Marçal Aquino
Comprou um disco dos Beatles, colocou na vitrola e passou a tarde inteira ouvindo. Só parou às seis, para escutar a Ave-Maria nos alto-falantes da igreja. Naquela época, sua namorada ainda não fabricava bombas de encomenda para explodir livros-de-ponto. Ela usava cabelos compridos, esmalte vermelho nas unhas roídas e ensaiava Ionesco com um grupo de mímicos, num porão perto do centro. Naquele triste ano de 72, não chupou nenhuma manga, coisa que gostava muito de fazer. Na repartição onde trabalhava, um retrato do presidente mofava na parede por causa da umidade – o rosto se tornando verde e a farda ficando azul. Fumava cigarros sem filtro naquele tempo. Ah, aquele tempo: Brasil arme-se ou deixe-o. Um dia viu toda a família dançando aos pares no cabaré mais suspeito da cidade. Mas, tinha certeza, fora uma alucinação – afinal, sua mãe já havia morrido fazia mais de dez anos. Que é fogo ter irmã prostituta, é. O cara chega aqui no meio da tarde, fedendo a cachaça, um calor danado, e fica lá no quarto com a Sandra, que ele chama de Tânia, e só sai, sem camisa, pra perguntar se tenho um cigarro. Eu aqui na sala, olhando pro jornal, mas sem ler uma palavra. O pai está cego, na cama. E meio doido também. Uma madrugada dessas, ele acordou berrando: “Getúúúlio”. Só parou quando minha irmã foi até lá e recitou-lhe um legítimo Camões. Não se falavam desde a época do aborto. Coisa que não entendo é essa rapaziada de hoje: tem um cara lá no bar do tio que está tomando cerveja e jogando baralho faz umas duas horas e dizendo que ali não tem homem para ele. Acho que não tem mesmo. Eu vim embora porque detesto palhaçada. E esse tipo de coisa costuma acabar mal. Sábado besta, esse: as meninas de rabo-de-cavalo passam a caminho do clube, onde vão molhar seus corpos e tomar sol. Acendo um cigarro. Olho o retrato de casamento dos meus pais. É isso: uma ilha de cada lado no meio de um oceano nada pacífico. Saio e vou ver Isabel. Quem sabem, um dia desses, não dou um tiro num.
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