quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A CASA DOS BUDAS DITOSOS

João Ubaldo Ribeiro

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Tudo no mundo é secreto

No final do ano passado, depois que alguns jornais noticiaram que a editora responsável por esta publicação me havia encomendado um texto sobre o pecado da luxúria, os originais deste livro e o recorte da nota de um dos jornais em questão foram entregues por um desconhecido ao porteiro do edifício onde trabalho, acompanhados de um bilhete assinado pelas iniciais CLB.

Informava que se trata de um relato verídico, no qual apenas a maior parte dos nomes das pessoas citadas foi mudada, e que sua autora é uma mulher de 68 anos, nascida na bahia e residente no Rio de Janeiro. Autorizava que os publicasse como obra minha, embora preferisse que eu lhes revelasse a verdadeira origem. "Não por vaidade", escreveu ela, "pois até as iniciais abaixo podem ser falsas. Mas porque é irresistível deixar as pessoas sem saber no que acreditar". Assim foi feito, e com justa razão, como o leitor haverá de constatar, após o exame deste depoimento espantoso.

Embora não tenha tido dificuldades extremas para a edição do texto, é meu dever prazeroso agradecer a Andréia Drummond pela paciência e afinco na decifração de muitas emendas manuscritas, a Maria de Lourdes Protásio Benjamin pela mesma razão e a Geraldo Carneiro, por sua valiosa ajuda no esclarecimento de algumas passagens, em que a revisão dos originais parece não ter atentado a problemas certamente ocorridos na transposição das fitas gravadas para o papel. Essa ajuda também foi fundamental para a divisão do texto em seções e parágrafos, bem como para a inserção de raros trechos em discurso direto e diversos acertos de pontuação, com o que creio que somente ficilitamos a leitura, sem alterar o sentido de forma significativa. Mantivemos também inúmeros "erro de português", com o fito de preservar, tanto quanto possível, a oralidade dos originais.

Pela transcrição João Ubaldo Ribriro Rio de Janeiro, maio de 1998.

Essa noite eu tive um sonho. Grande bobagem, nada disso. Não era assim que eu queria começar, não é assim. Essa noite eu tive um sonho -- parece diário de colégio de freiras, não é nada disso. Mas, de fato, eu tive um sonho. Um sonho inesperado, com aqueles dois budazinhos ali. Antigamente eu sonhava muito com eles, mas parei faz décadas, tudo faz décadas. São muito pequenininhos, os detalhes se perdem, comprei num camelô de Banguecoque, é um objeto sentimental. Não lembro onde li a respeito de dois Budinhas, um macho e uma fêmea fazendo sexo, essas coisas milenares de chinês, nunca entendo direito, misturo as datas, apronto a maior confusão. Havia uma espécie de templo, a Casa dos Budas Ditosos -- não é bonitinho, a casa dos Budas ditosos? eu acho --, com imagens iguais a essas, só que enormes.

Os noivos, antes do casamento, iam lá para venerar estátuas e passar as mãos nos órgãos genitais delas. Era uma espécie de aprendizado ou familiarização, uma introdução a um casamento bom na cama. Eu acho de um bom gosto delicadíssimo.

pública, por assim dizer, devia ser uma verdadeira poltrona.

Príapo foi substituído por São Gonçalo, no nosso politeísmo católico. Os católicos são politeístas. Desculpe, se você é católico. Aliás, naturalmente que eu também fui criada como católica, tinha aulas de catecismo, fiz primeira comunhão vestida de organdi branco, só falava o estritamente necessário na sexta-feira santa, só comíamos peixe toda quinta-feira e assim por diante. Mais ainda, fui criada para considerar os protestantes gentinha e ficava com raiva de Lutero, que me parecia a feição do demônio, nos livros de História Geral. Levei um certo tempo para me livrar dessa estupidez, veja você; hoje, tenho até bastante afinidade com os protestantes, exceto os calvinistas e, óbvio, esse pentecostalismo histérico e de baixa extração, que ora nos assola. O magistério da Igreja me enerva.

Prefiro eu mesma ler a Bíblia e pensar do que leio o que me parece certo pensar, quero eu mesma me inteirar das boas novas, sem nenhum padre de voz de tenorino gripado me ensinando incoerências subestimando minha inteligência e repetindo baboseiras inventadas, semelhantes à desfaçatez de afirmar que no Pentateuco há mandamentos como guardar castidade, que os homens santos não batizados foram para um tal de limbo e tantas outras criações conciliares, já li a Bíblia de cabo a rabo e nunca vi nada disso nela. E por que também não observam o que também está lá, no Levítico? Fingem que não está. E o Papa é vigário de Cristo? Certos papas, todo mundo sabe o que foram certos papas, todos infalíveis e tantos safados. Enfim. Não vou falar mais nisso, perda de tempo.

Além de tudo, não há nada de mais em ser politeísta, de certa forma é muito melhor do que ficar acreditando somente num Deus impossível de compreender. E, ainda além de tudo, já estou cansada de não dizer o que me vem à cabeça e olhe que nunca fui muito de agir assim, mas o pequeno grau em que fui já é demais para mim. Ainda me restam alguns penduricalhos desse legado imbecilóide, de que tenho de me livrar antes de morrer. A doença, esta doença que vai me matar, também contribui para meu atual estado de espírito. Não sei quem foi que disse que a perspectiva de ser enforcado amanhã de manhã opera maravilhas para a concentração. Excelente constatação. Nada de pessoal com ninguém, não falo para ofender ninguém em particular, é como se fosse uma atitude filosófica genérica. Meu avô materno era aristocrata, elegantíssimo, falava francês e alemão fluentemente, esteve várias vezes na Europa, era cultíssimo, mas, depois que passou de uma certa idade, peidava em público. Assisti a ele peidar na frente do interventor, na época do Estado Novo. O interventor tinha ido almoçar com ele e, depois do almoço, ficaram conversando na sala de estar, com meu avô volta e meia levantando os quartos e soltando vento aos trovões. Quando minha avó reclamava, ele dizia que o que está preso quer ser solto e todo mundo peidava, inclusive o interventor, então não era ele que, àquela altura da vida, ia arrolhar um peido. Quem quisesse que arrolhasse, mas ele não.

