sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

LUZ

William Faulkner

Se houve amor alguma vez, homem ou mulher teria dito que Byron Bunch a esquecera. Ou ela (significando amor) dele, mais provavelmente - aquele homem pequeno que não verá os trinta de novo, que passou seis dias de cada semana, durante sete anos, na serraria, colocando pranchas nas máquinas. As tardes de sábado, ele também as passa ali, sozinho agora, com todos os outros operários na cidade em suas roupas e gravatas de domingo, naquele ócio terrível e sem propósito e impaciente de homens que trabalham.

Nessas tardes de sábado, ele carrega vagões de carga com as tábuas terminadas, já que não consegue operar a plaina sem ajuda, marcando o próprio tempo até o derradeiro segundo de um apito imaginário. Os outros operários, a própria cidade ou aquela parte dela que se lembra ou pensa nele acreditam que ele o faz pelas horas extras que recebe. Talvez seja essa a razão. O homem conhece tão pouco seu semelhante. Aos seus olhos, todo homem ou mulher age segundo o que acredita que o motivaria se fosse suficientemente louco para fazer o que aquele outro homem ou mulher está fazendo. Na verdade, existe apenas um homem na cidade que falaria com alguma segurança sobre Bunch, e com esse homem a cidade não tem conhecimento de que Bunch tenha qualquer comunicação, pois eles só se encontram e conversam à noite. O nome desse homem é Hightower. Vinte e cinco anos antes ele fora ministro de uma das principais igrejas, talvez a principal igreja. Somente esse homem sabe aonde Bunch vai todo sábado à noite quando o apito imaginário soa (ou quando o enorme relógio prateado de Bunch diz que ele soou). A sra. Beard, dona da pensão onde Bunch mora, sabe apenas que, pouco depois das seis horas de cada sábado, ele entra, toma banho e veste uma roupa não tão nova de sarja barata, come o seu jantar e sela a mula que guarda num estábulo atrás da casa, que ele próprio consertou e atelhou, e parte na mula. Ela não sabe aonde ele vai. Apenas o ministro Hightower sabe que Bunch cavalga cerca de cinqüenta quilômetros para o interior e passa o domingo regendo o coro numa igreja rural - um serviço que dura o dia inteiro. Depois, em algum momento por volta da meia-noite, ele sela novamente a mula e cavalga de volta a Jefferson num trote regular varando a noite. E na segunda-feira de manhã, macacão e camisa limpos, ele estará a postos na serraria quando o apito soar. A sra. Beard só sabe que do jantar de sábado ao café-da-manhã de segunda-feira de cada semana, seu quarto e o estábulo improvisado da mula estarão vagos. Hightower é o único que sabe aonde ele vai e o que faz por lá, porque duas ou três noites por semana Bunch o visita na casinha onde o ex-ministro mora sozinho, no que a cidade chama de sua desgraça - a casa sem pintura, pequena, escura, mal iluminada, cheirando a homem, homem velho. Aqui os dois sentam-se no estúdio do ministro, conversando serenos: o homem esguio, indescritível, absolutamente inconsciente de que é um mistério para seus colegas operários, e o proscrito cinqüentão que foi repudiado por sua igreja.

Então Byron apaixonou-se. Ele se apaixonou contrariando toda a tradição da educação austera e zelosa de sua terra, que exige a inviolabilidade física do objeto. Acontece numa tarde de sábado em que ele está sozinho na serraria. A cerca de três quilômetros dali, a casa continua ardendo, a fumaça amarela subindo ereta como um monumento no horizonte. Eles a avistaram antes do meio-dia, quando a fumaça começou a surgir acima das árvores, antes de o apito soprar e os outros partirem. "Acho que hoje Byron também vai sair", disseram. "Com um incêndio grátis para ver."

"É um grande incêndio", disse outro. "O que pode ser? Não me lembro de nada tão grande nessa direção para fazer toda essa fumaça afora aquela casa dos Burden."

"Talvez seja ela", disse outro. "Papai diz que se lembra de como cinqüenta anos atrás as pessoas diziam que ela devia ser queimada, e com um pouco de carne humana gorda para o fogo pegar bem."

"Talvez o seu pai tenha se esgueirado até lá e tocado fogo", disse um terceiro. Eles riram. Depois voltaram ao trabalho, esperando pelo apito e parando de vez em quando para olhar a fumaça. Algum tempo depois chegou um caminhão carregado de toras. Eles perguntaram ao motorista, que havia passado pela cidade.

"Burden", disse o motorista. "É esse o nome. Alguém lá na cidade disse que o xerife já foi para lá."

"Bom, acho que Watt Kennedy gosta de olhar um incêndio, mesmo tendo de levar o distintivo com ele", disse um.

"Do jeito que anda a praça", disse o motorista, "ele não terá muita dificuldade de encontrar por lá alguém que possa prender."

