Ruy Castro
De 1946 pra cá, todas as vezes em que Gilda foi exibido em cinema ou TV, legiões de mulheres, ao fim do filme, juraram não descansar enquanto não se parecessem com Gilda. Legiões de rapazes também. Note bem: os representantes de uma e de outra categoria não queriam parecer-se com Rita Hayworth – mas com a Gilda de Rita Hayworth. E não se tratava apenas de imitar o seu jeito quase imoral de jogar o cabelo, de transformar inocentes saboneteiras numa tentação erótica ou de fumar como se cada lenta baforada quisesse dizer alguma coisa. Era algo mais profundo e complexo: tentar apossar-se do seu fogo gelado, se se pode chamá-lo assim – a capacidade de inflamar uma paixão e, ao mesmo tempo, esnobar o ser inflamado a ponto de reduzi-lo à servidão total, ao nada. Não devia ser fácil. Tanto que, em nenhum outro filme, antes ou depois, e muito menos na vida real, nem a própria atriz conseguiu. Nem é preciso repetir a sua triste e batida frase, de que os homens dormiam com Gilda e acordavam com ela, Rita.
Mas não se deixe desanimar. Gilda, o filme, está agora disponível num cintilante vídeo lançado pela Columbia, apto a ser consultado e estudado por quem quiser incorporar traços da personagem à sua personalidade. É um filme sem preconceitos, um dos poucos a dar motivo para a alta estima em que é tido nos dois continentes sexuais: hetero e homo.
É provável que, ao produzir Gilda, isso não estivesse nos planos da Columbia. Pelo menos, não explicitamente. Era para ser apenas um bom drama romântico, com ação e tensão contínuas e uma baita personagem feminina. E a história, banal, não antecipava nenhuma possibilidade de malícia. Um aventureiro americano perdido na Argentina durante a Segunda Guerra, Johnny Farrell (interpretado por Glenn Ford), torna-se o homem de confiança do dono de um cassino, Ballin Mundson (vivido com o ar sinistro de manequim de vitrine por George Macready). Mundson viaja e volta casado com Gilda, mulher cujo passado faz pensar que ela terá um grande futuro. O que Mundson não sabe é que Farrell fez parte do passado de Gilda – e como! Os dois foram amantes (talvez em Nova York), separaram-se (por razões nunca explicadas), mas seu ódio é tão grande que, agora, em Buenos Aires, Gilda fará de tudo para destruir a amizade entre os dois homens.
E, pelo visto, ela devia ter seus motivos para isso. Em Casablanca, quando Humphrey Bogart deixou Ingrid Bergman tomar o avião com Paul Henreid, houve quem interpretasse sua galanteria como uma saída de Bogart para poder se dedicar à sua amizade com o chefe de polícia Claude Rains. No caso de Casablanca, isso podia ser um excesso de imaginação – mas, de fato, em Gilda, há certas coisas suspeitas na relação entre Farrell e Mundson. Uma delas, a insistência com que terminam cada frase, dirigindo-se carinhosamente um ao outro pelo primeiro nome. Outra: Mundson, mais velho, “adota” o boa-pinta Farrell depressa demais, revelando-lhe até a combinação de seu cofre. E mais outra: a frieza com que Mundson não se incomoda de ser traído por Gilda, desde que seja com Farrell – mas Farrell jamais o trairá com Gilda e não se importa que ela dê suas voltinhas com estranhos, desde que Mundson não fique sabendo e se magoe. É claro que, no fim, o triângulo se resolve a favor de Farrell e Gilda – afinal, eles são os astros do filme. Mas que fica no ar um travo de bandalheira, ah, fica. E pode ser a razão do status de cult que o filme goza com o público gay.