Mas, sim, mas então eu estava dizendo que os católicos são politeístas, botaram os santos no lugar dos deuses especializados. Os gregos e os romanos tinham um deus menor para cada coisa, regras atrasadas, artistas falidos, transações impossíveis, dívidas falimentares, casamentos, músicos bêbedos, agricultores, criadores de cabra, tudo, tudo, tudo. Os católicos substituíram os deuses pelos santos. Os músicos? Santa Cecília.

Os ruins da vista? Santa Luzia. As solteironas? Santo Antônio.

E por aí vai, como você sabe. Até lugares. São José de Não Sei Onde? Diana de Éfeso, a mesmíssima coisa. Os deuses não foram derrotados ou eliminados, continuam imortais com sempre foram e somente mudaram de nome, se adaptaram às mudanças. Eu pronuncio verdadeiras conferências sobre isso, sou a rainha da conferência, às vezes devo ficar chatíssima. Mas pode permanecer tranqüilo, que eu não vou fazer conferência para você, afinal você está sendo pago, temos que trabalhar vamos trabalhar. Somente uma última referenciazinha a São Gonçalo, porque agora já comecei e sou compulsiva; comecei tem que acabar. São Gonçalo não existe.

Ou melhor, existe mas nunca existiu. Para a Igreja, não há nenhum São Gonçalo, nunca houve. Mas se declarou, na minha opinião por falta de Príapo, uma grande lacuna, que clamava por ser preenchida. Não existe São Gonçalo, mas já vi procissão dele com padre e tudo, e as mulheres cantando obscenidades baixinho, é um santo deflorador e consolador para as solitárias. No arraial junto à fazenda da ilha, segundo até meu avô contava, havia uma imagem de São Gonçalo com um falo de madeira descomunal, maior que o próprio corpo dele. O corpo era de barro, mas o falo era de madeira de lei e fixado pela base num eixo, de maneira que, quando se puxava uma cordinha por trás, ele subia e ficava ali em riste. Eu nunca vi, mas as negras velhas da fazenda garantiam que antigamente, todo ano, faziam uma procissão com essa imagem de São Gonçalo e as mulheres disputavam quem ia repintar o falo, era sucesso garantido no mundo das artes, para não falar que a felizarda ficaria muito bem assistida nos seguintes 364 dias.

Claro! É simples, é porque eu queria botar um título, mas é claro! Eu sou como dizem que Buñuel era: meu método de exposição é a digressão. Eu sei que estou muito longe de estar senil.

Evidente que eu delirei um pouco, mas eu sempre delirei, e São Gonçalo me fascina, eu tinha razão em lembrar o sonho. Claro, é por causa do título. Tire isso da gravação. Aliás, não, depois você tira tudo da gravação, a gravação inicial só começa quando eu disser. Não tire nada agora. Deixa que eu tiro, quando você passar tudo para o papel. É melhor, vamos deixar fluir, depois eu faço a triagem, boto ordem etc. Calma, calma. Não sei nem por que este... Como é o nome disto, disto que nós estamos produzindo? Vamos dizer, um depoimento socio-histórico-lítero-pornô, ha-ha. Ou sociohistoricoliteropornô, tudo grudado, deve ficar lindo em alemão. Sim, não. Sim, não sei nem por que este depoimento tem que ter título, mas por que não? Esses dois Budas... Depois eu falo sobre esses dois Budas, agora não é o caso. Me lembre, é uma história muito interessante. Mas no momento eles me interessam por causa do título. Eu acho bonitinho, com um som meio aliterante -- a ca-sa-dos-Budas-ditosos --, acho simpático. Este depoimento hereby se chama "A casa dos Budas ditosos". É bom, até porque não quer dizer nada, como todo bom título de qualidade literária. O sujeito vai ler e pergunta por que esses Budas, é capaz das explicações mais desvairadas. Quanta gente vai ler este depoimento, como será que ele vai ficar, será que alguém vai ler? Vai, sim, armei um esquema mais sofisticado do que os dos filmes de espionagem. Você faz parte, mas não vou lhe contar como, não tem importância. Você transcreve as fitas aqui, deixa as fitas aqui, tudo o que vai restar é a sua palavra. Que pode vir a ser útil, nunca se sabe. Conte a história, minta bastante se quiser, diga que é tudo verdade, e é mesmo. No começo, achei que ia escrever só para mim e deixar para algum morador de Fulânia, Sicrânia ou Beltrânia, com grande escândalo e engasgos pudicos, tentar explicar tudo de acordo com seus padrões empedrados -- ô espécie esculhambada que nós somos, que tempo nós perdemos, quando há tanta coisa a descobrir! Fulânia, Beltrânia e Sicrânia eram os países fundados por uma grande amiga minha, Norma Lúcia -- depois vou falar mais nela, é imprescindível --, todos habitados por velhacos como o velho Pedrão, professor de Direito Romano, depois eu falo nele, que moravam em outros países, moravam em outros mundos. Fulânia, Beltrânia e Sicrânia, bons patifes, eles moram lá e eu cá. Mas não vou deixar isso a cargo deles, não confio na posteridade. O título que eu ia botar era "Memórias de uma libertina", mas não vou mais botar, é bom gosto demais para esse povo que nunca leu Choderlos de Laclos, não vou desperdiçar, jogar pérolas aos porcos. Em Fulânia, Sicrânia e Beltrânia, não se pode ser realmente fino, com um título fino desses; tem que ser pseudofino como eles, pronto, a casa dos Budas ditosos satisfaz, satisfaz, é mais tranqüilo, me garante contra irritações geradas pela burrice e pela ignorância. Claro que no fundo odeio esse título de bom gosto ao qual acabo de ceder, mas cedo, de resto vão todos pastar, em verdade vos digo.