Soou o apito do meio-dia. Os outros partiram. Byron comeu seu almoço, o relógio prateado aberto do lado. Quando marcou uma hora, ele voltou ao trabalho. Estava sozinho no galpão de carregamento, fazendo as viagens regulares e intermináveis de sempre entre o galpão e o vagão, com um pedaço de saco de estopa dobrado em cima do ombro servindo de almofada e sustentando sobre a almofada pilhas de tábuas que ninguém diria que ele conseguiria erguer ou carregar, quando Lena Grove entrou pela porta às suas costas, o rosto já armado num sereno sorriso antecipatório, a boca já formando um nome. Ele a ouve, vira-se e vê o rosto dela murchar como a agitação agonizante de um seixo atirado numa nascente.

"Você não é ele", diz ela por trás do sorriso desfeito, com o espanto grave de uma criança.

"Não, dona", responde Byron. Ele pára, meio virado, com as tábuas equilibradas. "Acho que não sou. Quem é que eu não sou?"

"Lucas Burch. Disseram-me?"

"Lucas Burch?"

"Disseram-me que eu o encontraria aqui." Ela fala com uma espécie de suspeita serena, observando-o sem piscar, como que acreditando que ele estava tentando enganá-la. "Quando cheguei perto da cidade eles ficaram chamando-o de Bunch em vez de Burch. Mas achei que estavam falando errado. Ou que talvez eu tivesse escutado errado."

"É, dona", ele diz. "É assim mesmo: Bunch. Byron Bunch." Com as tábuas ainda equilibradas no ombro, ele olha para ela, para o corpo inchado, os quadris pesados, a poeira vermelha nos pesados sapatos de homem em seus pés.

"É a senhora Burch?"

Ela não responde de imediato. Fica ali, um pouco para dentro da porta, olhando bem para ele, mas sem alarme, com aquele olhar imperturbável, meio perplexo, meio desconfiado. Os olhos dela são perfeitamente azuis. Mas há neles a sombra da impressão de que ele está tentando enganá-la. "Disseram-me bem lá atrás na estrada que Lucas está trabalhando na serraria em Jefferson. Muitos disseram. Fui até Jefferson, e me disseram onde era a serraria; perguntei na cidade sobre Lucas Burch, e disseram: 'Talvez você queira dizer Bunch', então pensei que eles apenas tinham entendido errado o nome, e que isso não faria nenhuma diferença. Mesmo quando disseram que o homem a que se referiam não era moreno. Não vá me dizer que não conhece nenhum Lucas Burch por aqui."

Byron deposita a carga de tábuas numa pilha arrumada, no jeito para ser carregada de novo. "Não, dona. Não por aqui. Não tem nenhum Lucas Burch aqui. E eu conheço todo os caras que trabalham aqui. Vai ver ele trabalha em algum lugar na cidade. Ou em outra serraria."

"Tem outra serraria?"

"Não, dona. Tem algumas madeireiras, um monte, aliás."

Ela o observa. "Disseram lá na estrada que ele trabalha na serraria." "Não conheço ninguém aqui com esse nome", diz Byron. "Não me lembro de ninguém chamado Burch além de mim, e o meu nome é Bunch."

Ela continua a fitá-lo com aquela expressão não tão preocupada com o futuro mas desconfiada do presente. Respira. Não é um suspiro: ela apenas respira fundo, com calma. "Tudo bem." Ela dá meia-volta e olha ao redor, para as pranchas serradas, as tábuas empilhadas. "Acho que vou me sentar um pouco. Cansa muito andar por essas ruas da cidade até aqui. Parece que isso me cansou mais do que todo o caminho desde o Alabama." Ela caminha na direção de uma pilha baixa de tábuas.

"Espere", diz Byron. Ele quase salta na sua frente, puxando a almofada de saco do ombro. A mulher pára no ato de sentar, e Byron estende o saco sobre as tábuas. "Vai ficar mais confortável."

"Puxa, você é muito bondoso." Ela se acomoda.

"Acho que vai ficar um pouco mais confortável", diz Byron. Ele tira do bolso o relógio prateado e olha para ele; depois se acomoda também na outra ponta da pilha de madeira. "Acho que cinco minutos não vão atrapalhar."

"Cinco minutos de descanso?", ela pergunta.

"Cinco minutos a contar do momento em que você entrou. É como se eu já tivesse começado a descansar. Eu controlo meu próprio tempo nas tardes de sábado."

"E toda vez que pára um minuto você conta? Como eles vão saber que parou? Uns minutinhos não fariam nenhuma diferença, fariam?"

"Acho que não sou pago para ficar sentado. Quer dizer que você veio do Alabama?"

Ela lhe conta, então, sentada na almofada de saco de estopa, o corpo pesado, o rosto calmo e tranqüilo, e ele observando com a mesma calma; ela lhe conta mais do que percebe que está contando, como vem fazendo para os rostos estranhos com que cruzou durante quatro semanas que passaram com a lentidão imperturbável de uma mudança de estação. E Byron, por sua vez, monta o quadro de uma mulher jovem traída e abandonada e sem consciência de que foi abandonada, e cujo nome ainda não é Burch.

"Não, acho que não o conheço", diz ele por fim. "Não tem ninguém além de mim por aqui esta tarde, de qualquer modo. Os outros estão todos lá naquele incêndio, com toda a certeza." Ele aponta a coluna de fumaça amarela que se ergue no ar parado acima das árvores.

"Deu para ver da carroça antes de chegar na cidade", diz ela. "É um incêndio bem grande."

"É uma casa velha bem grande. Está lá faz muito tempo. Ninguém vive lá, só uma senhora, sozinha. Acho que alguns nesta cidade vão dizer que é um castigo para ela, mesmo agora. Ela é ianque. A família veio para cá na Reconstrução, para incitar os negros. Dois parentes dela foram mortos fazendo isso. Dizem que ela continua metida com pretos. Visita-os quando estão doentes, como se fossem brancos. Não tem cozinheira porque teria de ser uma negra. Dizem que ela acha que os crioulos são iguais aos brancos. É por isso que ninguém nunca vai lá. Só um."

Ela o está olhando, ouvindo. Agora ele não olha diretamente para ela, e sim meio de lado. "Ou talvez dois, pelo que ouvi. Tomara que eles tenham ido lá a tempo de ajudá-la a tirar os móveis. Talvez tenham ido."

"Quem?"

"Dois sujeitos chamados Joe que vivem por lá, de certa maneira. Joe Christmas e Joe Brown."

"Joe Christmas? Que nome engraçado."

"Ele é um sujeito engraçado." De novo ele olha meio de lado para o rosto atento da moça. "O parceiro dele é uma figura. Brown. Trabalhava aqui também. Mas eles largaram o emprego, os dois. Não vão fazer falta nenhuma, eu acho."

A mulher está sentada na almofada de estopa, interessada, tranqüila. Os dois poderiam estar ali sentados com roupa de domingo em cadeiras de ripas sobre o verde patinado da terra defronte a uma cabana rústica numa tarde de domingo. "O parceiro se chama Joe também?", ela pergunta.

"É, dona. Joe Brown. Mas acho que esse deve ser o nome verdadeiro. Porque quem pensa num sujeito chamado Joe Brown pensa num sujeito falastrão que está sempre rindo e falando alto. Por isso eu acho que é o nome verdadeiro, ainda que Joe Brown pareça meio apressado e fácil demais para um nome natural, de certa forma. Mas acho que é o dele mesmo. Porque se dependesse da sua boca, ele já seria o dono desta serraria. As pessoas parecem gostar dele, contudo. Ele e Christmas se dão bem, de qualquer modo."

Ela o está observando. O rosto ainda sereno, mas agora bem sério, os olhos muito graves e intensos. "O que eles fazem?"

"Nada que não devessem fazer, parece. Pelo menos ainda não foram apanhados. Brown trabalhou aqui por um tempo, o tempo que sobrava quando não estava rindo e zoando com as pessoas. Mas Christmas se aposentou. Eles vivem juntos lá adiante, em algum lugar perto daquela casa que está pegando fogo. Há uns boatos sobre o que fazem para viver. Mas isso não é da minha conta. E depois, a maior parte do que as pessoas dizem das outras não é verdade, para começo de conversa. E eu não sou melhor que ninguém."

Ela o observa. Nem sequer pisca. "E ele diz que se chama Brown."

Poderia ter sido uma pergunta, mas ela não espera a resposta. "Que tipo de histórias você ouviu sobre o que eles fazem?"

"Não gosto de prejudicar ninguém", diz Byron. "Acho que não devia ter falado tanto. O fato é que é só o sujeito parar de trabalhar para começar a se meter em encrencas."

"Que tipo de histórias?", pergunta a moça. Ela não se mexeu. Seu tom é calmo, mas Byron já está apaixonado, embora ainda não saiba. Ele não olha para ela; sente o olhar grave e intenso da mulher sobre seu rosto, sua boca.

"Uns dizem que eles estão vendendo uísque. Guardam escondido lá, onde aquela casa está pegando fogo. E tem uma história de Brown ter ficado bêbado num sábado à noite, na cidade, e quase ter contado alguma coisa que não devia sobre ele e Christmas em Memphis, uma noite, ou numa estrada escura perto de Memphis, e tinha uma pistola no meio. Talvez duas pistolas. Porque Christmas chegou rápido e fez Brown calar a boca e o levou embora. Alguma coisa que Christmas não queria que ninguém soubesse, de qualquer forma, e que até Brown teria o bom senso de não contar se não estivesse bêbado. Foi o que ouvi. Eu não estava lá." Quando ergue o rosto agora, percebe que olhou de novo para baixo antes mesmo de encontrar os olhos da moça. Ele parece ter já a antecipação de algo agora irrevocável, que não pode mais ser anulado, ele que acreditara que sozinho ali na serraria numa tarde de sábado estaria a salvo da possibilidade de magoar e ferir.

"Como ele é?", ela pergunta.

"Christmas? Ora?"

"Não Christmas."

"Ah. Brown. Pois. Alto, novo. Pele morena; as mulheres dizem que é bonito, um monte delas, ouvi dizer. Uma grande companhia para dar risada e ficar zoando com as pessoas. Mas eu?" Sua voz some. Ele não consegue olhar para ela, sentindo o olhar firme e sóbrio da moça em seu rosto.

"Joe Brown", ela diz. "Ele tem uma pequena cicatriz bem aqui, na boca?"


 

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