quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O CAPITÃO ALATRISTE

Arturo Pérez-Reverte

Pic009

Um trecho:

Era uma vez: nos regia um capitão que trazia ferimentos por ocasião de sua primeira agonia.
Senhores, que capitão o capitão daquele dia!
E. MARQUINA, Em Flandres o sol se pôs

1.
A TAVERNA DO TURCO
Não era o homem mais honesto nem o mais piedoso, mas era um homem valente. Chamava-se Diego Alatriste y Tenorio e lutara como soldado dos terços velhos nas guerras de Flandres. Quando o conheci, ele sobrevivia a duras penas em Madri, alugando-se por quatro maravedis em trabalhos de pouco lustre, freqüentemente como espadachim por conta de terceiros que não tinham a destreza ou o arrojo suficiente para sustentar suas próprias querelas. O de sempre: um marido cornudo aqui, um pleito ou uma herança duvidosa ali, dívidas de jogo pagas pela metade e mais alguns et ceteras. Agora é fácil criticar; mas naquele tempo a capital das Espanhas era um lugar onde se ganhava a vida aos solavancos, pelas esquinas, entre o brilho de dois aços. Em tudo isso Diego Alatriste se desempenhava com perícia. Tinha muita destreza na hora de puxar a espada e manuseava ainda melhor, com a malícia da canhota, aquela adaga estreita e comprida chamada por alguns de vizcaína, que os pelejadores profissionais usam muitas vezes como auxílio. Uma de cal e outra de vizcaína, dizia-se. Enquanto o adversário estava ocupado dando e desviando estocadas com fina esgrima, de repente lhe vinha de baixo, nas tripas, uma facada curta como um relâmpago que não lhe dava tempo nem de pedir confissão. Sim. Já disse a vossas mercês que eram tempos duros.
O capitão Alatriste, portanto, vivia da sua espada. Pelo que sei, a designação capitão era mais um apelido que um posto efetivo. A alcunha vinha do passado: de quando, lutando como soldado nas guerras do rei, certa noite teve que atravessar um rio gelado com vinte e nove companheiros e um capitão de verdade, imaginem a cena, viva a Espanha e essas coisas, todos com a espada entre os dentes e em mangas de camisa para se confundirem com a neve, a fim de surpreender um destacamento holandês. Que era o inimigo da época, porque pretendiam proclamar-se independentes, os ingratos. O fato é que afinal conseguiram, mas antes nós os apoquentamos bastante. Voltando ao capitão, a idéia era agüentar ali, na margem de um rio, ou um dique, ou o que diabos fosse, até que ao alvorecer as tropas do rei nosso senhor lançassem um ataque para se unir a eles. Resultado, os hereges foram devidamente apunhalados sem ter tempo de piscar os olhos. Estavam dormindo como marmotas, e nisso os nossos saíram da água precisando se aquecer e venceram o frio mandando hereges para o inferno, ou seja lá onde for que vão parar esses malditos luteranos. O problema é que depois chegou a alvorada, e avançou a manhã, e o outro ataque espanhol não aconteceu. Coisas, contaram depois, de ciúmes entre mestres-de-campo e generais. A verdade é que os trinta e um ficaram ali abandonados à própria sorte, entre blasfêmias, pelas vidas de e rogos a tal, cercados de holandeses dispostos a vingar a degola de seus camaradas. Mais perdidos que a Invencível Armada do bom rei dom Felipe o Segundo. Foi um dia longo e duríssimo. E, para que vossas mercês tenham uma idéia, apenas dois espanhóis conseguiram regressar à outra margem quando a noite caiu. Diego Alatriste era um deles, e como havia comandado a tropa durante aquele dia inteiro - o capitão de verdade fora posto fora de combate logo na primeira escaramuça, com dois palmos de aço saindo pelas costas -, ficou com o apelido, mesmo sem ter desfrutado do emprego. Capitão por um dia, de uma tropa sentenciada à morte que passou desta para a melhor vendendo cara a própria pele, um atrás do outro, com o rio às suas costas e blasfemando em bom castelhano. Coisas da guerra e da voragem. Coisas da Espanha.
Enfim. Meu pai foi o outro soldado espanhol que se salvou naquela noite. Chamava-se Lope Balboa, era guipuzcoano e era também um homem valente. Dizem que Diego Alatriste e ele haviam sido ótimos amigos, quase como irmãos; e deve ser verdade, porque depois, quando mataram meu pai com um tiro de arcabuz num baluarte de Jülich - e por isso mais tarde Diego Velásquez não o incluiu no quadro da tomada de Breda como fez com seu amigo e xará Alatriste, que está lá, atrás do cavalo -, este jurou que cuidaria de mim quando eu crescesse. Foi esse o motivo que fez minha mãe, antes de eu completar meus treze anos, enfiar uma camisa, umas calças, um rosário e uma côdea de pão numa trouxa e me mandar vir morar com o capitão, aproveitando a viagem de um primo dela a Madri. Foi assim que comecei a servir, meio criado, meio pajem, ao amigo do meu pai.
Uma confidência: duvido que a autora dos meus dias, se o conhecesse bem, tivesse me enviado tão alegremente para servi-lo. Mas suponho que o título de capitão, ainda que apócrifo, dava ao personagem um verniz de honorabilidade. Além disso, minha pobre mãe não estava bem de saúde e tinha mais duas filhas para alimentar. Assim, tirava uma boca da mesa e me dava a oportunidade de tentar fortuna na Corte. De modo que me despachou com o primo sem se preocupar em saber mais detalhes, junto com uma extensa carta, escrita pelo padre da nossa aldeia, em que ela recordava a Diego Alatriste seus compromissos e sua amizade com o falecido. Lembro que comecei a servi-lo pouco depois de sua volta de Flandres, porque uma ferida feia que tinha no flanco, produzida em Fleurus, ainda era recente e lhe causava fortes dores; e eu, recém-chegado, tímido e assustadiço como um camundongo, ouvia de noite, no meu enxergão, seus passos para cima e para baixo no quarto, incapaz de conciliar o sono. E às vezes o ouvia cantarolando em voz baixacoplas entrecortadas por acessos de dor, versos de Lope, uma maldição ou um comentário em voz alta para si mesmo, entre resignado e quase divertido com a situação. Aquilo era muito típico do capitão: encarar cada um de seus males e desgraças como uma espécie de peça inevitável que um velho conhecido de perversas intenções lhe pregava de vez em quando para divertir-se. Talvez fosse essa a causa de seu peculiar senso de humor, áspero, imutável e desesperado.
Já passou muito tempo e eu me atrapalho um pouco com as datas. Mas a história que vou contar deve ter ocorrido mais ou menos em mil seiscentos e vinte e tantos. É a aventura dos mascarados e dos dois ingleses, que deu muito o que falar na Corte, e na qual o capitão não só esteve prestes a perder a pele toda remendada que conseguira salvar de Flandres, do turco e dos corsários berberes, como ainda lhe custou um par de inimigos que o acossariam pelo resto da vida. Estou me referindo ao secretário do rei nosso senhor, Luis de Alquézar, e ao seu sinistro sequaz italiano, aquele espadachim calado e perigoso que se chamava Gualterio Malatesta, tão acostumado a matar pelas costas que, quando por acaso o fazia de frente, caía em profundas depressões, imaginando que estava perdendo suas faculdades. Também foi o ano em que me apaixonei como um bezerro desmamado e para sempre por Angélica de Alquézar, perversa e malvada como só pode ser o Mal encarnado numa menina loura de onze ou doze anos. Mas cada coisa contaremos em seu tempo.

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