Não cheguei ao ponto ótimo como meu avô, não tenho coragem de fazer o que ele fazia em público, ainda estou amarrada a uma porção de penduricalhos absurdos. É uma pena, porque memórias de uma libertina seria tão melhor do que essa bichice dos Budas ditosos, mas não se pode ter tudo neste mundo, tome-lhe Budas misteriosos. Quem é burro pede a Deus que o mate e ao diabo que o carregue. No começo, achei que ia deixar estas delusões -- como dizia meu professor de Medicina Legal -- para serem publicadas depois de minha morte. Mas num instante vi que era burrice, nada vale a pena depois da morte, eu quero é passar na rua e ver as caras das pessoas que leram, todo mundo fingindo que não é nada com eles. Nada desse negócio pequeno-burguês de depois da morte. Antes da morte, tudo antes da morte, é ou não é? E, por outro lado, me arriscaria a eles darem um jeito de destruir os originais, não me pergunte como, eles são diabólicos.

A casa dos Budas ditosos. One, two, three, tudo bem? A casa dos Budas ditosos. Prefácio, introdução, nota preliminar, qualquer coisa assim. Decidi dar este depoimento oralmente, em lugar de escrevê-lo, por várias razões, a principal das quais é artrite. Cortar isso, gracinha boba, eu não tenho artrite, nem faço planos de ter. Muito bem, prefácio. Decidi fazer este depoimento inicialmente de forma oral, em vez de escrita, pela razão principal de que é impossível escrever sobre sexo, pelo menos em português, sem parecer recém-saído de uma sinuca no baixo meretrício ou então escrever "vulva", "genitália", "gruta do prazer", "sexo túmido" e "penetrou-a bruscamente". Falando, fica mais natural, não sei bem por quê. Que mais? Gostaria de ter jeito para falar inanidades labirínticas como certos psicanalistas ou sociólogos, ou um desses pensado es franceses, desses que costumam aparecer nos cadernos de cultura dos jornais, para, na maior parte dos casos, sumir imediatamente após, e que não dizem nada, mas intimidam as pessoas com seus relambórios.

Mas não sei fazer isso, é uma das minhas deficiências. Esquecer.

Sim, mas que mais? Sempre achei chique -- deve ser subproduto de algum trauma de infância -- botar no frontispício "qualquer semelhança etc. etc.", mas, no caso, o contrário. Atenção.

Qualquer semelhança estará bem inferida. Não, não, muito pernóstico, qualquer semelhança não é coincidência, nenhuma semelhança é coincidência. Nomes trocados para proteger culpados.

Quem puser a carapuça pode ter certeza de que está bem posta.

Não, não, estou achando isto um pouco metido a engraçado. Vou reditar tudo, quero um prefácio decente. Vamos anotar uns tópicos, depois eu desenvolvo. Um, tópico um. Ser mulher, ser coroa? Não. Não, não, não! Depois eu arremato este prefácio, ou não faço prefácio. Meu avô -- o outro avô, o alemão, um prussiano insuportável, nazista de nascença como todo alemão, embora tenha morrido se proclamando antinazista, como também todo alemão -- dizia que tudo o que precisava de prefácio, inclusive emprego e mulher, nesta ordem de precedência, não valia nada.

Principalmente mulher, acho eu, porque a livro ele não dava muita importância, a não ser para esculhambar e querer queimar todos.

Ele só não gostava de Hitler porque Hitler era bávaro e malnascido, não por causa do nazismo. Dava churrascos, ficava bêbedo e queimava livros Comprava muito, para depois queimá-lo nos braseiros do churrasco, um livro de Eduardo Prado, muito famoso na época. E fazia discursos, afirmando que os brasileiros eram estúpidos, os únicos inteligentes eram os antropófagos, não sei bem o que ele queria dizer com isso. Minha mãe contava que Eduardo Prado era lindíssimo, de cabelos revoltos e farfalhantes, ao vento do viaduto do Chá. Uma senhora o viu uma vez, contava minha mãe, não se conteve e exclamou: "Mas que homem bonito!".

E ele respondeu: "É do ar do prado, minha senhora." Ha-ha. Meu pai tinha um terror patológico de ser corno, e minha mãe sabia disso e então, muito sacanamente, genialmente sacanamente, minha mãe era uma enciclopédia do sacanismo, fazia ares sutilmente ambíguos e então falava em Eduardo Prado, falava em Douglas Fairbanks, Rodolfo Valentino, Ramón Navarro, imitava Mae West, recitava Byron e Castro Alves com caras e vozes de orgasmo, chamava Castro Alves de Cecéu como se houvesse ido para a cama com ele no dia anterior, era um martírio a que o velho tinha de se submeter calado, por uma questão de coerência entre o que professava e o que realmente sentia, ele era muito liberal de boca, coitado de meu velho, morreu moço, mais moço do que eu hoje, 66 anos. Pronto, não faço prefácio. Depois eu vejo, decisions, decisions. De qualquer maneira, fica aí o registro. Depoimento oral, tatatá, tatatá, já falei isso, porque é mais fácil dizer palavrão do que escrever palavrão, há exigência de passaporte para as palavras passarem do falado ao escrito, algumas não conseguem nunca, a humanidade é muito estranha. Que mais? Explicar que sou um grande homem e não digo que sou uma grande mulher pela mesma razão por que não existe onço, só onça, nem foco, só foca, tudo isso é um bobajol de quem não tem o que fazer ou fica preso a idiossincrasias da língua, como aquelas cretinas feministas americanas que queriam mudar history para herstory, como se o his do começo da palavra fosse a mesma coisa que um pronome possessivo do gênero masculino, a imbecilidade humana não tem limites. Sou um grande homem fêmea, da mesma forma que os grandes homens machos são grandes homens machos, fica-se catando picuinha porque o nome da espécie é por acaso masculino e não neutro, como é possível que seja em alguma outra língua, como se a gramática resolvesse alguma coisa nesse caso. Explicar isso, não existem grandes homens e grandes mulheres, existem grandes homens machos e grandes homens fêmeas. Não há nada mais ridículo do que galeria de grandes mulheres isso e aquilo, fico morta de vergonha. A espécie é humana, como Panthera uncius, Panthera leo, um onça, no feminino por acaso, outro leão, no masculino por acaso, questão de língua, exclusivamente. Explicar isso como quem explica a um marciano. A um terráqueo. Escuta aqui, terráqueo, deixa de ser débil mental. Bem, ambições inúteis, vamos ao trabalho. Que mais? Nada, estou em grande dúvida quanto a este prefácio. Rever necessidade de prefácio.

Odeio dizer isto, mas a verdade é que estou um pouco nervosa.

