Philip Roth
1. Newark Equatorial
O primeiro caso de poliomielite naquele verão foi registrado no começo de junho, logo depois do Memorial Day, feriado que marca o começo da estação, num bairro pobre de italianos do outro lado da cidade. Ali onde morávamos, numa área do sudoeste chamada Weequahic e ocupada por judeus, nada soubemos sobre isso nem sobre os outros doze casos espalhados por quase toda Newark e mais distantes da nossa vizinhança. Só por volta do feriado de Quatro de Julho, quando quarenta ocorrências já haviam sido registradas na cidade, apareceu na primeira página do jornal vespertino um artigo intitulado “Autoridade médica alerta os pais contra a poliomielite”, no qual o dr. William Kittell, superintendente do Conselho de Saúde, orientava os pais a observarem de perto seus filhos e a contatarem um médico se qualquer criança apresentasse sintomas tais como dor de cabeça, garganta inflamada, enjoo, pescoço enrijecido, dor nas articulações ou febre. Embora reconhecesse que quarenta casos eram mais que o dobro do número normalmente registrado nos primórdios da estação de pólio, o dr. Kittell fazia questão de deixar absolutamente claro que a cidade de 429 mil habitantes de forma nenhuma estava sofrendo de algo que pudesse ser caracterizado como uma epidemia da doença. Naquele verão, como em todos os outros, havia motivos de preocupação e era necessário tomar as precauções higiênicas de praxe, porém até o momento não se justificava o tipo de alarme, “perfeitamente compreensível”, que os pais haviam exibido vinte e oito anos antes, durante o maior surto da doença — a epidemia de pólio de 1916 no nordeste dos Estados Unidos, quando ocorreram mais de 27 mil casos e 6 mil mortes. Em Newark, haviam sido observados 1360 casos e 363 mortes.
No entanto, mesmo num ano em que o número de ocorrências se encontrava próximo à média e o risco de contrair a poliomielite era muito menor do que em 1916, uma doença capaz de causar paralisia, deixando uma criança aleijada para sempre ou incapaz de respirar fora de um cilindro de metal conhecido como pulmão de aço — isso quando a paralisia dos músculos respiratórios não levava à morte —, era causa de grande apreensão entre os pais em nossa vizinhança e prejudicava a paz de espírito das crianças que estavam livres da escola durante as férias de verão, podendo brincar do lado de fora o dia todo e aproveitar as longas horas do crepúsculo. A preocupação com as graves consequências de contrair uma forma séria da doença era ainda maior por não existir nenhuma droga capaz de combatê?la e nenhuma vacina que criasse imunidade contra ela. A poliomielite — ou paralisia infantil, como era chamada quando se pensava que atingia principalmente crianças bem pequenas — podia vitimar qualquer pessoa, sem nenhum motivo aparente. Embora as crianças e os jovens de até dezesseis anos fossem os mais vulneráveis, os adultos também podiam ser seriamente infectados, como aconteceu com o então presidente dos Estados Unidos.
Franklin Delano Roosevelt, a mais famosa vítima da poliomielite, era um homem vigoroso de trinta e nove anos quando contraiu a doença; posteriormente, precisava ser apoiado ao caminhar, além de usar pesados suportes de aço e couro, que iam dos tornozelos aos quadris, a fim de se manter de pé. A instituição de benemerência que Roosevelt criou enquanto ocupava a Casa Branca, a March of Dimes, tinha como objetivo angariar recursos para a pesquisa e ajuda financeira às famílias das vítimas; embora fosse possível a recuperação parcial ou até mesmo total, isso costumava exigir muitos meses ou anos de dispendiosas terapias hospitalares e exercícios de reabilitação. Durante as campanhas anuais de captação de fundos, os jovens americanos doavam moedas de dez centavos (dimes) nas escolas a fim de contribuir na luta contra a doença ou as depositavam em latas de coleta passadas pelos lanterninhas nos cinemas. Cartazes que anunciavam “Você também pode ajudar!” e “Ajude a combater a pólio!” eram vistos nas paredes das lojas e dos escritórios ou nos corredores das escolas de todo o país, assim como fotografias de crianças em cadeiras de rodas — uma menininha bonita usando suportes para as pernas e chupando o polegar com ar tímido, um garotinho de corpo bem?proporcionado com suportes nas pernas e rindo heroicamente numa demonstração de esperança —, cartazes que tornavam a possibilidade de contrair a doença parecer ainda mais assustadoramente real às crianças saudáveis.
