segunda-feira, 30 de abril de 2012

TRECHO drácula

Bram Stoker

Nosferatu

O DIÁRIO DE JONATHAN HARKER
(Notas taquigráficas)

3 DE MAIO, BISTRITZ. Parti de Munique às 20h35 da noite, chegando a Viena na manhã seguinte. A chegada estava prevista para as 6h45 da manhã. O nosso trem, porém, se atrasara em uma hora. Pelo que pude apreciar ainda do trem, através do clarão de suas luzes, e de uma breve caminhada pelas ruas, Budapeste pareceu-me uma cidade realmente maravilhosa. Não obstante, limitei-me a uma rápida excursão em torno da estação ferro viária, pois, em virtude do atraso, devíamos partir o mais cedo possível. Tive então a impressão de que o Ocidente ficara para trás e que agora entrávamos no Oriente. A mais ocidental das portentosas pontes que cruzam o Danúbio, cujo leito aqui nos impressiona por sua amplitude e profundidade, põe-nos inopinadamente em contato com as tradições do mundo turco.

Deixamos Budapeste com a desejada pontualidade e, já ao anoitecer, atingimos Klausenburgo. Aqui fiz uma pausa e pernoitei no hotel Royale. À guisa de jantar ou, antes, de uma ceia, serviram-me um frango condimentado com uma espécie de pimenta vermelha, prato bastante saboroso, o qual, entretanto, me deixou com muita sede. (Lembrete: obter uma receita para Mina.) Indaguei do garçom e ele me disse que se tratava de paprika hendl, preciosidade da culinária nacional que poderia ser saboreada ao longo de toda a rota dos Cárpatos. Começava eu então a avaliar a verdadeira utilidade local dos arremedos de alemão que, às vezes, conseguia articular. E, efetivamente, não saberei jamais como teria prosseguido se não fosse capaz de apelar para semelhante ginástica linguística.

Dispondo de algum tempo livre durante minha per manência em Londres ali frequentei o Museu Britânico, consultando livros e mapas geográficos na biblioteca, a fim de recolher dados sobre a Transilvânia. Eu estava convencido de que um certo conhecimento prévio a respeito daquela região dificilmente deixaria de ser válido para estabelecer mais sólidas relações com um nobre do mesmo país. Verifiquei então que o distrito por ele citado se achava localizado no extremo oriental do território, precisamente na faixa limítrofe de três Estados: Transilvânia, Moldávia e Bukovina, no centro da cadeia dos Cárpatos, um dos mais selvagens e desconhecidos sítios da Europa. Em nenhuma das muitas obras e mapas consultados me foi possível estabelecer a exata localização do Castelo de Drácula, porquanto ainda não existem cartas geográficas da área em causa, comparáveis às que são editadas pelo nosso Serviço Geodésico oficial. Descobri, porém, que Bistritz, a vila postal indicada pelo Conde Drácula, corresponde a uma localidade razoavelmente bem conhecida. Incluirei aqui algumas de minhas anotações, pois as mesmas servirão para ativar minha memória quando relatar esta viagem ao voltar para junto de Mina.

A população da Transilvânia é formada por quatro distintas nacionalidades: os saxões no sul e, de mistura com eles, os valáquios, descendentes dos dacos; no oeste, os magiares; e, finalmente, nos setores norte e leste, os szekes. Meu destino leva-me à região habitada por estes últimos, os quais se dizem descendentes de Átila e dos hunos. Tais pretensões devem ser legítimas, pois quando os magiares conquistaram o país, ainda em pleno século onze, ali encontraram os hunos já fixados. Já li alhures a afirmação de que todas as superstições existentes neste mundo se originam da ferradura dos carpatianos, como se para lá convergissem todos os vórtices das mais férteis imaginações. Mas se assim o é, de fato, minha permanência em tal ambiente se tornará sumamente interessante. (Lembrete: preciso interrogar o Conde no tocante à vera cidade desses fatos.)

