Um dia ideal para os peixes-banana e livros e cinema e gibis e nus e ataxia espinocerebelar e 𓋹
segunda-feira, 30 de abril de 2012
TRECHO drácula
Bram Stoker
O DIÁRIO DE JONATHAN HARKER
(Notas taquigráficas)
3 DE MAIO, BISTRITZ. Parti de Munique às 20h35 da noite, chegando a Viena na manhã seguinte. A chegada estava prevista para as 6h45 da manhã. O nosso trem, porém, se atrasara em uma hora. Pelo que pude apreciar ainda do trem, através do clarão de suas luzes, e de uma breve caminhada pelas ruas, Budapeste pareceu-me uma cidade realmente maravilhosa. Não obstante, limitei-me a uma rápida excursão em torno da estação ferro viária, pois, em virtude do atraso, devíamos partir o mais cedo possível. Tive então a impressão de que o Ocidente ficara para trás e que agora entrávamos no Oriente. A mais ocidental das portentosas pontes que cruzam o Danúbio, cujo leito aqui nos impressiona por sua amplitude e profundidade, põe-nos inopinadamente em contato com as tradições do mundo turco.
Deixamos Budapeste com a desejada pontualidade e, já ao anoitecer, atingimos Klausenburgo. Aqui fiz uma pausa e pernoitei no hotel Royale. À guisa de jantar ou, antes, de uma ceia, serviram-me um frango condimentado com uma espécie de pimenta vermelha, prato bastante saboroso, o qual, entretanto, me deixou com muita sede. (Lembrete: obter uma receita para Mina.) Indaguei do garçom e ele me disse que se tratava de paprika hendl, preciosidade da culinária nacional que poderia ser saboreada ao longo de toda a rota dos Cárpatos. Começava eu então a avaliar a verdadeira utilidade local dos arremedos de alemão que, às vezes, conseguia articular. E, efetivamente, não saberei jamais como teria prosseguido se não fosse capaz de apelar para semelhante ginástica linguística.
Dispondo de algum tempo livre durante minha per manência em Londres ali frequentei o Museu Britânico, consultando livros e mapas geográficos na biblioteca, a fim de recolher dados sobre a Transilvânia. Eu estava convencido de que um certo conhecimento prévio a respeito daquela região dificilmente deixaria de ser válido para estabelecer mais sólidas relações com um nobre do mesmo país. Verifiquei então que o distrito por ele citado se achava localizado no extremo oriental do território, precisamente na faixa limítrofe de três Estados: Transilvânia, Moldávia e Bukovina, no centro da cadeia dos Cárpatos, um dos mais selvagens e desconhecidos sítios da Europa. Em nenhuma das muitas obras e mapas consultados me foi possível estabelecer a exata localização do Castelo de Drácula, porquanto ainda não existem cartas geográficas da área em causa, comparáveis às que são editadas pelo nosso Serviço Geodésico oficial. Descobri, porém, que Bistritz, a vila postal indicada pelo Conde Drácula, corresponde a uma localidade razoavelmente bem conhecida. Incluirei aqui algumas de minhas anotações, pois as mesmas servirão para ativar minha memória quando relatar esta viagem ao voltar para junto de Mina.
A população da Transilvânia é formada por quatro distintas nacionalidades: os saxões no sul e, de mistura com eles, os valáquios, descendentes dos dacos; no oeste, os magiares; e, finalmente, nos setores norte e leste, os szekes. Meu destino leva-me à região habitada por estes últimos, os quais se dizem descendentes de Átila e dos hunos. Tais pretensões devem ser legítimas, pois quando os magiares conquistaram o país, ainda em pleno século onze, ali encontraram os hunos já fixados. Já li alhures a afirmação de que todas as superstições existentes neste mundo se originam da ferradura dos carpatianos, como se para lá convergissem todos os vórtices das mais férteis imaginações. Mas se assim o é, de fato, minha permanência em tal ambiente se tornará sumamente interessante. (Lembrete: preciso interrogar o Conde no tocante à vera cidade desses fatos.)
