domingo, 2 de outubro de 2011

E paz na terra aos homens de boa vontade

Fausto Salvadori

Dore

Algumas datas são especiais.
A gente gosta de acreditar que a desgraceira que nos rodeia durante todo o ano deveria tirar folga em algumas datas, como Natal, Páscoa, Ano Novo. Por causa da misericórdia de Deus, que naqueles dias olharia para baixo envergonhada do péssimo serviço que fez. Por causa da esperança. Por causa dos astros. Por causa dos perus sacrificados, do Papai Noel, dos comerciais de Coca-Cola, do Roberto Carlos, sei lá.
25 de dezembro é uma data especial. Não é o dia para interrogar um homem suspeito de tentar estuprar uma menina de quatro anos. Esse tipo de merda acontece todo dia, mas não deveria ser assim numa data especial.
Acima de tudo, é preciso evitar o trauma da criança. Ela ainda não sabe exatamente o que aconteceu com ela. Aquela menina esperta, que brinca de esconde-esconde com a soldado na sala do delegado, só sabe que um vizinho entrou no seu barraco, quando ela estava sozinha. Que, uma vez ali, aquele "homem ruim" a arrastou para a cama, arrancou sua calcinha com os dentes e que ia tentar fazer alguma outra coisa com ela. E que só não fez porque o seu tio entrou em casa e mandou o "homem ruim" embora.
A soldado vai ao barraco e confirma: caída atrás da cama, está a minúscula calcinha rasgada. Ela e os colegas conseguem impedir a multidão de linchar o estuprador e o levam algemado. Antes de chegar à delegacia, os PMs conseguem fazê-lo confessar, usando uma técnica diferente da tradicional. Em vez do soco, o logro:
— Escuta — diz a soldado. — A casa caiu. A família já estava desconfiada de você e colocou uma filmadora na casa. Ela pegou tudo. Se você contar tudo o que fez, do jeito que está na fita, vai ser melhor para você.
O estuprador "se abre como uma rosa". Conta tudo. Do momento em que entrou no barraco de pau duro até a hora em que saiu correndo de lá. Na frente do delegado, ele repete tintim por tintim. E assina. Redondinho.
A criança também deve ser ouvida. Mas o trauma precisa ser evitado. Ela tem quatro anos, não pode perceber que está sendo ouvida pela polícia numa delegacia, e o que isso significa. A soldado olha em volta e vê os pacotes de presentes doados pela comunidade para ser distribuída pela PM. No meio deles, há um gorro de papai-Noel, que a policial resolve colocar na cabeça.
— Eu sou a Mamãe Noel — a soldado se apresenta à garotinha. — Aquele lá é o Papai Noel — e aponta o delegado.
— Rô, rô, rô — é a risada do delegado, atrás do computador. — Eu preciso falar com você, garotinha. Vou escrever uma carta para o Papai do Céu deixar aquele homem ruim de castigo. Eu preciso contar para o Papai do Céu o que ele fez. Rô, rô, rô.
Entre uma e outra pausa para brincar de esconde-esconde com a Mamãe Noel fardada e o Papai Noel sem barba, a menina vai contando, alegremente, como escapou de ser devorada pelo ogro.
Algumas datas são especiais.

Boteco sujo.

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