Os verões eram muito quentes em Newark, situada numa área baixa. Como boa parte da cidade estava circundada por extensas regiões pantanosas — importante fonte de malária na época em que essa era, também, uma doença incurável —, havia mosquitos em profusão a serem enxotados ou esmagados com um tapa quando nos sentávamos à noite em cadeiras de praia nas ruelas e entradas de garagem buscando algum alívio fora dos apartamentos sufocantes onde só uma chuveirada fria e água gelada podiam mitigar o calor infernal. Antes da chegada do ar?condicionado domiciliar, um pequeno ventilador preto, posto sobre a mesa para refrescar minimamente a casa, de pouco servia quando a temperatura passava de trinta e cinco graus, como aconteceu naquele verão ao longo de semanas inteiras. Ao ar livre, as pessoas acendiam velas de citronela e aspergiam Flit para manter à distância os mosquitos e as moscas que eram sabidamente vetores de malária, febre amarela e febre tifoide — ou também da poliomielite, como muitos acreditavam (a começar pelo prefeito de Newark, Drummond, que lançou uma campanha cívica em prol da extinção das moscas). Quando uma mosca ou mosquito conseguia penetrar através das telas do apartamento ou entrava pela porta aberta, o inseto era obstinadamente perseguido com uma raquetinha mata?moscas ou uma lata de Flit devido ao receio de que, se aterrissasse com suas patinhas carregadas de germes numa das crianças que dormiam na casa, ela contrairia a poliomielite. Como naquele tempo ninguém conhecia a fonte do contágio, era possível suspeitar de quase tudo, inclusive dos esqueléticos gatos de rua que invadiam as latas de lixo nos quintais, dos vira?latas de aparência faminta que rondavam as casas e defecavam na rua e nas calçadas, e até mesmo dos pombos que arrulhavam nos telhados e emporcalhavam os degraus do alpendre com seus excrementos esbranquiçados. No primeiro mês do surto — antes que fosse reconhecido como uma epidemia pelo Conselho de Saúde —, o departamento de saúde pública se dedicou a exterminar sistematicamente a imensa população de gatos de rua da cidade, muito embora ninguém soubesse se eles tinham mais a ver com a poliomielite que os gatos domesticados.
O que todos sabiam é que a doença era altamente contagiosa e podia ser transmitida às pessoas saudáveis pela simples proximidade física com as já infectadas. Por isso, à medida que o número de casos foi aumentando na cidade — juntamente com o medo coletivo —, muitas crianças onde morávamos se viram proibidas pelos pais de usar a grande piscina pública do Parque Olímpico na vizinha Irvington, proibidas de frequentar os cinemas refrigerados nas redondezas e proibidas de tomar o ônibus para ir ao centro ou à avenida Wilson ver os Newark Bears, nosso time de beisebol da segunda divisão, jogar no Estádio Ruppert. Fomos advertidos a não utilizar banheiros ou bebedouros públicos, não tomar nem um gole da garrafa de refrigerante de algum amigo, não apanhar friagem, não brincar com estranhos, não pegar livros emprestados na biblioteca, não falar nos telefones pagos, não comprar comida de vendedores de rua ou comer antes de lavar as mãos cuidadosamente com água e sabonete. Precisávamos lavar todas as frutas e verduras antes de comê-las e devíamos ficar longe de quem parecesse doente ou se queixasse de qualquer dos sintomas típicos da poliomielite.
Considerava?se que uma criança estaria mais protegida da doença se escapasse inteiramente do calor da cidade ao ser mandada para uma colônia de férias no interior ou nas montanhas. Ou se passasse o verão a cem quilômetros de distância, na costa de Jersey. As famílias que podiam arcar com tais despesas alugavam um quarto com direito ao uso da cozinha numa pensão na praia Bradley, uma faixa de areia com um calçadão de tábuas à beira?mar e casas de veraneio, de um quilômetro e meio de extensão, que havia décadas atraía os judeus do norte de Jersey. Lá, mães e filhos iam à praia para respirar o ar fresco e revigorante do oceano durante toda a semana, com os pais se juntando a eles nos fins de semana e nas férias. Naturalmente, havia casos de pólio nos campos de verão e nas cidadezinhas litorâneas, mas, como ocorriam em número muito inferior aos verificados em Newark, generalizou-se a crença de que o ambiente urbano, com as calçadas sujas e o ar parado, facilitava o contágio, enquanto a melhor garantia de escapar à doença podia ser encontrada perto do mar, no campo ou nas montanhas.
Assim, uns poucos privilegiados bafejados pela sorte desapareceram da cidade durante o verão, enquanto o resto da turma ficou para trás a fim de fazer exatamente o que não devíamos, pois se suspeitava que o “esforço excessivo” era outra possível causa da poliomielite: jogávamos uma partida após a outra de beisebol no asfalto escaldante do pátio de recreio da escola, correndo o dia inteiro no calor abrasador, matando a sede com sofreguidão no bebedouro proibido, nos acotovelando num banco nos intervalos, segurando no colo as luvas gastas e encardidas com que no campo enxugávamos o suor da testa para impedir que ele caísse em nossos olhos — fazendo palhaçadas, gozando uns dos outros, envergando nossas camisas empapadas e os tênis malcheirosos, sem dar bola para o fato de que tal imprudência poderia condenar qualquer um de nós à prisão perpétua no pulmão de aço e transformar em realidade os medos mais terríveis do corpo.
Só uma dúzia de garotas frequentava o pátio, quase todas meninas de oito ou nove anos que costumavam ficar pulando corda numa ruela fechada ao trânsito que servia como limite para a parte central do campo de beisebol. Quando não estavam pulando corda, brincavam de amarelinha, corriam de um lado para o outro ou quicavam alegremente uma bola de borracha vermelha durante horas. Às vezes, quando eram usadas duas cordas, cada qual girando numa direção, um dos meninos corria sem ser chamado e, empurrando a garota que estava prestes a pular, se enroscava de propósito nas cordas imitando aos berros a cantoria com que elas acompanhavam os saltos. “H, meu nome é Hipopótamo!” “Para! Para!”, elas gritavam, pedindo a ajuda do fiscal do pátio, que só precisava berrar de onde estava para o bagunceiro (quase sempre o mesmo): “Pare com isso, Myron! Deixe as meninas em paz ou vou mandar você para casa!”. Dito isso, tudo se acalmava. Em breve, as cordas mais uma vez estalavam no ar, a cantoria recomeçava, e cada uma que saltava ia dizendo:
A, meu nome é Agnes
Meu marido é o Alfonso,
Nascemos no Alabama
E comemos ananás!
B, meu nome é Bev
Meu marido é o Bill,
Nascemos nas Bermudas
E comemos beterraba!
C, meu nome é...
Com suas vozes infantis, as garotas que faziam ponto na extremidade do pátio improvisavam variantes de A a Z, voltando ao início e começando outra vez, aliterando as palavras ao final de cada verso, em alguns casos com tiradas absurdas. Saltando e disparando para lá e para cá, sempre muito animadas — exceto quando Myron Kopferman e outros como ele as perturbavam de modo grosseiro —, elas exibiam uma energia fabulosa: caso não fossem chamadas pelo fiscal do pátio para irem se proteger do calor na sombra da escola, não arredavam pé da ruela desde a sexta?feira de junho em que terminava o período escolar da primavera até a terça?feira após o Dia do Trabalho, quando tinha início o outono e elas só podiam pular corda depois das aulas ou durante os recreios.
