quinta-feira, 28 de abril de 2011

SÓ GAROTOS

Patti Smith

Patti

Um trecho:

Estava quente na cidade, mas eu ainda usava minha capa de chuva. Dava-me segurança quando ia para as ruas atrás de trabalho, meu único currículo, uma passagem por uma fábrica, vestígios de uma formação incompleta e um uniforme de garçonete imaculadamente engomado. Arranjei uma vaga em uma pequena cantina italiana chamada Joe’s na Times Square. Três horas depois, no meu primeiro turno, derrubei uma travessa de vitela à parmegiana no paletó de tweed de um freguês e fui dispensada das minhas obrigações. Sabendo que nunca daria

certo como garçonete, deixei meu uniforme — um pouco manchado — com os tamancos combinando em um banheiro público. Minha mãe me dera aquilo, um uniforme branco e tamancos brancos, investindo suas esperanças no meu

bem-estar. Agora pareciam lírios murchos, largados em uma pia branca.

Quanto à nuvem densa de psicodelia da St. Mark’s Place, eu não estava preparada para a revolução em andamento. Havia um clima de paranoia, vago e inquietante, uma correnteza profunda de rumores, fragmentos captados de conversas que antecipavam a futura revolução. Eu simplesmente ficava ali sentada tentando imaginar tudo aquilo, o ar impregnado de fumaça de haxixe, o que talvez explique minhas lembranças oníricas. Fui atravessando, à unha, uma rede espessa de consciência cultural que nem sabia que existia.

Eu antes vivia no mundo dos meus livros, a maioria deles escrita no século xix. Embora estivesse preparada para dormir em bancos, metrôs e cemitérios, até arranjar um emprego, não estava preparada para a fome constante que me consumia. Eu era uma coisinha magricela com um metabolismo acelerado e um grande apetite. O romantismo não conseguia saciar minha necessidade de comida. Até mesmo Baudelaire precisou comer. Suas cartas traziam muitos gritos desesperados de desejo de carne e cerveja.

Eu precisava de um emprego. Fiquei aliviada quando me contrataram como caixa numa filial fora do centro da livraria Brentano. Teria preferido cuidar só da seção de poesia, em vez de encher o caixa vendendo joalheria étnica e artesanato, mas gostava de ficar olhando aquelas bugigangas de países distantes:

braceletes berberes, colares de conchas do Afeganistão, um Buda incrustado de joias. Meu objeto favorito era um singelo colar da Pérsia. Era feito de duas placas de metal esmaltado unidas por pesadas contas negras e prateadas, como um escapulário muito velho e exótico. Custava dezoito dólares, o que parecia ser muito dinheiro. Quando as coisas estavam calmas na loja, eu o tirava da caixa e copiava a caligrafia gravada em sua superfície roxa, e sonhava histórias sobre sua origem.

Pouco depois de começar a trabalhar ali, o menino que eu encontrara rapidamente no Brooklyn entrou na loja. Parecia muito diferente com aquela camisa branca e gravata, como um estudante católico. Explicou que trabalhava na Brentano do centro e tinha um crédito sobrando que estava pensando em usar. Passou muito tempo olhando tudo, as miçangas, as miniaturas, os anéis de turquesa.

Enfim falou: “Eu quero este aqui”. Era o colar persa.

“Oh, também é o meu favorito”, respondi. “Lembra um escapulário.”

“Você é católica?”, ele me perguntou.

“Não, é que eu gosto de coisas católicas.”

“Eu fui coroinha.” Sorriu para mim. “Eu adorava balançar o turíbulo.”

Fiquei feliz por ele ter escolhido minha peça favorita, apesar de triste por vê-la indo embora. Quando a embrulhei e entreguei a ele, eu disse impulsivamente: “Não vá dar isso a nenhuma outra garota além de mim”.

Fiquei instantaneamente constrangida, mas ele apenas sorriu e disse: “Pode deixar”.

Depois que ele saiu, olhei para o lugar vazio onde o colar ficava, sobre um pedaço de veludo preto. Na manhã seguinte uma peça mais sofisticada tomou seu lugar, mas lhe faltava o mistério simples do colar persa.

No fim da minha primeira semana eu estava muito faminta e ainda não tinha aonde ir. Comecei a dormir na loja. Eu me escondia no banheiro quando todo mundo ia embora, e depois que o vigia da noite trancava tudo eu dormia em cima da minha capa. De manhã parecia que eu tinha chegado cedo ao trabalho. Eu não tinha um centavo e vasculhava os bolsos dos empregados em busca de trocados para comprar biscoitos na máquina. Desmoralizada pela fome, fiquei chocada ao descobrir que não havia nenhum envelope para mim no dia do pagamento. Eu não havia entendido que a primeira semana era de experiência, e voltei para o vestiário aos prantos.

