terça-feira, 26 de abril de 2011

AMOR SEM FIM

Ian McEwan

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Um trecho:

É fácil precisar como começou. Fazia sol, mas estávamos debaixo de um carvalho que nos protegia parcialmente das fortes lufadas de vento. Ajoelhado na grama, eu segurava um saca?-rolhas enquanto Clarissa me passava a garrafa — um Daumas Gassac de 1987. Esse foi o momento, naquele exato instante foi espetado o alfinete no mapa do tempo: estendi o braço e, quando o gargalo frio e o invólucro metalizado tocaram a palma da minha mão, ouvimos um homem gritar. Voltamo-nos para o outro lado do campo e vimos o perigo. Ato contínuo, comecei a correr em sua direção. A transformação foi total: não me lembro de deixar cair o saca-rolhas, de me pôr de pé, de tomar alguma decisão e nem mesmo de ouvir as palavras de cautela lançadas por Clarissa em meu encalço. Que idiotice, correr para essa história e seus labirintos deixando para trás nossa felicidade no relvado primaveril sob um carvalho frondoso! Ouviu-se outro grito de homem e logo depois o de uma criança, enfraquecido pelo vento que rugia nas altas árvores ao longo das cercas vivas. Acelerei. E de repente reparei que, de pontos diferentes do campo, quatro outros homens convergiam para o local, todos correndo
como eu.

Vejo-nos de uma altura de aproximadamente cem metros pelos olhos do falcão que pouco antes havíamos observado disparando para o alto, dando algumas voltas e descendo como uma flecha no turbilhão das correntes de ar: cinco homens correndo em silêncio rumo ao centro de um campo de uns quarenta hectares. Eu vinha do sudeste, com o vento atrás de mim. Cerca de duzentos metros à minha esquerda, dois homens corriam lado a lado. Eram trabalhadores rurais que consertavam a cerca no sul do campo, onde passa a estrada. A igual distância vinha John Logan, cujo carro estava estacionado no acostamento gramado com a porta escancarada, ou com as portas escancaradas. Sabendo o que sei agora, é estranho evocar a figura de Jed Parry diretamente na minha frente, surgindo de um renque de faias do outro lado do campo, a uns quatrocentos metros de distância, e correndo contra o vento. Para o falcão, Parry e eu, com nossas camisas brancas brilhando contra o fundo verde, éramos figuras diminutas que corriam um para o outro como amantes, desconhecendo o sofrimento que esse encontro iria causar. O envolvimento que nos tiraria dos eixos estava para acontecer dali a alguns minutos, mas sua enormidade era ocultada pela barreira do tempo e pelo colosso no centro do campo, cujo fabuloso poder de atração tornava insignificantes as angústias humanas a
seu redor.

Que fazia Clarissa? Ela disse que tinha caminhado rapidamente para o centro do campo. Não sei como resistiu à compulsão de correr. Quando a coisa aconteceu — o fato que estou prestes a narrar, a queda —, ela havia quase nos alcançado e estava bem situada para observar tudo sem os estorvos da participação direta, das cordas e dos gritos, de nossa falta de cooperação fatal. Minha descrição se baseia também no que Clarissa viu, no que nos dissemos durante as obsessivas recapitulações que se seguiram: as consequências, o que aconteceu num campo que aguardava a ceifa do início do verão. Sim, as consequências, a segunda colheita, o crescimento resultante daquele primeiro corte
feito em maio.

Estou me detendo, retardando a informação. Deixo-me ficar no momento anterior porque, então, outros resultados ainda eram possíveis; quando vista da perspectiva do falcão, a convergência de seis figuras num espaço plano e verde oferece uma geometria confortadora, as limitações bem conhecidas da mesa de sinuca. As condições iniciais, a força e a direção em que ela é aplicada, definem todas as trajetórias subsequentes, todos os ângulos de colisão e repique, ao mesmo tempo em que as luzes de cima inundam com uma claridade reconfortante o campo, o feltro e todos os corpos que nele se movem. Enquanto ainda convergíamos sem fazer contato, nos encontrávamos num estado de graça matemático. Demoro-me na contemplação de nossas posições, das distâncias e dos pontos cardeais porque, no que tange aos acontecimentos que vieram depois, essa foi a última vez que entendi alguma coisa claramente.

Corríamos em direção a quê? Creio que nenhum de nós jamais o soube por completo. Superficialmente, para um balão. Não o espaço que contém a fala ou o pensamento dos personagens de uma história em quadrinhos, ou, por analogia, o tipo que necessita apenas de ar quente para subir. Tratava-se de um enorme balão cheio de hélio, esse gás nobre forjado do hidrogênio nas fornalhas nucleares das estrelas, primeiro passo na cadeia de geração das múltiplas e variadas formas de matéria no universo, inclusive nós próprios e todas as nossas elucubrações.

Corríamos em direção a uma catástrofe, em si mesma um tipo de fornalha cujo calor iria deformar identidades e destinos. Na base do balão, havia uma cesta com um menino dentro e, ao lado dela, agarrando-se por uma amarra, um homem necessitado de ajuda.

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