sábado, 30 de abril de 2011

O HOMEM INVISÍVEL

H.G. Wells

invisibleman

Um trecho:

Capítulo I

A chegada do estranho

O estranho apareceu no princípio de fevereiro, em pleno inverno, por entre um vento cortante e rajadas de neve, na derradeira nevasca do ano; cruzou a colina vindo da direção da estação de trem de Bramblehurst,1 e carregava uma pequena mala na mão enluvada. Estava agasalhado da cabeça aos pés, e a aba do seu chapéu de feltro mole escondia cada centímetro do seu rosto, com exceção da ponta lustrosa do seu nariz; a neve havia se acumulado sobre seus ombros e seu peito, e cobria com uma crosta branca a maleta que ele carregava. Ele

cambaleou para dentro da hospedaria Coach and Horses mais morto do que vivo, e jogou a mala no chão.

— Um fogo! — exclamou. — Por caridade! Um quarto e um fogo bem aceso!

Bateu com os pés no chão, sacudiu para os lados a neve acumulada e seguiu a sra. Hall até o saguão para se registrar. E com esta apresentação, e um par de soberanos atirados sobre a mesa, ele se instalou no albergue.

A sra. Hall acendeu a lareira e o deixou ali, enquanto ia ela própria preparar-lhe uma refeição. Um hóspede aparecendo em Iping em pleno inverno era uma sorte extraordinária, ainda mais um hóspede que não se dava o trabalho de regatear, e ela queria mostrar-se digna dessa sorte. Assim que encaminhou o preparo do bacon e desferiu algumas reclamações ríspidas para fazer despertar Millie, sua preguiçosa criada, ela levou toalha, pratos e copos para a sala e começou a arrumar a mesa com estardalhaço. Ficou surpreendida ao ver que,

embora o fogo já ardesse, o hóspede ainda estava de casaco e chapéu, parado de costas para ela, e observando pela janela a neve que caía no pátio. Mantinha às costas as mãos enluvadas, e parecia imerso em reflexões. Ela observou que a neve caída sobre seus ombros começava a gotejar sobre o tapete.

— Não quer tirar o casaco e o chapéu, senhor? — perguntou-lhe. — Posso mandar secá-los na cozinha.

— Não — disse ele sem se virar.

Ela ficou em dúvida se tinha escutado bem e estava a ponto de repetir a pergunta quando ele se virou e disse com firmeza:

— Prefiro ficar com eles.

Ela notou então que ele estava usando óculos de lentes azuladas com protetores laterais; além disso, usava barbas volumosas cujos pelos cobriam por completo o restante de sua fisionomia.

— Tudo bem, senhor, como preferir — respondeu. — Daqui a pouco a sala estará mais quente.

Ele não respondeu e virou-lhe as costas novamente. A sra. Hall, sentindo que suas tentativas de entabular conversa não eram bem recebidas, terminou de pôr a mesa em rápido staccato e retirou-se. Quando voltou à sala, o visitante permanecia ali de pé como uma estátua, as costas curvadas, a gola erguida, a aba gotejante do chapéu virada para baixo e escondendo por completo seu rosto e suas orelhas. Ela depositou

os ovos e o bacon sobre a mesa com ênfase considerável e anunciou, mais do que disse:

— Seu jantar está servido, senhor.

— Obrigado — disse ele, imediatamente, e não se moveu enquanto ela não se retirou e fechou a porta. Só então ele deu uma volta e se aproximou da mesa, com certa impaciência.

Ao atravessar a copa rumo à cozinha, ela escutou um som que se repetia a intervalos regulares. Tac, tac, tac... o som de uma colher sendo rapidamente agitada numa tigela. “Essa menina!”, exclamou ela. “Vejam como ela demora!” E, enquanto ela mesma terminava de preparar a mostarda, brindou Millie com uma longa arenga de reclamações por sua lentidão. Tinha preparado o presunto e os ovos, posto a mesa, feito tudo, enquanto Millie (que bela ajudante!) sequer tinha preparado a mostarda! E ela com um hóspede acabado de chegar!

Terminou de encher o pote de mostarda e, colocando-o com certa pomposidade numa bandeja de chá preta e dourada, levou-a para a sala.

Bateu à porta e entrou em seguida. Quando o fez, viu o visitante mover-se rapidamente, de modo que ela teve apenas o vislumbre de um objeto branco desaparecendo sob a mesa. Teve a impressão de que ele estava apanhando algo caído no chão. Ela largou o pote de mostarda sobre a mesa, e só então percebeu que o sobretudo e o chapéu do homem tinham sido tirados e estavam agora numa cadeira diante do fogo, enquanto

um par de botas encharcadas ameaçava de ferrugem a grade de metal. Ela se encaminhou resoluta para recolhê-los.

— Acho que vou ter que secar isto eu mesma — disse, numa voz que não admitia réplicas.

— Deixe isso aí — falou o visitante, numa voz abafada, e, voltando-se, a sra. Hall viu que ele tinha erguido a cabeça e a encarava. Por alguns momentos ela o contemplou de boca aberta, perplexa demais para poder dizer alguma coisa.

Ele segurava um lenço branco sobre a parte inferior do seu rosto, escondendo por completo a boca e o queixo, e era a isso que se devia o som abafado de sua voz. Mas não foi isso que provocou um sobressalto na sra. Hall, e sim o fato de que toda a testa do homem por cima dos óculos azuis estava coberta por ataduras brancas, e o mesmo ocorria com suas orelhas, sem deixar exposto um centímetro sequer do seu rosto, com exceção do nariz, que era cor-de-rosa e adunco. Um nariz tão brilhante, rosado e lustroso quanto ela notara

no momento em que ele entrou na estalagem. Ele vestia agora um casaco de veludo marrom-escuro, com uma gola alta, forrada de linho negro, levantada em torno do pescoço. O cabelo negro e espetado, escapando por entre as ataduras, projetava-se para fora em formas que pareciam caudas e chifres, dando àquela cabeça a mais curiosa das aparências. Aquela cabeça toda cercada de panos e bandagens era tão diferente do que a boa senhora tinha imaginado que ela permaneceu ali, imobilizada.

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