Embora o meu leito fosse bastante confortável, não consegui dormir tranquilamente, pois meu sono foi perturbado pelos sonhos mais bizarros. Havia sob a minha janela um cão que uivou a noite inteira, o que provavelmente também contribuiu para a minha insônia, ou talvez a paprika a tivesse provocado, já que durante a noite fui obrigado a esvaziar todo o conteúdo do meu jarro de água potável, sem contudo saciar a minha sede. Já ao amanhecer, mal eu havia adormecido, fui despertado por sucessivas batidas a minha porta, o que me faz crer que finalmente estivesse dormindo a sono solto. No desjejum tornaram a servir-me uma farta porção de paprika, acompanhada de uma espécie de sopa de farinha de milho a que denominam de mamaliga e berinjela recheada de carne, delicioso prato conhecido como impletata. (Lembrete: obter também esta receita.) Mal pude saborear tal refeição. É que o trem deveria partir antes das oito da manhã. Este propósito, entretanto, não foi além da intenção, pois, a despeito de minha correria para chegar à estação às sete e trinta, fiquei imobilizado em minha poltrona por mais de uma hora diante da plataforma de embarque até soar o sinal de partida. Parece-me aqui que quanto mais avançamos para leste mais aumenta a impon tualidade dos comboios ferroviários. Nesta progressão, o que dizer desta pontualidade na China?
Durante o dia inteiro parecíamos rolar através de um país emoldurado das mais fartas e variadas belezas. Por vezes deparávamos com pequenas vilas ou castelos engastados nos cumes de elevações alcantiladas, como os costumamos ver nas litogravuras de missais antigos. Logo adiante, marginávamos rios e torrentes cujas extensas margens, recobertas de volumosas pedras e calhaus desnudos, pareciam estar sujeitas a violentas e periódicas inundações. Somente uma massa d'água realmente portentosa e dotada de uma tremenda força de devastação é capaz de tamanha erosão em tão amplas faixas ribeirinhas. Em cada uma das estações do nosso trajeto notamos a presença de grupos de pessoas, às vezes mesmo pequenas multidões, todos ostentando trajes dos mais variados tipos e aspectos. Alguns deles assemelhavam-se particularmente aos campesinos de nosso país ou mesmo àqueles que encontrei em minhas andanças através da França e da Alemanha, vestindo jaquetas curtas em conjunto com calças de confecção caseira, complementadas por um chapéu redondo. E ainda outros que se destacavam por seu vivo pitoresco. As mulheres em geral eram graciosas, exceto quando observadas de perto. Suas cinturas eram pesadas e muito volumosas. Todas elas portavam blusas com mangas longas e brancas dos mais variados tipos. A maioria usava cintos largos, dos quais pendiam profusas tiras leves e quase flutuantes, semelhantes a uma vestimenta de ballet, sob as quais, obviamente, havia uma anágua. As figuras étnicas mais estranhas eram representadas pelos eslovacos, que formavam um aglomerado de aspecto muito mais bárbaro que os demais, com seus enormes chapéus de vaqueiro, amplas calças de lona de um branco cru, camisas de linho branco, cingidas por enormes e pesados cinturões de couro, medindo aproximadamente trinta centímetros de largura e fartamente guarnecidos de cravos de bronze. Calçavam altas botas em cujos canos inseriam as extremidades das pernas de suas calças. Suas cabeleiras eram longas e negras, e seus bigodes também negros eram de tamanho e espessura dos mais avantajados. Quanto ao aspecto eram realmente pitorescos, mas aparentemente nada afáveis. Vistos sobre um palco, seriam imediatamente identificados no papel de um bando de antigos salteadores orientais. No entanto, conforme a seguir vim a saber, trata-se de gente de hábitos acentuadamente pacatos e talvez carente de uma mais natural autoafirmação.