Minha família sempre desprezou qualquer forma frescura, fui criada assim. Minha família não vale nada, mas é ótima, principalmente os mais antigos. Temos ancestrais fantásticos. Tudo bandido, e eles se escondem por trás daquelas baixelas e daqueles pratos de antes da Primeira Guerra e daquelas maneiras de lordes das índias Ocidentais. Meu avô era, como eu já disse, era prussiano, prussiano de Brandemburgo, abominava todo mundo, com exceção de Frederico II. A idéia dele de um grande programa na Europa era passar quatro dias em Potsdam, babando dentro da Orangerie e sonhando em empalar poloneses.

Grande família. A mulher dele era católica da Vestfália, só tomava banho sábado e nunca ria, a não ser gargalhadas histéricas que duravam horas, geralmente aos domingos, depois da missa e antes dos repolhos hediondos. Tremenda família. Só conheço meus bisas pelos retratos ovais, espalhados por aí. Os dos museuzinhos, não levo em conta, só lembro que meu bisa João me assombrava com uns olhos horripilantemente biliosos, num retrato cercado de louros, na sala grande da casa da fazenda de Lençóis.

João teve imensos escravos, e um antigo jornalista baiano, desses que a gente finge que lembra e é nome de rua em Brotas, publicou seis números da destemida gazeta independente e republicana "14 de agosto", esse jornalista, como é mesmo o nome dele, escreveu -- hoje ninguém acredita, a humanidade é burríssima mesmo -- que meu bisa tinha descoberto a cura da gagueira. O canalha falsificou documentos e a própria alma -- você acredita que o pulha era mulato? pardo, como se dizia mais nessa época -- e inventou uma porção de coisas sobre não sei quantos escravos, pelo menos duas dúzias, em cujas bocas meu bisa mandou enfiar ovos quentes, ele adorava enfiar um ovo quente na boca de alguém sob qualquer pretexto, ou mesmo sem pretexto, dizem até que meteu um na boca de minha bisa Sinhazinha, mulher dele. Os ovos realmente ele mandava enfiar, mas evidente que seu efeito foi inventado pelo jornalista. Seis desses escravos, disse aquele crápula, eram gagos e ficaram bons da gagueira, depois dos ovos quentes. Claro, ele não defendia que se pusessem ovos quentes na boca de ninguém, mas que se aproveitasse a lição, a ciência médica podia encontrar um meio para curar esse aflitivo mal da fala através de uma terapia inspirada nisso, imagino que talvez um ovo não muito quente, em várias aplicações. O homem é muito ingrato para com seus benfeitores, como dizia minha tia-avó Inês, que tinha horror de preto e chamava de cu-de-luto qualquer branca que dormisse com negro ou raceado.

Vejo tudo como se fosse hoje. A velha casa-grande do Outeirão, que já peguei com as paredes cobertas de limo de verde a retinto, insetos por tudo quanto era canto, jias que no inverno miavam como gatos, plantas estalando, as telhas se entrelaçando com cipós e uma ou outra cobra cor de esmeralda, o resto da chuva ainda pingando das árvores nas plantas de folhas grandes embaixo, uns fedores e cheiros mornos saindo das rachas nos pisos de lajota, passarinhos cantando e piando, uns azulejos desmaiados nas paredes do varandão, umas quatro galinhas brabas ciscando debaixo das touças de bananeira, pedras soterradas pela lama, calangos trepando pelos troncos das mangueiras, duas ou três mutucas zumbindo e, apesar de tudo, um silêncio que chegava a doer. Isso. Foi nesse dia, nessa grande casa velha embolorada, que tinha uma estante de sucupira crua que as goteiras haviam empenado nas juntas. Já conhecia muito aquela estante, mas, mesmo assim, ou talvez por causa disso mesmo, foi mexer nos livros enrugados pela umidade, com as páginas tresandando inesquecivelmente e, a cada uma que eu folheava, essa exalação me trazia um arrepio no meio das costas e me deixava enlouquecida. Havia todos os tipos de livro. Lembro bem do O Guarany, com ípsilon, ilustrado pela figura de Pery, também com ípsilon, que eu achava que mostrava um volume fascinante do lado esquerdo da tanga de espanador, de Salambô, estampando uma mulata quase nua na capa, D. Quixote de ceroulas em meio a alucinações, uma coleção encadernada de Anatole France se desmanchando, tudo, tudo. Como seria a voz de meu bisa João Ferdinando Bibiano Rafael, mandando enfiar ovos quentes na boca dos outros? Como seria? Sou fixada na fase oral, fase oral canibalista certamente, adoro qualquer forma de ingestão. Nessa época, eu já estava bem fixadinha, hoje isso é perfeitamente claro. Não sou chegada à psicanálise. Lá em casa, desde muito antes de Freud, com certeza, sempre se achou obsceno ficar contando intimidades e fraquezas a um estranho, mas de vez em quando uso uma frase que aproveita o jargão dos psicanalistas, acho que é meio inevitável na minha geração, não sei. Então, na falta de melhor observação, eu tenho certeza de que me encaixo nessa situação de fixada na fase oral, passei anos sem entender nada, e essa noção quebra meu galho.

