sábado, 1 de outubro de 2011

TRECHOS de João Gilberto Noll

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“…NEM O MEU PASSADO, NÃO, NÃO QUEIRA ME SABER ATÉ AQUI, DIGAMOS QUE TUDO COMEÇA NESTE INSTANTE ONDE ME ABSOLVO DE TODA DOR JÁ TRANSPASSADA E SEM NENHUM RESSENTIMENTO TUDO COMEÇA A CONTAR DE AGORA, MESMO QUE SOBRE A BORRA QUE AINDA FISGA O MEU PRESENTE, NEM ESSA BORRA, NADA,…”

“…ME FERE ACEITAR QUE NÃO ESCONDO DE MIM NEM DE VÓS (QUEM SOIS,…E SOIS?…) O MEU TRAJETO CHEIO DE RECUOS, PARADAS, SÍNCOPES, ACELERAÇÕES, ANSEIOS FORA DO AR, ADMITO SER EXTRAVIO ÀS VEZES, INEXISTENTE ATÉ, QUEM SABE EXISTENTE MAS JÁ MORTO. RECORRO ÀS RUÍNAS DE UM ESPELHO QUE ENCONTRO PELO CHÃO, AINDA NÃO SOU O ANCIÃO QUE PRESUMO QUE MEREÇO, AINDA NÃO GALGUEI POR INTEIRO MINHA SUBMISSÃO AO TEMPO, AINDA NÃO DOBREI O SUFICIENTE MEU JOELHOS EM ADORAÇÃO AO MISTÉRIO VIVO,…” (A fúria do Corpo, 1981)

“Diz que o problema é a perda do pensamento totalizante. Pergunto a João o que é o pensamento totalizante. Sinto João se impacientar além da conta. A bunda na ponta da cadeira,  morde a base do indicador como se quisesse arrancar o dedo. Começa a parecer as três mulheres de Boston… João abre a mão contra a lâmpada e diz que o pensamento totalizante é aquele que aspira à totalidade das instâncias humanas. Pergunto qual a garantia de se ter aspirado a mais instâncias do que o pensamento A ou B ou C. João responde que ando bebendo muito, que eu vá dormir que faz bem a um escritor desiludido…” (Bandoleiros. 1985)

  E eu alguma vez tinha aderido às coisas da terra? Senti um calafrio, como se uma nuvem tivesse passado por dentro do meu corpo, gelada e instantânea. Eu andara esses anos todos por aí, e que história pessoal eu poderia contar? Por essa geografia rarefeita quem tinha gerado comigo alguma memória duradoura? E sair pelo mar, pensei, para mim é tarde demais. Os meus músculos estavam combalidos, e o pior: eu me esquecera de exercitá-los. E a faina de um navio era mexer com cordas, mastros, máquinas escaldantes, e a você o tempo todo a conviver com toneladas, obrigado a vencer terríveis tempestades. Olhei o braço do garoto e imaginei o músculo que ele iria criar. Raciocinei se não era o caso de deixar aquele garoto seguir sozinho, ali, antes de atravessarmos a avenida à beira do cais eu deveria lhe dizer que tinha vindo a Porto Alegre para resolver uma questão muito urgente e que eu não poderia me atrasar. Ele talvez me olhasse sem entender que alguém pudesse resolver alguma questão muito urgente numa terça-feira de carnaval. É isso aí, falei: eu posso estar em Porto Alegre para me apresentar à polícia, ou quem sabe fugindo dela, eu posso estar aqui para fechar um negócio para hoje, ou recomeçar um amor da vida inteira, essas historias e muitas outras são plausíveis numa Terça-Feira Gorda porque a pausa é só aparente: a mão conspiradora continua a conspirar, assinam-se planos, selam-se afinidades eternas. O garoto respondeu que quando ele vier a Porto Alegre no futuro não terá uma única questão urgente a resolver. Por aqui estão todas resolvidas, ele completou. (Rastros do Verão. 1986)

Monte de Leituras.

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