Já o crepúsculo descambava para a noite fechada quando alcançamos Bistritz, que antes de tudo é um sítio antigo dos mais interessantes. Localizando-se praticamente na fronteira - posto que o Passo Borgo conduz diretamente a Bukovina - sua existência pregressa foi das mais atribuladas e, evidentemente, guarda até hoje claros vestígios deste seu passado. Há cinquenta anos, foi assolada por uma sucessão de grandes incêndios, os quais em cinco diferentes oportunidades lhe causaram uma tremenda devastação. Ainda no limiar do século dezessete, Bistritz foi submetida a um assédio que teve a duração de três semanas. Teve então treze mil baixas, sendo a maior parte dessas perdas de guerra causada por doenças e pela fome.
domingo, 29 de abril de 2012
The Perverted Dream
Michael Henry
With what arrogance, what audacity, does Michael Cimino continue to work, not so much against the times, as against the social current. At the hour when the guilty consciences of “bleeding heart” intellectuals was sprawled across movie screens, The Deer Hunter gave America several reasons to exorcise the nightmare of Vietnam, and to rediscover a faith in itself. Now, when they are clearing their consciences by embracing Reaganite certainty, here comes Heaven’s Gate, clashing with it head-on, forcing them to face a truth that has been systematically suppressed for a century. If Cimino must be reprimanded, as an idiotic press believes he should, one certainly could not accuse him of opportunism…
Yesterday, he was the first to dare keep enough of a distance from the tragedy of the war so as to offer us a spiritual odyssey which both transcended and sublimated that tragedy at the same time. He was also the first to ignore the political and ideological elements of the conflict, so as to better espouse his chosen point-of-view, that of small-town America. The war? His “blue-collars” would never dream of contesting it; it was perceived in terms of individual survival, like a rite of passage, an initiative step into the larger history of the community and, beyond it, of the entire nation. Today, by examining the sources of America violence, he is tackling a carefully concealed heritage. Far from dressing an open wound, he is reopening a forgotten one, laying bare a trauma even deeper than that of the Indian genocide: the “original fratricide”, the massacre of the poor by the rich.
This time, political power is directly accused: the stock-growers claim they have the support of Congress and the President; the stars-and-stripes, brandished by the blue-coats, ultimately arrives to cover-up the crimes of the aggressors, and thwart the immigrants’ victory over the land… “It's gettin' dangerous to be poor in this country,” sighs Jeff Bridges. To which Kris Kristofferson replies: “It always was!” One could articulate it better only by saying that the pioneers perverted their dream through the very means by which they obtained it. It’s as if America could only build itself and prosper at the expense of the very ideals on which it was founded. How does one become American? To this question, which obsesses him, Cimino responds: sometimes in disregard of rights, sometimes in disregard of morality. Is it necessary to add that he places himself, as in The Deer Hunter, on the side of the lifeblood of the masses, on the side of the humiliated and the wronged, the voiceless and those forgotten by history?
The individual experience, as we now know, only interests this filmmaker as far as it emerges from a national scale. The Deer Hunter put the ethical nature of its hero, Michael Vronsky, to the test. Attached to his “tribe”, but yearning for the solitude of nature, he is an individualist cultivating his separateness, but also a natural leader who galvanizes his companions, struggling to contain the violence dwelling within them, up to the point of renouncing the thrilling emotions of hunting; this “control freak” embodied the opposite representations of America. Like Howard Roark in The Fountainhead, King Vidor’s masterpiece which Cimino has long planned to remake, he preserves his integrity at the price of a permanent asceticism.