Porque sempre achei gostoso ingerir, a não ser por via venosa, e venho continuando vida afora, apesar de hoje em dia estar um pouco blasée. Então eu ficava cheirando aqueles livros e tendo arrepios. Ainda cheiro, mas só livros velhos e, como disse, estou um pouco blasée. Deve ser coisa da idade, certamente é a idade, embora, é claro, eu não me considere velha. Mas já vivi quase sete décadas, alguma coisa sucede nesse tempo. Confusão, estou fabricando uma tremenda mixórdia. Será que estou fazendo psicanálise? Pavor, ouvido de aluguel, pavor. Bem, de certa forma, você e esse gravador são ouvidos de aluguel. Sei lá. É, deve ser coisa da idade, eu abomino a expressão "terceira idade", hipocrisia de americano, entre as muitas que já importamos, americano é o rei do eufemismo hipócrita. Não suporto velho, velho mesmo, metido a alegre, velhice é uma desgraça, não traz nada que preste. Cortar isso tudo acima, eu mesma acho que não entendi nada do que acabei de falar. A gente fica a mesma e não fica a mesma. Ih, chega, preciso botar alguma ordem nisto e até os delírios precisam ser pelo menos um pouco organizados sob algum critério, é preciso dar método à loucura, mais ou menos como Polônio falou da piração de Hamlet. Thy son is mad, but there is method in his madness, não foi isso que ele disse, mais ou menos? Eu gosto de Shakespeare, leio desde menina, mesmo no tempo em que não compreendia patavina. Aliás, será que compreendo hoje? Ninguém compreende nada, seja da vida, seja de Shakespeare, que morreu mais de dez anos mais moço do que eu, sem saber que era Shakespeare, Voltaire desancou Shakespeare, todo mundo desancou Shakespeare, a vida... Ih, chega! A vinda dele, o nosso encontro, isso era o que eu ia contar, para finalmente começar o depoimento. Sem frescura, basta de frescura. A vinda dele eu posso dizer sem nenhum constrangimento, foi meio violenta, ou bastante violenta, se você quiser. Ele brincava comigo e meu irmão Otávio, a gente gostava dele, minha avó de vez em quando deixava que ele almoçasse com a gente, mas ele era somente um dos negrinhos da fazenda, naquele bando de escravos que meu avô tinha. Não eram escravos oficialmente, mas de fato eram escravos, e a maior parte vivia satisfeita, fazendo filhos e enrolando meu avô. Figura interessante, meu avô peidão, pena que eu não tenha tido a oportunidade, física e psicológica, de conviver mais com ele, não havia como, embora ele gostasse de mim e eu dele. Acho que ele sabia que era enrolado o tempo todo.

Acho que não, ele sabia, mas claro que não ligava, ele era uma postura pragmático-egocêntrica ambulante, não pode mais existir gente como ele, naturalmente.

Aí eu, sem quê nem para quê, muito de repente, cheguei para esse negrinho, no pátio da quebra de coco de dendê, e disse: "Hoje de tarde esteja na casa-grande velha, na hora em que minha avó estiver dormindo. Sozinho e não diga a ninguém." Ele estranhou e disse que não podia porque ia ter de catar ouricuri com a mãe e ficou revirando os olhos para cima e levantando os pés como se marchando sem sair do lugar e esfregando as orelhas com uma careta, como se quisesse removê-las da cabeça. "Mentira", disse eu, "mentira sua, hoje é domingo.

Você vai, ou eu conto a meu avô que você tomou ousadia comigo e ele manda lhe capar, como mandou capar finado Roque, seu tio, você sabe que meu avô mandou capar ele, porque ele se ousou com uma rapariga dele." E ainda dei um tapa forte, estalado mesmo, na cara dele. Ele estremeceu e, se preto pode ficar lívido, ficou lívido. Aliás, preto fica lívido, engraçado, você nota os lábios pálidos. Mas não disse nada, e eu ainda fiz menção de dar outro tapa e só não dei porque não tinha planejado nada daquilo e estava meio sem entender a situação e também me deu uma espécie de gana de continuar batendo e ao mesmo tempo uma sensação desagradável, como se tivesse medo de alguma coisa, não sei bem descrever esse momento. Em todo caso, depois de marchar parado e esfregar as orelhas novamente, ele respondeu que ia, e eu senti uma cócega funda me subindo das coxas para a barriga. Senti muitas outras vezes essa cócega, até hoje sinto, mas nunca como nesse dia.

Quando ele chegou, parou bem embaixo da arcada do salão, com aquele calção de saco de aniagem sem nada por baixo, vi logo que era uma ereção impetuosa, uma força irresistível forçando o pano quase no meio da coxa esquerda, e ele cruzou as mãos por cima, numa posição que agora eu talvez possa considerar engraçada, mas na hora não me pareceu. Senti a cócega na barriga outra vez, mas ao mesmo tempo não gostei. Não sei direito por que não gostei, mas na hora achei que foi porque fiquei pensando em como era que aquele negrinho, aquele projeto de negrão, aliás, sabia que tinha sido chamado para sacanagem. E se eu quisesse somente pegar passarinhos, mostrar a ele os livros e lhe ensinar algumas letras do alfabeto? Só me lembro disso, embora tenha certeza de que muito mais se passou atropeladamente por minha cabeça, e meu fôlego ficou acelerado. Então veio o estupro, um inegável estupro. Domingo, e o nome dele era Domingos. Rodei os olhos por aquelas paredes, apareceu na minha cabeça padre Vitorino na aula de catecismo, dizendo que domingo queria dizer o dia do Senhor, dominus vobiscum et cum spiritum tuum introibo ad altare Dei ite missa est, aqueles latins do outro mundo e pareceu que um redemoinho me pegou, meus olhos só viam em frente, meus ouvidos zumbiam, e eu falei, levantando a saia e baixando a calçola: -- Chupe aqui.

