quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

REINO DO MEDO

Segredos abomináveis de um filho desventurado nos dias finais do século americano

Hunter S. Thompson

gonzo1

Um trecho:

Parte I
Quando a coisa fica bizarra, o bizarro vira profissional

Não existem piadas. A verdade é a piada mais engraçada de todas.
Muhammad Ali

A CAIXA DE CORREIO: LOUISVILLE, VERÃO DE 1946
Meus pais eram pessoas de bem e fui criado, como meus amigos, para acreditar que a Polícia era nossa amiga e protetora - o Distintivo era símbolo de uma autoridade extremamente elevada, talvez a mais elevada de todas. Ninguém jamais perguntava por quê. Era uma dessas perguntas impróprias que é preferível deixar quietas. Se você precisava perguntar isso, com certeza era Culpado como o diabo por algo e provavelmente devia estar atrás das grades havia muito tempo. Ninguém ganhava com isso.
Meu primeiro confronto com o FBI ocorreu quando eu tinha nove anos. Dois Agentes carrancudos vieram à nossa casa e aterrorizaram meus pais dizendo que eu era o "principal suspeito" de ter derrubado uma Caixa Postal Federal na frente de um ônibus que vinha em alta velocidade. Era um Crime Federal, disseram, e implicava uma sentença de cinco anos de prisão.
"Ah, não!", chorou minha mãe. "Na prisão, não! Isso é loucura! Ele é só uma criança. Como poderia saber?"
"O aviso está impresso claramente sobre a caixa de correio", disse o agente de terno cinza. "Ele já tem idade para ler."
"Não necessariamente", meu pai retrucou com rispidez. "Como sabe que ele não é cego ou debilóide?"
"Você é debilóide, filho?", o agente perguntou para mim. "Você é cego? Você só estava fingindo ler aquele jornal quando entramos?" Ele apontou para o Louisville Courier-Journal sobre o sofá.
"Era só a seção de esportes", falei. "Não consigo ler as outras coisas."
"Viu?", disse meu pai. "Eu falei que ele era debilóide."
"A ignorância da lei não é desculpa", respondeu o agente de terno marrom. "Interferir no Correio dos Estados Unidos é um crime federal punível pela lei federal. Aquela caixa de correio ficou bastante danificada."
As caixas de correio daquela época eram imensas. Eram cofres verdes pesados que se erguiam como marcos miliários nas esquinas dos itinerários dos ônibus da vizinhança e que raramente eram deslocadas, para não dizer nunca. Eu mal tinha altura para alcançar a abertura para o depósito de correspondência, muito menos tinha tamanho para derrubar a desgraçada na frente de um ônibus. Era claramente impossível que eu tivesse cometido aquele crime sem ajuda, e era isto que eles queriam: nomes e endereços, seguidos de uma confissão completa. Eles disseram que já sabiam que eu era culpado, porque outros criminosos tinham me dedurado. Meus pais baixaram a cabeça e vi minha mãe chorar.
Eu tinha feito aquilo, claro, e com muita ajuda. Foi cuidadosamente tramado e planejado, uma emboscada premeditada que preparamos e executamos com a diabólica habilidade de que são capazes as crianças inteligentes de nove anos com tempo de sobra à disposição e uma ânsia vingativa contra um motorista de ônibus idiota e grosso que se divertia fechando a porta e indo embora bem quando corríamos morro acima implorando-lhe que nos deixasse subir... Ele era novo no emprego, talvez um substituto com problemas mentais ocupando temporariamente o lugar do motorista oficial, que era amistoso, gentil e sempre estava disposto a aguardar alguns segundos pelas crianças que corriam atrasadas para o colégio. Toda a garotada do bairro concordava que o porco do novo motorista era um sádico que merecia ser punido, e os mais aptos a fazê-lo eram os Hawks A. C. Víamos mais como dever do que travessura. Era um Insulto insolente à honra de todo o bairro.
Íamos precisar de cordas, roldanas e certamente de uma ausência total de testemunhas para executar bem o serviço. Tínhamos que inclinar o monstro de aço a ponto de ele ficar perfeitamente equilibrado para cair de imediato, bem na hora em que o imbecil invadisse o ponto de ônibus com a velocidade arrogante de sempre. Tudo que mantinha a caixa mais ou menos em pé eram minhas mãos segurando um longo cordão "invisível" que tínhamos esticado cuidadosamente a partir da esquina, atravessando cerca de quinze metros de grama até a posição em que ficamos agachados, fora da vista, em meio a uns arbustos.