Conversely, as victims of their own ambivalence, stuck between two antagonistic worlds, the characters in Heaven’s Gate have no grasp on the ensuing events. Failing to control their destiny, they are overwhelmed by their own insurmountable contradictions: Nate, the illiterate mercenary, betrays his community by carrying out the Association’s dirty work; Averill, the son of a powerful family, betrays his class by siding with the poor. This commitment, which neither of the two can maintain to the very end, doesn’t come without contempt. Both contempt for themselves and contempt for their allies. They both come to the point where they take up arms against those they serve: after Ella’s rape, Nate shoots one of Canton’s lieutenants, while Averill welcomes a delegation of “collaborators” with the blows of a whip. The poet Irvine, the weakest of the three, doesn’t even have the courage of deserting his side: the powerless and tragic witness to the abuses of his class, he seems to extend a looking-glass to Averill, who in his turn, like mimicry, will ultimately attempt to forget these events with alcohol and reclusiveness. Arriving far too late, their respective awakenings-of-conscience will not change the course of events: Nate will be murdered by his employers, Averill deposed by the local government, and Irvine will be delivered from his torment in the course of bloodshed, of which he was nothing more than the spectator.
For the essentially physical communion offered by masculine camaraderie, The Deer Hunter substitutes, little-by-little, a spiritual communion with the values of a small society which still remains close to its ethnic origins. Michael, in particular, confronts one after the other, the ambiguous savagery of war and the primordial forces of nature, discovering at the end of his quest a painful regeneration. The acknowledgement of evil marks the loss of innocence, but as with the thwarted dreams of a wasted life, it was a lesson that needed learning, a heritage that had to be recognized. Beyond the sorrow, the mourning community imperceptibly rediscovers its deep roots. There is no irony in the “God Bless America” which the survivors sing – it is but an act of faith in the tangible reality which unites them. In Heaven’s Gate, that life-force retreats prematurely, unavoidably, starting at the end of the prologue. Hardly had the graduation celebration reached its peak that the fervor begins to wane. “Let our friendship be forever,” sings a chorus of Harvard’s golden youth, but already blows have been exchanged, bursts of violence which anticipate the frenzy of the confrontations to come. And above all, an unexpected, deeply-moving change of framing occurs, isolating Irvine, the jester, the soothsayer, who shouts, while laughing and crying: “It’s all over!” Long before Averill, who will need twenty more years to understand what his friends perceives at that moment, he senses that never more will his generation participate in such a journey, have such unity in the same calling – “the education of a nation.”
Their paths will diverge: some, like Averill, will carry out the migration of their contingency from the East towards the West, without finding the Promised Land there; others, precisely Irvine, will flee towards Paris, towards Europe, creating a New World which is nothing more than a caricature of the Old. From that point on, the future will only be built on lies and denials. “It’s all over!” prophesizes Irvine, and at that point, the story is immediately placed in the context of lost time and romantic disillusionment. The drifting of souls, the loss of vigor, the degradation of values, this is the register which Cimino adopts. In this romantic lament, friendship itself – and we know how precious this filmmaker holds it – will remain unformulated or inexpressible. Averill and Irvine will meet again, but on opposing sides. Nate and Averill will not be able to love each other, except through the women who they fight over: nothing more than a potential friendship which can only express itself when one party is unaware (“You’ve got style, Jim!” Nate tells Averill when he is black-out drunk) or gone (Averill gazes lengthily at Nate’s remains). Undoubtedly, the sheriff will outlive his companions, but only as a phantom, a living corpse, a wreck of a man abandoned, by the end of the century, to the posh shores of Newport. Still capable of remembering, perhaps, but not of testifying for the “great cause” which he believed he could serve in the West.
In The Deer Hunter, the view of the world expanded itself at each turn of the story, until it embraced, like a Pantheist Assumption, the harmony of the universe, such as it is revealed in Michael’s eyes when he gazes at the immaculate glaciers of the mountain. In Heaven’s Gate, to the contrary, John Hurt’s cry marks a clean break from the dynamic enthusiasm which the film’s overture promised. The Prairie dreamed of by Averill is already irreparably sullied. In three vignettes which are much like engravings, we are presented with the victims of Myth, the outcasts from Heaven: the black silhouettes of the destitute cling to the roof of a supply train, Hungarian immigrants wading through the mud, the blood and viscera of a Soutine painting, a convoy of the hungry-and-downtrodden escaping from the ghettos of Central Europe, and who look like an offense against the radiant beauty of nature… As a measure of the extent to which they shatter the illusion and waste their energy, the landscapes of the film never cease to shrink, as if the world itself was collapsing, until it’s ultimately reduced to the dimensions of a yacht-cabin, Averill’s final cell.