Não me recordo do que ele respondeu de pronto, lembro que cuspiu para o lado e disse que aquilo não, nada daquilo. Curioso, tudo está vindo de volta como nunca antes. Lembro que olhei para baixo e vi no lugar geralmente designado por nomes ridículos sob os quais a realidade é disfarçada, vi o que eu tenho que dizer com todas as letras, porque de outro modo vou agir conforme tudo o que eu sou contra -- daqui a pouco eu consigo, é quase uma questão de honra, não vou ficar satisfeita se não disser --, já razoavelmente emplumada e enfunada como um cavalo de combate, me senti poderosa, marchei para ele, apertei-o no meio das pernas e, mordendo a orelha dele, disse outra vez que ia contar a meu avô a ousadia dele. Chupe aqui, disse eu, que não sabia realmente que as pessoas se chupavam, foi o que eu posso descrever como instintivo. Falei com energia e puxei a cabeça dele para baixo pela carapinha e empurrei a cara dele para dentro de minhas pernas, a ponto de ele ter tido dificuldade em respirar. Não me incomodei, deixei que ele tomasse um pouco de ar e depois puxei a cabeça dele de novo e entrei em orgasmo nessa mesma hora e deslizei para o chão. A essa altura, ele já estava gostando e se empenhando e me encostei na parede de pernas abertas e puxei muito a cabeça dele, enquanto, me encaixando na boca dele como quem encaixa uma peça de precisão, como quem dá o peito para mamar, com um prazer enormíssimo em fazer tudo isso minuciosamente, eu gozava outra vez. Imediatamente, já possessa e numa ânsia que me fazia fibrilar o corpo todo, resolvi que tinha que montar na cara dele, cavalgar mesmo, cavalgar, cavalgar e aí gozei mais não sei quantas vezes, na boca, no nariz, nos olhos, na língua, na cabeça, gozei nele todo e então desci e chupei ele, engolindo tanto daquela viga tesa quanto podia engolir, depois sentindo o cheiro das virilhas, depois lambendo o saco, depois me enroscando nele e esperando ele gozar na minha boca, embora ninguém antes me tivesse dito como realmente era isso, só que ele não gozou na minha boca, acabou esguichando meu rosto e eu esfreguei tudo em nós dois. É impressionante como eu fiz tudo isso logo da primeira vez, porque foi mesmo a minha primeiríssima vez, e eu nunca tinha visto nada, nem ninguém tinha de fato me ensinado nada, a não ser em conversas doidas com as outras meninas do colégio, principalmente as internas, que sempre ficavam meio loucas, como é natural. Grande parte dessas histórias não tinha muito a ver com o que efetivamente é feito, com exceção das histórias sobre algumas das freiras e outras alunas, que eu depois vi que eram mais ou menos verdade e hoje sei que, na maioria dos casos, eram verdade. Suponho que devo ter um certo orgulho disso, devo reconhecer sem modéstia que sou um talento nato, uma predestinada, uma escolhida dos deuses, só pode ser algo assim. Não gosto de falar desta maneira, mas não há como escapar, existe alguma coisa de inexplicável nisso, tenho de crer que nasci sabendo, de certa forma. De certa forma não, eu nasci sabendo. Só pode ser, não me pergunte como. Eu nasci sabendo.

Arrepios.

Depois disso, praticamente nunca mais nos falamos, você acredita? Nunca mais nos falamos, mas continuamos a fazer as mesmas coisas e outras durante essas férias todas, uma relação meio animalesca, que aproveitava as oportunidades, sem que fosse necessário dizer nada. Era bom, era um dos muitos padrões que terminei aprendendo e que tem seu lugar, tem muito seu lugar, estou com preguiça de explicar por que e, além disso, quem tem sensibilidade aberta e aguçada nesse terreno sabe o que eu quero dizer, e explicar a quem não tem adianta pouco ou quase nada. Só fazíamos isso, e depois ele ia embora e, se acontecia passarmos um pelo outro em lugares em que havia gente, era como se não nos víssemos. Não nos falamos mais e, quando eu voltei, anos e anos depois e, quando eu voltava eventualmente depois de bastante adulta, nós saíamos para pescar na canoa dele e trepávamos nus no meio do mar. Isso só terminou mesmo depois que eu entrei em outra órbita e nunca mais apareci. Sempre partíamos para nos agarrar automaticamente, quase todas as vezes em que ficávamos sozinhos, a não ser nas raras ocasiões em que eu não estava a fim, e ele, por alguma via telepática, sacava. Além disso, a iniciativa era sempre minha, ele ficava esperando. Ainda nesse tempo de semi-adolescente e adolescente, eu ia com minha avó ao Outeirão e era a mesma coisa, aperfeiçoada a cada encontro. Ele se viciou em me chupar e eu em chupar ele e me dava muito prazer nós dois atrás das portas, fazendo as coisas de maneira insubstituivelmente perigosa. Com o tempo, ainda nessas férias em que começamos, ele passou a botar nas minhas coxas, e a gente aprendeu a sincronizar o gozo, e eu fazia questão de que ele recuasse um pouco os quadris para gozar nas minhas coxas. Fiquei uma especialista nessa prática, até hoje acho que é muito bom em certas circunstâncias que não sei enumerar, mas sinto quando elas se apresentam. O homem não pode gozar fora, não pode cometer o pecado de Onan, que, como você sabe, não foi se masturbar, mas ejacular no chão, em vez de emprenhar devidamente sua cunhada viúva, se não me engano era a cunhada viúva, ou uma outra parenta em situação semelhante. Está no Velho Testamento, onde, aliás, como eu já disse, estão muitas outras coisas habitualmente denunciadas como reprováveis, que os padres e pastores fingem que não vêem. Os padres, em suas bíblias, disfarçam as referências de Salomão com notas de pé de página, distorções de sentido e trocas de palavras. É possível que eu tenha alguma fixação mórbida nisso, agora talvez esteja notando indícios; curioso, nunca tinha me dado conta. O fato é que amantes, concubinas e por aí vai são bastante encontradiças no Velho Testamento, todo mundo sabe disso e continua com as pregações santimoniais a que até hoje hoje não me acostumei. É capaz dessa história de onanismo querendo dizer masturbação haver sido inventada por eles, para não terem que admitir as relações hoje espúrias, que a tradição relatada mostra. Uma vez li um conto de Isaac Bashevis Singer em que ele se referia ao pecado de Onan de maneira correta e afirmava que, quando o homem ejacula no chão, um diabinho é gerado. Pode ser, pode ser, o fato é que não está certo. Na hora de gozar, tem que recuar os quadris e não privar a moça dessa irrigação tão rica em significados e símbolos, tão misteriosa, afinal. Aconselhei várias outras meninas sobre isso e sempre disse a elas: o homem que não goza nelas não merece confiança.

Ou então é um inepto, que precisa ser treinado. Eu nunca deixei de gostar, sempre adorei, até porque é geralmente em pé, ligeiro e escondido, é muito bom, por trás ou pela frente, evoca bons tempos, é meio peralta e muitas outras coisas, dependendo de cada uma e do momento. Enfim, é uma opção entre muitas, que não deve ser desprezada.

