. Praticamente todas as religiões encontraram abrigo naquela região. Quando Roma ainda matava cristãos, dois reinos que faziam fronteira com o Azerbaijão, a Armênia e a Geórgia, foram dos primeiros países a se converterem ao cristianismo. Quando exércitos muçulmanos se espalharam a partir da Arábia no século VIII muitos cristãos, zoroastras e pagãos adotaram a fé muçulmana, porém muitos foram também os que não a adotaram. O islamismo simplesmente juntou-se à babel de religiões daquela área. Quando os cruzados foram expulsos da Palestina três séculos depois, encontraram um novo lar nas montanhas do Azerbaijão, onde estabeleceram reinos que ainda existiam e chocaram os antropólogos no início do século XX. Com o passar do tempo, como sua cultura se desenvolveu ao lado da cultura persa, o Azerbaijão se transformou no único país muçulmano além do Irã que é oficialmente xiita — que reverencia uma linhagem de mártires sagrados enviados por Ali, sobrinho e genro do Profeta. Em várias ocasiões, os cãs azerbaijanos apossaram-se do trono da própria Pérsia; a partir do século XVI, as grandes dinastias persas tinham à frente governantes da etnia azerbaijana. A influência russa espalhou-se rapidamente pela região no início do século XIX. Quando as tropas do czar conquistaram o Cáucaso, os azerbaijanos romperam os laços com os conservadores xiitas do Irã e tornaram-se "europeus". Umm-El-Banu Asadullayeva, que partiu de Baku em 1922 e escreveu suas memórias em Paris sob o pseudônimo de Banine, lembra-se de que em sua própria "família de muçulmanos fanáticos" as mulheres só se interessavam, de fato, por roupas, jóias e móveis vindos de Paris e de Moscou e por jogos de azar (o pai, antes um fazendeiro, tornou-se milionário quando descobriu petróleo em suas terras). Suas tias, "gordas, morenas e com buço", fumavam, falavam da vida alheia o dia todo e "jogavam pôquer com uma paixão inigualável". Assim resumiu ela, com espírito crítico, a virada do século na Baku de sua infância:

O jogo de azar é proibido pelo Alcorão — toda Baku jogava cartas e grandes somas de dinheiro trocavam de mãos em apostas. Fortes bebidas alcoólicas como a vodca e o conhaque substituíram o vinho, que era condenado pelo Profeta, com o pretexto de aquelas não serem tecnicamente condenadas. A reprodução do rosto humano era também proibida — os fotógrafos, porém, não davam conta dos novos fregueses. Os muçulmanos se deixavam fotografar de perfil ou de frente, desde que o fundo fosse um parque ou uma cortina fechada.

O boom do petróleo nos Estados Unidos teve início com o primeiro jorro na Pensilvânia na década de 1850, mas em Baku o petróleo já jorrava havia dois mil anos. O petróleo de Baku iluminava os templos de Zaratustra, e Marco Pólo já falava do lugar como um dos principais pontos de parada dos mercadores da rota da seda. Mas por quase dois milênios, o fluxo constante do ouro negro não provocava paixões em ninguém além dos zoroastras, que fizeram de Baku o centro de seu culto. Grandes quantidades de estóicos emaciados e de monges adoradores do fogo viajavam de lugares tão remotos como a Índia para passar a vida sentados em fortalezas onde o fogo ardia, suportando a fome para melhor se nutrirem das chamas eternas e purificadoras. Para o restante da população, o óleo cru era uma lama permanente na cidade onde viviam poucos milhares de pessoas. Ele envenenava o solo e forçava os habitantes a partir para as estepes e para as florestas montanhosas do Azerbaijão — nenhum outro país tem mais zonas climáticas em área tão pequena — à procura de solo não contaminado pelo óleo cru. Até mesmo as águas do Mar Cáspio freqüentemente se incendiavam quando a borra de óleo se tornava espessa demais. "Tenho lembranças de ondas em chamas", escreveu uma das imigrantes recordando-se de sua infância em Baku, "que provocavam um clarão na noite, quando os vapores explodiam em milhares de fagulhas." Até o século XIX, o petróleo era usado principalmente em remédios, e quase todo mundo acreditava em suas propriedades medicinais. Algumas tribos caucasianas adoravam o petróleo como elemento divino. Acreditava- se que seus vapores tivessem salvo Baku da Peste Negra. Em sua viagem pelo Cáucaso na década de 1850, Alexandre Dumas ficou maravilhado com os cidadãos anacrônicos do Azerbaijão, que tinham o espírito aventureiro e a famosa bravura de seus mosqueteiros; Dumas escreveu em seu diário que "entrar em Baku é como penetrar em uma das fortalezas mais poderosas da Idade Média". Mas logo tudo isso ia mudar. Em meados do século XIX, quando o querosene feito do petróleo começou a substituir o caro óleo de baleia, teve início a Era da Iluminação. O querosene tornou-se subitamente a mais valiosa commodity do mundo e as forças que propulsaram Rockefeller e a Standard Oil foram deflagradas em Baku. Os poços de Baku, chamados de "fontes", tinham tamanho e força jamais vistos antes. Com apelidos como Ama-de-leite e Bazar do Ouro, eles acabavam por se transformar em pequenos vulcões de petróleo que escapavam ao controle. Tingiam de negro as praias de Baku e o litoral do Mar Cáspio logo ficou tão tomado por torres de petróleo que em certos lugares não era possível ver os navios que se aproximavam. A primeira "fonte" de Baku, perfurada em junho de 1873, jorrou petróleo durante quatro meses até que seus donos conseguissem controlá-la, quando o equivalente a várias dezenas de milhões de barris de petróleo já haviam encharcado a terra. Durante alguns meses esse único poço fez cair vertiginosamente o preço do petróleo e dois anos depois ele ainda tinha força suficiente para lançar ao ar uma coluna de quase 3 metros de largura e 14 metros de altura. Em 1901, Baku já produzia metade do petróleo consumido em todo o mundo. Da noite para o dia, a cidade tornou-se internacional e a população de azerbaijanos passou a ser menor do que a de russos, georgianos e de pessoas vindas dos quatro cantos do mundo. Entre 1856 e 1910, a população de Baku cresceu em ritmo mais acelerado que as de Londres, Paris e Nova York. Os irmãos Nobel, que dominaram a indústria petrolífera nas primeiras décadas, inventaram o navio petroleiro para atender a demanda do Oriente pelo petróleo de Baku e deram a seu primeiro petroleiro o nome apropriado de Zoroaster. A família Nobel fez a maior parte de sua fortuna com o petróleo de Baku, apesar de a invenção da dinamite pelo irmão Alfred ter ficado mais famosa.