It is true that among these landscapes everything moves with a rigorous choreography. The motif of the circle commands the mise-en-scène of groups. The privileged figure of ritual, it appears in each episode of the film: at Harvard, where The Blue Danube carries three circles of dancer waltzing in opposite directions (each circle itself animated by the whirl of each couple) before two new circles, both exclusively masculine, form around the May Tree and its trophies; – at Sweetwater, where the motif reappears during the rare moments of euphoria: the mad ride on the Ella’s buggy, the cockfight in a smoke-filled backroom, the roller-skate dance in “Heaven’s Gate”; – during the final battle, lastly, which finds the killers encircled by wagons of immigrants, who are in their turn encircled by the Calvary… The complementary figure of the circle which closes off its movement, the arc of the circle is associated with immobility: it dominates arrangements of groups which are frozen in wait: parishioners posing for a photo, mercenaries waiting in ambush around Nate’s home, villagers holding a meeting to organize the resistance…
Many have noted – starting with Cimino – the references to paintings which appears throughout the composition and lighting of shots. But have they also emphasized the masterful novelistic structure, already visible in The Deer Hunter? Despite the vicissitudes of montage, this talent emerges at each and every turn of a narrative whose visual elements never ceases its escalating search for new metaphors. Between the dominant caste and the immigrant subordinates, a network is established, one of connections, antitheses, of internal rhythms, each more clever than the last: the parade at Cambridge is answered by the cortege of the destitute through the desert; the sumptuous order of the waltz by the joyous indiscipline of the violinist and the skaters; the choral singing of students, the Slav and Yiddish chants carried by the wind to the opposing camp; the conference of stock-growers in a plush club, the gathering of a people’s war tribunal; the faces of young girls in flowers illuminated by candles, those of Ella and prostitutes lit by the gas lamps of the brothel; the role-call of members of the Association which is composed only of very Anglo-Saxon names, the reading of the “death list” containing the family names of “foreigners” originating from all the countries in Europe… “To have and have not?” Two Americas, each as different as shadow and light, who in their fratricidal ballet, never cease from meeting and tearing each other apart. At heaven’s gate, nothing remains but the broken pieces of a shattered dream.
Positif nº 246, setembro 1981
sábado, 28 de abril de 2012
sexta-feira, 27 de abril de 2012
TRECHO Meu Último Suspiro
Luis Buñuel
Detesto a proliferação de informação. A leitura de um jornal é a coisa mais angustiante do mundo. Se fosse ditador, limitaria a imprensa a um único diário e a uma única revista, ambos estritamente censurados. Tal censura só se aplicaria à informação, a opinião permaneceria livre.
Detesto o pedantismo e o jargão. Aconteceu-me de rir até às lágrimas ao ler alguns artigos de Cahiers du Cinéma. Na Cidade do México, designado presidente honorário do Centro de Capacitación Cinematográfica, alta escola de cinema, um dia sou convidado para conhecer as instalações. Apresentam-me a quatro ou cinco professores. Entre estes, um rapaz corretamente vestido e ruborizando de timidez. Pergunto-lhe o que ensina. Ele me responde: "Semiologia da imagem clônica". Poderia matá-lo.
Tenho horror à multidão. Chamo de multidão toda reunião de mais de seis pessoas.
Gosto da pontualidade. A bem da verdade isso é até uma mania. Não me lembro de ter chegado atrasado uma única vez em minha vida. Se estou adiantado, ando de um lado para o outro em frente à porta em que devo bater, esperando que chegue o momento exato.