Era o que se fazia no meu tempo, chega a ser difícil reconstituir como era complicado no meu tempo. Alguém devia fazer a sociologia disso. Eu sou do tempo do automóvel, da garçonnière e da demi-vierge, ninguém hoje sabe mais o que é isso, e eu tenho até uma certa saudade, acho motel sem graça, sem nenhum condimento, mesmo os metidos a criar ambientes românticos ou eróticos. Nesse ponto, sou obrigada a reconhecer meu reacionarismo, embora não radical, é claro. E a hipocrisia da época era mais agressiva, dava muito gosto a quem desafiava seus mandamentos, acabava resultando num grande prazer, a transgressão era mais satisfatória, melhor para o ego. Vários namorados meus, inclusive meus dois noivos, eu já mulher completa desde priscas eras, achavam que eu era virgem eras, achavam que eu era virgem e diziam abertamente que não tinham preconceito, mas só casariam com virgens. No segundo noivado, que chegou perto do casamento e graças a Deus só chegou perto, com aquela bicha enrustida e meio impotente, eu já estava até pronta, veja que coisa ridícula, outrageous but true, já estava pronta para fazer uma recuperação de minha condição virginal, restaurar o hímen. Muita gente restaurou, sei de vários casos. Fico pasma quando penso nisso, mas é verdade, eu já tinha o nome de dois médicos aqui no Rio, já tinha planejado tudo. O passado me condena, me dá vergonha quando falo nisso. Mas era o tempo, tem que se dar um desconto, de longe as coisas parecem fáceis; na verdade, eram uma barra.

Intervalo. Vamos tomar mais um uísque? Eu não devia beber, mas às favas com isso, vou morrer de qualquer jeito. Intervalo para uisquinho, se não for por nada, pelo menos porque in vino veritas.

Mas, enfim, de modo geral era um barato brincar com a hipocrisia e driblá-la criativamente. Essa amiga de quem eu já falei, Norma Lúcia, que nunca mais vi porque casou com um milionário sul-africano e foi morar lá, mas uma vez na vida ainda me escreve -- depois eu quero falar ainda mais sobre ela, ela é mais tarada do que eu, muito mais, é um assombro, já deve estar um tanto passada dos setenta e na ativa, ainda mais agora, que o marido ficou paralítico e meio gaga --, essa amiga me deu grandes lições de anti-hipocrisia aplicada, usando a força dela contra ela, como dizem que fazem os lutadores de jiu-jítsu. A manobra de pegar no pau. Pegar no pau de forma que ele pense que é a primeira vez em que a indigitada pega num pau: nunca tomar a iniciativa e, apenas na terceira ou quarta tentativa, deixar, toda relutante e pudica, que ele puxe sua mão. E aí pegar de leve, como se estivesse tocando num bibelô de casca de porcelana, dedos hesitantes, mão quase flácida, até ele dar um risinho superior e grunhir "pode apertar". E então ele explica, e você escuta atenta e receosamente, que é natural para a mulher inexperiente pegar daquela forma, mas agora você sabe, deve-se apertar. E aí, a princípio sem muita convicção, mas logo fazendo progressos, você passa a apertar à vontade e até a abrir a braguilha dele, que naquele tempo era de botão e nunca de fecho ecler, já que fecho ecler, para os machos mais ciosos de sua machidão, era coisa de veado, abrir com dois dedos habilidosos, na hora interminável em que ele começava a meter a língua em sua orelha e babar tudo. Até hoje é um mistério para mim a razão por que os homens consideravam de rigueur meter a língua nas orelhas das mulheres no começo dos dares-e-tomares, vai ver que eles trocavam informações sobre isso e acabaram formulando um ritual.

Não que eu seja absolutamente contra, mas a obrigatoriedade do lambuzamento às vezes dava uma certa exasperação ou impaciência.

Depois, graças a Deus, paravam, geralmente era só nas primeiras vezes. Número dois: manobra para chupar. Isso era sempre, semprérrimo, a primeira vez. Era tal a obsessão dos homens pela primeira vez, que iam para a cama com uma mulher de quarenta e ela conseguia convencê-lo de que era a primeira vez em que chupava alguém. Que maravilha, eu nunca fiz isso, sabia? Só com você, nunca fiz com ninguém, só sabia disso por ouvir falar, nem acreditava, achei que ia ter nojo, mas com você eu não tenho, essas coisas. Ainda hoje, acredito que a maioria dos homens é assim, juventude descontraída e tudo. Outra coisa: nunca deixar que ele acabe logo na boca e, se por acaso acontecer, cuspir, lavar a boca, esfregar lenço e assim por diante. O pela primeira vez, nesse caso, era ainda mais importante do que o do chupar simplesmente. Mulheres casadas diziam aos amantes -- e muitas ainda dizem, suspeito eu -- que jamais fizeram ou fariam isso com o marido, e os cretinos acreditam, não existe coisa de que homem se gabe mais do que a amante fazer com ele o que não faz com o marido, tudo chute, armação. Relação retal, a mesma coisa etc.

Oh, é a primeira vez, devagar, tá? Grandes atrizes se perdem todos os dias.

Norma Lúcia era uma gênia. Ela e eu subíamos juntas a rua Chile, com semblantes de moças mais ou menos recatadas e absolutamente família, olhando as vitrines e tendo altos papos de sacanagem. Altos papos mesmo, porque eu sempre tive minhas tinturas, e ela era meio intelectual, escrevia em suplementos literários e se esfregava com pintores por causa de quadros, chegou até a conseguir que um namorado comesse um pintor veado em troca de quadros, ela era danada. Esse negócio de primeira vez mesmo, ela batizou em latim. Principium primae não sei o quê, qualquer coisa assim, somente para poder encetar papos de sacanagem com Almeida Júnior, um professor de filosofia da faculdade, e tirar uns sarros com ele, sarros pesados, mas só sarros, porque ele tinha medo de meter nela, havia muito homem assim, pelo menos na Bahia. Aquela rua Chile de antigamente, aqueles homens nas portas das lojas, todos de branco e apalpando ou pinicando os bagos, alguns passando a mão para cima e para baixo, acho que era um tipo de moda, não sei por que faziam isso, sempre me pareceram um bando de hipopótamos no cio. A gente, as hipopótamas, sou obrigada a reconhecer, a gente rebolava bastante quando passava por eles, e Norma Lúcia gostava de ouvir piadas grossas, como "eu lhe dou um banho-de-gato, putinha", ou então "bonito cu" e outras que tais, parece que ela atraía isso, algum deles dizia esse tipo de coisa a ela toda vez que ela passava, ela fingindo que não ouvia, mas adorando. Eu digo que tenho saudade e não deixa de ser verdade, mas é como se eu pudesse separar as coisas boas das ruins, impossível. Era um tempo difícil mesmo, tínhamos que ser artistas em diversos campos. Um dia apareceram umas mulheres de calça comprida -- isso eu já com uns trinta anos ou mais! -- nessa dita rua Chile, e houve um tumulto, da mesma forma que tiveram de chamar a polícia para tirar da praia umas francesas que foram tomar banho de mar de maiô de duas peças. Já havia uma multidão de homens na balaustrada, e por pouco as francesas não foram passadas pelo fio da espada ali mesmo. Como eu já disse, barra pesada, pesada mesmo. É, saudade é besteira, há sempre muita idealização nisso.