A engenhoca funcionou com perfeição. O desgraçado chegou bem no horário e veio rápido demais para frear quando viu aquela coisa caindo na frente dele... A colisão provocou um barulho horrível, como uma bomba sendo detonada ou um trem de carga explodindo na Alemanha. Pelo menos é assim que me lembro. Era o pior barulho que eu já tinha ouvido. As pessoas saíram correndo e gritando de suas casas como galinhas espavoridas de medo. Ficaram berrando umas com as outras enquanto o motorista saía trôpego do ônibus e desabava com tudo na grama... O ônibus não trazia nenhum passageiro, como era costume no final da linha. O homem não se feriu, mas espumou de raiva quando nos viu fugindo pela colina até uma ruela próxima. Entendeu num piscar de olhos quem tinha sido responsável por aquilo, assim como a maioria de nossos vizinhos.
"Por que negar, Hunter?", disse um dos agentes do FBI. "Sabemos exatamente o que aconteceu sábado naquela esquina. Seus amiguinhos já confessaram, filho. Eles delataram você. Sabemos que foi você, portanto não minta para nós agora, ou piorará as coisas para o seu lado. Um bom garoto como você não merece ir para o presídio federal." Ele sorriu de novo e piscou para o meu pai, que reagiu rosnando: "Diga a verdade, droga! Não minta para esses homens. Eles têm testemunhas!". Os agentes do FBI entreolharam-se com seriedade, trocaram um aceno de cabeça e fizeram menção de me prender.
Foi um momento mágico da minha vida, um momento marcante para mim ou para qualquer menino de nove anos que estivesse crescendo nos anos 1940, depois da Segunda Guerra Mundial - e lembro claramente de ter pensado: Bem, então é isso. Esses são os G-Men...
CRAU! Foi como o clarão de um relâmpago próximo que ilumina o céu por três ou quatro aterrorizantes décimos de segundo antes de você escutar o trovão - uma questão de zeptossegundos em tempo real -, mas se você é um menino de nove anos prestes a ser recolhido e atirado numa prisão federal por dois (2) agentes adultos do FBI, uns poucos e silenciosos zeptossegundos podem parecer todo o resto de sua vida... Foi essa a minha impressão naquele dia e, fazendo um amargo retrospecto, eu estava certo. Eles tinham me pegado com a boca na botija. Eu era Culpado. Por que negar? Era confessar Agora e submeter-me à misericórdia deles ou...
Ou o quê? E se eu não confessasse? Essa era a questão. E eu era um menino curioso, portanto decidi, naquela situação, jogar os dados e fazer a eles uma pergunta.
"Quem?", perguntei. "Que testemunha?"
Não era nada de mais para perguntar naquelas circunstâncias - e eu realmente queria saber exatamente qual dos meus melhores amigos e irmãos de sangue do temido Hawks A. C. tinha cedido sob pressão e me denunciado a esses mal-encarados, a esses brutamontes pomposos e lambe-botas com seus distintivos de plástico guardados na carteira, que alegavam trabalhar para J. Edgar Hoover e ter o Direito, e até mesmo o dever, de me botar na cadeia porque tinham escutado "um boato na vizinhança" de que alguns dos meus companheiros tinham entregado os pontos e me dedurado. O quê? Não. Impossível.
Ou pouco provável, pelo menos. Diabo, ninguém cagüetava no Hawks A. C., não o presidente, pelo menos. Não Eu. Então perguntei de novo: "Testemunhas? Que testemunhas?".
E bastou isso, pelo que me lembro. Observamos um instante de silêncio, como diria meu velho amigo Edward Bennet Williams. Ninguém falou nada - principalmente eu -, e quando meu pai finalmente rompeu o sombrio silêncio havia dúvida em sua voz. "Acho que meu filho levantou uma boa questão, oficial. Comquem, exatamente, vocês falaram? Eu estava prestes a fazer a mesma pergunta."
"Não foi com o Duke!", gritei. "Ele foi para Lexington com o pai dele! E não foi o Ching! Nem o Jay!"
"Cale-se", disse meu pai. "Fique quieto e deixe que eu lido com isso, seu tonto."
E foi isso que aconteceu, amigos. Nunca mais vimos aqueles agentes do FBI. Nunca. E aprendi uma lição eficaz: jamais acredite na primeira coisa que um agente do FBI lhe disser sobre qualquer coisa - principalmente se ele parece acreditar que você é culpado de um crime. Talvez ele não tenha provas. Talvez esteja blefando. Talvez você seja inocente. Talvez. A Lei pode ser obscura a respeito dessas coisas... Mas é uma jogada que definitivamente vale a pena.
De qualquer modo, ninguém foi preso por causa daquele suposto incidente. Os agentes do FBI foram embora, a Caixa de Correio dos EUA foi colocada novamente em pé sobre suas pesadas pernas de aço e nunca mais voltamos a ver aquele porco bêbado daquele motorista de ônibus substituto.


2 comentários:

Anônimo disse...

grande!

O Ancião disse...

Isso ele é. O cara escreve muito bem.