Gosto muito das manias. Cultivo algumas, às quais me refiro aqui e ali. As manias podem ajudar a viver. Deploro os homens que não as têm.
Gosto da solidão, contanto que um amigo venha ver-me de quando em quando.
Não gosto dos donos da verdade, quaisquer que sejam eles. Assustam-me e me entediam. Sou antifanático (fanaticamente).
Gosto da regularidade e dos lugares que conheço.
TRECHO ruído branco
Don DeLillo
— Como está indo seu seminário sobre desastres de carros?
— Já examinamos centenas de colisões. Carros com carros. Carros com caminhões. Caminhões com ônibus. Motos com carros. Carros com helicópteros. Caminhões com caminhões. Meus alunos acham que esses filmes são proféticos. Que ilustram a tendência suicida da tecnologia. O impulso de suicidar-se, a sede incontrolável de suicídio.
— O que você diz a eles?
— De modo geral, são filmes classe B, feitos para a televisão, para passar em autocines do interior. Digo aos meus alunos que não devem procurar o apocalipse nesses filmes. Vejo esses desastres como parte de uma velha tradição de otimismo norte-americano. São eventos positivos, afirmativos. Cada desastre tenta ser melhor que o anterior. Há um aperfeiçoamento constante de instrumentos e perícia, desafios enfrentados. O diretor diz: “Quero uma jamanta virando duas cambalhotas e produzindo uma bola de fogo alaranjada com diâmetro de doze metros que dê para iluminar a cena”. Digo aos meus alunos que, se eles querem pensar em termos de tecnologia, têm que levar isso em conta, esta tendência a realizar atos grandiosos, a correr atrás de um sonho.
— Um sonho? E como seus alunos reagem?
— Igualzinho a você. “Um sonho?” Tanto sangue, vidro quebrado, borracha cantando? Tanto desperdício, tantos indícios de uma civilização em decadência?
— E aí?
— Aí eu lhes digo que o que eles estão vendo não é a decadência, e sim inocência. O filme deixa de lado a complexidade das paixões humanas para nos mostrar uma coisa fundamental, cheia de fogo, barulho e ímpeto. É uma realização conservadora de desejos, uma ânsia de ingenuidade. Queremos voltar à pureza. Queremos andar pra trás na trajetória da experiência da sofisticação e das responsabilidades que ela implica. Meus alunos dizem: “Veja quantos corpos esmagados, membros amputados. Que raio de inocência é essa?”
— E você responde o quê?
— Que não consigo encarar um desastre de carros num filme como um ato violento. É uma comemoração. Uma reafirmação de valores e crenças tradicionais. Eu associo esses desastres a feriados nacionais, como o Dia de Ação de Graças e o Dia da Independência. Nós não choramos os mortos nem celebramos milagres. Vivemos numa era de otimismo profano, de autocelebração. Vamos melhorar, prosperar, nos aperfeiçoar. Veja qualquer cena de desastre de carro de filme americano. É um momento de alegria, como uma cena de equilibrismo, de corda bamba. As pessoas que criam esses desastres conseguem captar uma serenidade, um prazer ingênuo do qual os acidentes de carro dos filmes estrangeiros não chegam nem perto.
— O negócio é enxergar além da violência.
— Justamente. Enxergar além da violência, Jack. E ver esse espírito maravilhoso de inocência e ludismo.
quinta-feira, 26 de abril de 2012
TRECHO O homem à descoberta de sua alma
Carl Jung
Seria lastimável considerar como ilusório esse sistema imenso de experiências da psique inconsciente. O nosso corpo visível e tangível é também um sistema de experiências inteiramente comparável, que encerra ainda os traços dos desenvolvimentos das primeiras idades e forma, incontestavelmente, um conjunto sujeito a um fim: a vida, que, de outro modo, seria impossível.