Eu na realidade não tenho saudade de nada, a não ser do auge da juventude madura, mas eu queria ser jovem trazendo na cabeça tudo o que aprendi até hoje, aí não podia, eu ia ser ditadora do mundo. Está certo, duas plásticas na cara e uma nos peitos, mas e as pernas, onde eu não fiz nada, só uma massagem ou outra? Iguais às da Marlene Dietrich, parece até que ela era minha prima pelo lado alemão da família, e eu partilho com ela a bênção de ficar com estas pernas até morrer, até porque minha morte... Não, mais tarde eu falo nisso, não quero baixar o astral lembrando que minha morte vem aí a qualquer hora, esta doença... É isso mesmo, quem sabe eu não estou me habituando à idéia? Mais tarde eu falo nisso, falo nisso abertamente, quanto mais aqui. Mais tarde. Pois é, hoje eu sou uma das melhores de quase setenta no Brasil, uma das melhores do mundo, eu sei o que estou dizendo.

Imagine como eu era entre os trinta e os quarenta e poucos, na minha opinião a melhor idade para qualquer mulher, com a exceção da que se casa para engordar, realçar a celulite, usar meias contra varizes, assistir a novelas, entrar em concursos de televisão, limpar o catarro dos filhos e o próprio e encher o saco do adúltero de meia tigela que a sustenta. Eu era ótima, mas ótima mesmo, não dessas ótimas de segundo time esforçado que você vê por aí, mas ótima mesmo, Afrodite, Helena de Tróia, Frinéia! Não dou ousadia a contemporâneas, talvez Ava Gardner. Um pouco de Ava Gardner e Sophia Loren no apogeu. E me sinto um pouco desperdiçada, embora infinitamente menos do que a maioria avassaladora. Quero e não quero voltar àquele tempo.

Ambivalências, sempre fui muito ambivalente. Não pareço, mas sou, é uma condição bastante interna, mas sou; ninguém diz, mas sou. Por exemplo, além de ter saudades do tempo das coxas...

Ainda vou contar algumas aventuras do tempo das coxas, tenho material para duas guerra-e-pazes. Passagens espetaculares, uma vez com padre Misael em pleno colégio de freiras, outra vez com meu noivo Maurício na porta do apartamento onde estavam dando uma festa, e eu gozando como vinte ambulâncias desgovernadas, outra vez com meu tio Afonso no banheiro e minha tia Regina, mulher dele, querendo entrar, ah, e essas são somente algumas, são assim as que me vêm à cabeça, de momento. Eram tempos ótimos, em vários sentidos, mas nihil est ab omni parte beatum, acertei essa, outra que Norma Lúcia me ensinou, mas dessa vez não tinha relação com comer nenhum professor casado, de óculos sem aro e cara de santarrão devotado ao partidão, como Almeidinha. Foi só para sacanear o velho Pedrão, depois que ele não agüentou mais ela cruzando e descruzando as pernas e mostrando até as amídalas nas aulas de Direito Romano e aí, um belo dia, ele não se conteve mais e acabou cantando ela, uma cantada deplorável, em que ele tentou usar a linguagem e as referências que estavam em moda entre os mais jovens e se saiu grotescamente. Foi nesse dia que ela falou isso em latim como resposta, é uma citação de alguém.

E disse mais que ele podia continuar olhando as pernas dela, ela tinha até prazer em exibi-las, e ele era merecedor, até pela sua sensibilidade e estatura intelectual. Mas dar, jamais de la vie, incogitável, ele não percebia? Além do mais, disse ela, eu sou virgem, o senhor pelo visto anda acreditando nas histórias que ouve desses oligofrênicos por aí, que não têm o que fazer e não passam de um bando de donzelões frustrados, eu sou uma moça de princípios. Norma Lúcia era diabólica, me contou que o velho quase morre não sei quantas vezes, e um dia se exibiu para ela na sala dele, até em surpreendente boa forma para a idade. Ela então -- Norma Lúcia, grande Norma Lúcia, isso é de deixar o universo boquiaberto, pelo menos o universo dos que viveram aquele tempo -- disse que sim, que lhe daria alguma coisa. O velho babou e perguntou o quê. Então está tudo azul, tudo azul? Coitado, era assim que ele achava que a gente falava em nosso meio. Ela conteve o riso e disse que dependia do que ele considerava tudo azul, porque o que ela ia dar era uma alisadinha rápida, mas só uma alisadinha. E deu a alisadinha mesmo e foi embora com uma leve rabanada jovial, jogando um beijo para ele, já da porta entreaberta. E não passou dessa alisadinha, e com toda a certeza o velho ficou maluco, já esqueci os pormenores do comportamento dele depois desse episódio. Eu sei mesmo é que ele ficou perturbadíssimo e morreu uns meses depois, claro que a humilhação deve ter ajudado. Embora eu não chegue a ter pena propriamente, por causa daquela pose austeríssima dele, moral acima de qualquer dúvida, baluarte dos mais elevados valores éticos e cristãos, censor de revistas e jornais, que gostava de insultar os alunos com palavras que ele descobria em sua biblioteca bolorenta e que os meninos tinham de ir ao dicionário para descobrir o que queriam dizer, como "precito", que nunca ouvi nem li ninguém mais usando e que nunca esqueci. Precito, precito era ele, você conhece o tipo. Geralmente, por trás dessas carrancas intolerantes e cheias de si, se esconde um poço sem fundo de concupiscência e sordidez. Fariseu safado, bem-feito, muito bem-merecido.

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