Quando voltei ao caixa, reparei que havia um sujeito rondando, observando. Ele usava barba e estava com uma camisa de risca de giz e um daqueles paletós com camurça nos cotovelos. O gerente nos apresentou. Era um escritor de ficção científica e queria me levar para jantar fora. Apesar de eu já estar com vinte anos, as palavras de minha mãe me alertando para não sair com desconhecidos ecoaram na minha cabeça. Mas a perspectiva de jantar me amoleceu, embora ele parecesse mais um ator interpretando um escritor.

Fomos andando até um restaurante no térreo do Empire State Building. Nunca tinha comido num lugar bom em Nova York. Tentei pedir alguma coisa não muito cara e escolhi peixe-espada, 5,95 dólares, o mais barato do cardápio. Ainda lembro do garçom colocando o prato na minha frente com uma bolota de purê de batata e uma posta de peixe além do ponto. Embora eu estivesse faminta, mal consegui sentir o gosto. Estava incomodada e não fazia ideia de como lidar com a situação, ou de por que ele queria comer comigo. Achei que ele estava gastando demais e comecei a me preocupar com o que ele esperaria receber em troca.

Depois de comer fomos andando até o centro. Caminhamos para o leste até o Tompkins Square Park e sentamos em um banco. Eu já estava pensando em frases para escapar dali quando ele sugeriu que subíssemos até seu apartamento para beber alguma coisa. Era isso, pensei, o momento decisivo sobre o qual minha mãe me alertara. Olhei para os lados, desesperada, incapaz de responder, quando vi um rapaz se aproximando. Foi como se um pequeno portal para o futuro se abrisse, e dele saiu o menino do Brooklyn que levara o colar

persa, como uma resposta a uma oração adolescente. Reconheci na hora seu passo ligeiramente cambaio e seus cachos desgrenhados. Estava de macacão e com um colete de pele de ovelha. No pescoço usava colares de miçangas, um pastorzinho hippie. Corri até ele e agarrei seu braço.

“Oi, lembra de mim?”

“Claro”, sorriu.

“Preciso da sua ajuda”, expliquei. “Você pode fingir que é meu namorado?”

“Claro”, ele disse, como se não estivesse surpreso com minha súbita aparição.

Arrastei-o até o autor de ficção científica. “Este aqui é o meu namorado”, disse-lhe ofegante. “Ele estava me procurando. Está louco. Quer que eu vá para casa agora.” O sujeito olhou para nós dois intrigadíssimo.

“Corre”, gritei, e o menino pegou minha mão e saímos correndo, atravessando o parque até o outro lado.

Sem fôlego, desabamos na escada de uma casa. “Obrigada, você salvou a minha vida”, falei. Ele assimilou a informação com uma expressão confusa.

“Eu não me apresentei, meu nome é Patti.”

“Meu nome é Bob.”

“Bob”, eu disse, olhando de fato para ele pela primeira vez. “Acho que você não tem cara de Bob. Tudo bem se eu te chamar de Robert?”

O sol havia se posto sobre a Avenue B. Ele pegou minha mão e vagamos pelo East Village. Me pagou um egg cream no Gem Spa, na esquina da St. Mark’s Place com a Second Avenue. Praticamente só eu falei. Ele simplesmente sorria e escutava. Contei-lhe minhas histórias de infância, as primeiras de muitas: Stephanie, o Canteiro, o salão de quadrilhas do outro lado da rua. Fiquei surpresa de como me senti à vontade e aberta ao lado dele. Mais tarde ele me contou que estava louco de ácido.

Eu só havia lido sobre lsd em um livrinho chamado Collages, de Anaïs Nin. Não sabia que a cultura das drogas estava florescendo no verão de 67. Tinha uma visão romântica das drogas e as considerava algo sagrado, exclusivo de poetas, músicos de jazz e rituais indígenas. Robert não parecia alterado ou estranho como eu talvez imaginasse. Ele irradiava um charme delicado e travesso, tímido e protetor. Passeamos até as duas da manhã e finalmente, quase ao mesmo tempo, descobrimos que nenhum de nós tinha um lugar para ir. Demos risada disso. Mas já era tarde e estávamos cansados.

 

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