A Hollywood dos anos 40 era medrosa demais para se permitir qualquer ambigüidade moral, mas alguns fatos dão base à idéia de que pode haver um – como é mesmo a palavra? – “subtexto” maroto em Gilda. O roteiro foi obra de duas mulheres: Jo Eisinger, que fez o rascunho, e Marion Parsonnet, que lhe deu forma final. Foram elas que criaram Gilda como uma grande mulher e, de quebra, podem ter-se divertido inoculando dubiedades nos dois personagens masculinos. Você dirá que o diretor – Charles Vidor – era um homem. Mas, na política dos antigos estúdios, o verdadeiro autor de um filme era quase sempre o produtor executivo, com o diretor não passando de um funcionário subalterno. E o produtor de Gilda era, não por acaso, outra mulher: a poderosa Virginia Van Upp, protegida do patrão Harry Cohn e com carta branca na Columbia. Cohn era famoso pela burrice e, se Virginia quisesse contrabandear qualquer ideologia exótica para dentro do seu filme, ela o faria. A Cohn só interessava que Rita Hayworth, já com 28 anos, tivesse finalmente um papel que deixasse todo mundo salivando por ela.
Pois ela deixou. Por causa de Rita, criou-se toda uma mitologia em torno de Gilda. As platéias do pós-guerra acreditaram no slogan de lançamento do filme – “Nunca houve uma mulher como Gilda”. E com certa razão: desde 1934, quando se instituíra a autocensura em Hollywood, os filmes americanos não mostravam uma mulher tão sensual e dadivosa. Seu impacto em 1946 pôde ser medido até em megatons: pouco depois da estréia do filme, a bomba que os americanos explodiram no atol de Bikini, no Pacífico, na primeira experiência nuclear em tempo de paz, foi batizada de Gilda, pela equipe que a construiu. Trazia, inclusive, um desenho de Rita na carapaça numa publicidade espontânea e sem preço. Para definir Rita (que era então mulher de Orson Welles, embora o casamento estivesse afundando), o crítico do New York Times Bosley Crowther cunhou a expressão superstar – a primeira vez que uma estrela foi chamada de super. No Brasil, Gilda tornou-se fantasia de Carnaval e apelido de travesti, e foi usada pelas torcidas adversárias para ofender o ilibado, mas exuberante craque Heleno de Freitas.
Com tudo isso, Gilda nem precisava ser tão divertido. É o lixo de luxo, com uma chocante fotografia de filme noir, deslumbrantes cenários art déco e Rita usando um guarda-roupa que deve ter inspirado várias coleções. Mas o melhor são as falas, algumas infernais, e que, depois, o cinema se cansou de copiar. Eis algumas. Gilda finge esquecer o primeiro nome de Farrell e comenta: “Johnny – nome difícil de lembrar e fácil de esquecer”. Em outro momento, Farrell resume o seu desprezo por ela, dizendo: “Há mais mulheres do que qualquer outra coisa no mundo – exceto insetos”. A própria Gilda, numa avaliação ousada, se define: “Se eu fosse uma fazenda, não teria cercas”. Pena que nem sempre as legendas em português ajudem. Mundson bate à porta do quarto de Gilda e pergunta: “Gilda, você está vestida”? Em inglês, Mundson pergunta: “Gilda, are you decent?” Muito mais a propósito.
O filme se passa em Buenos Aires, mas há tanto Buenos Aires em cena quanto Zanzibar ou Timbuktu, ou seja, nenhum. Nem mesmo um plano geral da Plaza de Mayo ou uma mísera vista aérea. Bem diferente de Interlúdio, que Hitchcock rodou naquele mesmo ano e em que a história transcorre no Rio, com Cary Grant e Ingrid Bergman namorando o tempo todo diante de back projections da Cinelândia e de Copacabana. Gilda é claustrofóbico: toda a ação se passa em interiores e não há uma única seqüencia à luz do dia. É um pequeno mundo, dominado por uma grande mulher, que se compraz em humilhar e diminuir os dois homens de vento que a cercam. É esse o problema. Fosse o herói um machão argentino, daqueles de tango, bem passionais, Gilda entraria na linha com uns tapas assim que começasse a aprontar. Strip-tease ao som de “Put the blame on Mame”, então, nem pensar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário