domingo, 2 de outubro de 2011

A MORTE E A MORTE DE ZÉ GALINHA

Fausto Salvadori

monstro

Poucas histórias foram tão bizarras quanto a do Zé Galinha de Itapevi, o que foi assassinado duas vezes. O ódio que despertou em vida foi tão grande que uma morte não foi o bastante para seus inimigos. Eles tiveram de matá-lo pela segunda vez, arrancar sua cabeça e arrastá-la pelas ruas.
Não que a razão de tanto ódio fosse um mistério:
- O Zé Galinha? - o policial se lembrava. - O Zé Galinha era um pé de pato.
- Mas isso já tá virando uma granja...
"Pé de pato" é o apelido dos matadores de bandidos, categoria profissional que ganha até dos estupradores e X-9 (cagüetas) na lista dos mais detestados pela malandragem.
A primeira morte de Zé Galinha foi em sua casa, com cinco tiros. Já estava enterrado há dez dias quando dois homens invadiram o cemitério armados e fizeram cinco reféns. Os bandidos apontaram o revólver para a cabeça de uma servente, encarregada de preparar os cafezinhos dos velórios, e ameaçaram matá-la se não fosse obedecidos. Os outros quatro (um guarda municipal, um coveiro, um motorista e seu ajudante) resolveram entregar o que os bandidos queriam.
- Viemos buscar a cabeça de um pilantra - disseram. - Ele matou um amigo nosso.
O grupo passou pelo pórtico com a inscrição O que hoje sou amanhã serás e chegou ao jazigo da família Rodrigues, onde Zé Galinha estava sepultado. Com a mão no gatilho, um dos bandidos disse aos homens que arrebentassem as paredes do túmulo. Ainda havia flores sobre ele.
Dez dias. Por este tempo, segundo a medicina, o cadáver entra no período gasoso: a mancha verde que nasce no abdômen já se espalhou por outras partes e os gases da decomposição tomam conta de todo o corpo. É quando rosto, pescoço, barriga e órgãos genitais incham a níveis absurdos, olhos e língua saltam, o cu se abre e libera uma porção do intestino.
Era assim que Zé Galinha se mostrava. Depois de retirá-lo do túmulo, o guarda e os três funcionários foram obrigados a decepá-lo. Tentaram primeiro com uma pá, sem sucesso. Com facão e serrote, o grupo conseguiu remover a cabeça e entregá-la aos bandidos. Toda a ação levou cerca de duas horas. Os bandidos foram embora e largaram o troféu numa rua a um quilômetro do cemitério.
Os carrascos involuntários da segunda morte de Zé Galinha continuavam pálidos e de mãos trêmulas na delegacia, horas depois de abandonarem o cemitério. A cabeça já estava no rabecão, aguardando para ser periciada e depois novamente sepultada.
- Parece uma daquelas máscaras de filme de terror - comentou um PM, abrindo as portas do rabecão para dar uma "espiadinha básica". E para mim: - E aí, quer ver também?
- Não, obrigado.
Na época, eu tinha vergonha de assumir minha morbidez. Hoje, me arrependo de ter perdido a oportunidade de conhecer o rosto de Zé Galinha na sua segunda morte.

Longa jornada noite adentro.

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