A ninguém ocorreria negar o grande valor da anatomia comparada ou da fisiologia. O estudo do inconsciente coletivo e a sua utilização como fonte de conhecimento não pode ser visto como ilusão. Sob um ponto de vista superficial, a alma parece-nos ser essencialmente o reflexo de processos exteriores, que dela seriam não somente as causas ocasionais, como sua origem primária. Do mesmo modo, o inconsciente, de início, não parece explicável senão do exterior, a partir do consciente. Sabemos que Freud, na sua psicologia, fez essa tentativa. Mas ela só poderia ter triunfado se o inconsciente fosse, de fato, um produto da existência individual e do consciente. Todavia, o inconsciente preexiste sempre, sendo a disposição funcional herdada de idade em idade. A consciência é um rebento tardio da alma inconsciente… A velha psicologia, presciente do inestimável tesouro de experiências obscuras ocultas sob o limiar da consciência individual e efêmera, não considerou a alma do indivíduo senão na dependência de um sistema cósmico espiritual. Para ela, não era apenas uma hipótese, mas uma evidência manifesta que esse sistema representava uma entidade dotada de vontade e de consciência, até mesmo um ser, um ser a que chamou Deus e que se tornou a quintessência de toda a realidade. Deus era o ser mais real, a prima causa, graças à qual somente a alma podia ser explicada. Essa hipótese tem a sua razão de ser psicológica: qualificar de divino, em relação ao homem, um ser imortal, dotado de uma experiência eterna, não é totalmente injustificado. Assim se esboça a problemática de uma psicologia fundada não sobre a ordem física, como princípio explicativo, mas sobre um sistema espiritual, cujo primus movens não é nem ma matéria e as suas qualidades, nem um estado energético, mas Deus…
…O estudo desse dilema e o desejo de o resolver conduziram-me à seguinte conclusão: o conflito entre a natureza e o espírito nada mais é do que a tradução da essência paradoxal da alma, a qual possui um aspecto físico e um aspecto espiritual que não parecem contradizer-se porque, em última análise, não lhe apreendemos a essência. Sempre que o entendimento humano quer apreender qualquer coisa que no fim das contas não compreende e não pode compreender, para captar alguns aspectos, submete-a a uma contradição e cinde-a em suas aparências opostas.
O conflito entre o aspecto físico e o aspecto espiritual apenas prova que o psíquico é, na essência, qualquer coisa de inapreensível, e essa é a única experiência imediata. Tudo aquilo de faço experiência é psíquico, até a dor física, de que apenas experimento o reflexo psíquico. Todas as percepções dos meus sentidos, que me impõem um mundo de objetos espaciais e impenetráveis, são imagens psíquicas que representam a minha única experiência imediata, sendo essas imagens os únicos dados imediatos da minha consciência. A minha psique transforma e falsifica a realidade em proporções tais que é preciso recorrer a expedientes para verificar o que as coisas são fora de mim… Achamo-nos de tal modo envolvidos nas nossas imagens psíquicas que não podemos penetrar a natureza das coisas exteriores. Tudo aquilo de que adquirimos conhecimento é feito de materiais psíquicos. A psique é a entidade real no supremo grau…
Hunter S. Thompson por Jim Mahfood
Medo e Delírio em Las Vegas é exatamente isto e mais alguma coisa: um delírio, uma prosa maravilhosa, um livro único e cheio de personalidade. Está na minha lista de leitura obrigatória, assim como todos os outros livros do Sr. Thompson.
quarta-feira, 25 de abril de 2012
TRECHOS ardil 22
Joseph Heller
"Os homens enlouqueciam e eram recompensados com medalhas. No mundo inteiro, jovens estavam sacrificando suas vidas pelo seu país, como lhes disseram. E ninguém parecia se importar com isso, muito menos os jovens que estavam arriscando suas jovens vidas. Não havia qualquer fim à vista."