Embora o meu leito fosse bastante confortável, não consegui dormir tranquilamente, pois meu sono foi perturbado pelos sonhos mais bizarros. Havia sob a minha janela um cão que uivou a noite inteira, o que provavelmente também contribuiu para a minha insônia, ou talvez a paprika a tivesse provocado, já que durante a noite fui obrigado a esvaziar todo o conteúdo do meu jarro de água potável, sem contudo saciar a minha sede. Já ao amanhecer, mal eu havia adormecido, fui despertado por sucessivas batidas a minha porta, o que me faz crer que finalmente estivesse dormindo a sono solto. No desjejum tornaram a servir-me uma farta porção de paprika, acompanhada de uma espécie de sopa de farinha de milho a que denominam de mamaliga e berinjela recheada de carne, delicioso prato conhecido como impletata. (Lembrete: obter também esta receita.) Mal pude saborear tal refeição. É que o trem deveria partir antes das oito da manhã. Este propósito, entretanto, não foi além da intenção, pois, a despeito de minha correria para chegar à estação às sete e trinta, fiquei imobilizado em minha poltrona por mais de uma hora diante da plataforma de embarque até soar o sinal de partida. Parece-me aqui que quanto mais avançamos para leste mais aumenta a impon tualidade dos comboios ferroviários. Nesta progressão, o que dizer desta pontualidade na China?

Durante o dia inteiro parecíamos rolar através de um país emoldurado das mais fartas e variadas belezas. Por vezes deparávamos com pequenas vilas ou castelos engastados nos cumes de elevações alcantiladas, como os costumamos ver nas litogravuras de missais antigos. Logo adiante, marginávamos rios e torrentes cujas extensas margens, recobertas de volumosas pedras e calhaus desnudos, pareciam estar sujeitas a violentas e periódicas inundações. Somente uma massa d'água realmente portentosa e dotada de uma tremenda força de devastação é capaz de tamanha erosão em tão amplas faixas ribeirinhas. Em cada uma das estações do nosso trajeto notamos a presença de grupos de pessoas, às vezes mesmo pequenas multidões, todos ostentando trajes dos mais variados tipos e aspectos. Alguns deles assemelhavam-se particularmente aos campesinos de nosso país ou mesmo àqueles que encontrei em minhas andanças através da França e da Alemanha, vestindo jaquetas curtas em conjunto com calças de confecção caseira, complementadas por um chapéu redondo. E ainda outros que se destacavam por seu vivo pitoresco. As mulheres em geral eram graciosas, exceto quando observadas de perto. Suas cinturas eram pesadas e muito volumosas. Todas elas portavam blusas com mangas longas e brancas dos mais variados tipos. A maioria usava cintos largos, dos quais pendiam profusas tiras leves e quase flutuantes, semelhantes a uma vestimenta de ballet, sob as quais, obviamente, havia uma anágua. As figuras étnicas mais estranhas eram representadas pelos eslovacos, que formavam um aglomerado de aspecto muito mais bárbaro que os demais, com seus enormes chapéus de vaqueiro, amplas calças de lona de um branco cru, camisas de linho branco, cingidas por enormes e pesados cinturões de couro, medindo aproximadamente trinta centímetros de largura e fartamente guarnecidos de cravos de bronze. Calçavam altas botas em cujos canos inseriam as extremidades das pernas de suas calças. Suas cabeleiras eram longas e negras, e seus bigodes também negros eram de tamanho e espessura dos mais avantajados. Quanto ao aspecto eram realmente pitorescos, mas aparentemente nada afáveis. Vistos sobre um palco, seriam imediatamente identificados no papel de um bando de antigos salteadores orientais. No entanto, conforme a seguir vim a saber, trata-se de gente de hábitos acentuadamente pacatos e talvez carente de uma mais natural autoafirmação.

Já o crepúsculo descambava para a noite fechada quando alcançamos Bistritz, que antes de tudo é um sítio antigo dos mais interessantes. Localizando-se praticamente na fronteira - posto que o Passo Borgo conduz diretamente a Bukovina - sua existência pregressa foi das mais atribuladas e, evidentemente, guarda até hoje claros vestígios deste seu passado. Há cinquenta anos, foi assolada por uma sucessão de grandes incêndios, os quais em cinco diferentes oportunidades lhe causaram uma tremenda devastação. Ainda no limiar do século dezessete, Bistritz foi submetida a um assédio que teve a duração de três semanas. Teve então treze mil baixas, sendo a maior parte dessas perdas de guerra causada por doenças e pela fome.

Franz Lima.

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