"Yossarian explicara a Clevinger, com um sorriso paciente, que, desde que se podia lembrar, havia alguém conspirando para matá-lo. Havia pessoas que gostavam dele e pessoas que não gostavam, odiavam-no e estavam a fim de liquidá-lo. Odiavam-no porque ele era assírio. Mas não poderiam lhe fazer mal algum, dissera Yossarian a Clevinger, porque ele tinha a mente sã num corpo são e era tão forte quanto um touro. Não podiam lhe fazer mal porque ele era Tarzan, Mandrake, Flash Gordon. Era Bill Shakespeare. Era Caim, Ulisses, o Holandês Voador. Era Lot em Sodoma, Deirdre das Dores. um rouxinol a cantar nas árvores. Era o milagroso ingrediente Z-247. Era...
-Doido! - interrompera-o Clevinger, com voz estridente. - É isso o que você é! Doido!"
"Só havia um ardil, e este era o Ardil-22, que dizia que a preocupação com a própria segurança, em face de perigos reais e imediatos, era o processo de uma mente racional. Orr estava doido e podia ter baixa. Tudo o que ele tinha a fazer era pedir. Mas, assim que pedisse, não mais estaria doido e teria que voar em novas missões. Orr seria doido se voasse em novas missões e são se não o fizesse. Mas se estivesse são, teria que voar novamente em missões de combate. Se voasse, então estaria doido e não teria que fazê-lo. Mas se ele não quisesse fazê-lo, então estaria são e teria que fazê-lo. Yossarian ficou profundamente impressionado com a absoluta simplicidade dessa cláusula do Ardil-22 e deixou escapar um assovio de admiração."
"A criada de calcinha cor de limão era uma mulher jovial, gorda e complacente, de 30 e poucos anos, de coxas fofas e roliças, por baixo da calcinha cor de limão, que ela estava sempre abaixando para qualquer homem que a desejasse. Ela possuía um rosto largo e ingênuo e era mais visrtuosa de todas as mulheres: deitava com todo mundo, independente de raça, credo, cor ou nacionalidade, entregando-se socialmente como um ato de hospitalidade (...) Yossarian estava apaixonado pela criada de calcinha cor de limão, pois ela parecia ser a única mulher que restava com a qual ele podia fazer amor sem se apaixonar."
"-A América perderá a guerra - disse ele - E a Itália a vencerá.
-A América é a nação mais forte e mais próspera da Terra - declarou-lhe Nately, com fervor patriótico e toda dignidade. - E o soldado americano não é inferior a nenhum outro.
-É por isso mesmo - concordou o velho, com um sorriso zombeteiro. - A Itália, por outro lado, é a menos próspera de todas as nações da Terra. E é exatamente por isso que meu país está se saindo tão bem nesta guerra, enquanto o seu está indo tão mal.
Nately soltou uma gargalhada de surpresa, depois corou, assumindo uma expressão escusatória por sua indelicadeza.
Lamento ter rido - disse ele, sinceramente, continuando em seguida num tom respeitoso e condescendente: - Mas a Itália foi ocupada pelos alemães e agora está sendo ocupada por nós. Acha mesmo que isso é estar se saindo bem?
-Mas claro que é! Os alemães estão sendo expulsos da Itália e nós continuamos aqui. Dentro de alguns anos vocês irão embora também e nós continuaremos aqui. A Itália é realmente um país muito pobre e muito fraco e é justamente isso o que nos torna tão fortes. Os soldados italianos já não estão mais morrendo. Mas os soldados americanos e alemães continuam a morrer."
"Sentiu o corpo inteiro se arrepiar ao compreender o pavoroso segredo que Snowden acabara de espalhar pelo chão do avião. Era fácil ler a mensagem que estava ecsrita nas entranhas dele. O homem era apenas matéria. Esse era o segredo de Snowden. Joguem-no por uma janela e ele cairá. Se lhe atearem fogo, ele queimará. Se o enterrarem, ele apodrecerá, como qualquer outra espécie de lixo. Só o tempo da plenitude importava. Aquele era o segredo de Snowden."