Naquele ano, o fiscal do pátio era Bucky Cantor. Muito míope, usava óculos de lentes grossas e, por isso, era um dos poucos jovens que não estavam lutando na guerra. Desde o último ano escolar, o sr. Cantor dava aulas de educação física na escola da avenida Chancellor e, portanto, conhecia muitos dos meninos que frequentavam o pátio, por já serem seus alunos de ginástica. Tinha então vinte e três anos, havendo estudado no South Side, um colégio ginasial de Newark que recebia alunos de várias raças e religiões, e na Universidade Panzer de Educação Física e Higiene, em East Orange. Media pouco menos de um metro e sessenta e cinco e, conquanto fosse um grande atleta e tivesse imensa garra, sua altura, combinada à miopia, o impedira de jogar futebol, beisebol ou basquete em nível universitário, limitando sua participação nos torneios intercolegiais ao arremesso de dardo e ao levantamento de peso. Encimando o corpo compacto, havia uma cabeça de bom tamanho, com elementos claramente enviesados: maçãs do rosto largas e salientes, testa quase a prumo, queixo angular e o nariz reto e comprido com uma protuberância na parte superior que dava a seu perfil a nitidez de uma dessas silhuetas gravadas em moedas. Os lábios grossos eram tão bem definidos quanto seus músculos e sua pele permanecia bronzeada o ano inteiro. Desde a adolescência usara o cabelo cortado à escovinha, no estilo militar. Esse corte destacava ainda mais suas orelhas, não por elas serem anormalmente grandes, o que não era o caso, nem por estarem tão coladas à cabeça, mas porque, vistas de lado, exibiam um formato muito semelhante ao do ás de espadas do baralho ou ao das asas nos pés das figuras mitológicas, com as partes superiores quase pontiagudas em vez de redondas como na maioria das orelhas. Antes que seu avô o apelidasse de Bucky, durante algum tempo chegou a ser chamado de Ás pelos amigos de rua, nem tanto por sua maestria precoce nos esportes, mas pela configuração incomum das orelhas.
Os planos enviesados de seu rosto tornavam ainda mais fundos, por trás das lentes, os olhos de um cinza esfumaçado — olhos compridos e estreitos como os de um asiático, que pareciam ocupar verdadeiras crateras em seu crânio. Surpreendentemente, a voz que emergia desse rosto delineado com tamanha precisão era bastante aguda, o que não reduzia, porém, a força de sua aparência. Ele tinha o rosto admiravelmente resoluto, fundido em ferro e resistente às intempéries, de um jovem robusto em quem se podia confiar.
Certa tarde, no começo de julho, dois carros cheios de italianos do ginásio East Side, rapazes entre quinze e dezoito anos, estacionaram no alto da rua residencial que contornava os fundos do pátio de recreio. O East Side ficava no bairro de Ironbound, uma área de fábricas e cortiços onde até então havia sido registrado o maior número de casos de pólio. Tão logo o sr. Cantor os viu, largou a luva no chão — ele defendia a terceira base numa de nossas peladas — e deu uma corridinha até o lugar onde se encontravam os dez estranhos saídos dos carros. Seu estilo atlético de correr, com os pés virados para dentro, era imitado por todos os garotos que frequentavam o pátio,
como também o modo decidido de elevar ligeiramente o corpo quando se movia quase na ponta dos pés e o leve balanço dos ombros musculosos ao andar. Toda a sua postura se tornara um modelo para alguns dos garotos tanto dentro quanto fora do campo de beisebol.
“O que é que vocês querem aqui?”, perguntou o sr. Cantor.
“Estamos espalhando pólio”, um dos italianos respondeu, o primeiro a sair do carro com ares de valentão. “Não é mesmo?”, disse, voltando-se num gesto de bazófia para os companheiros agrupados às suas costas, que, segundo a avaliação imediata do sr. Cantor, estavam loucos para começar uma briga.
“Acho que vocês estão querendo espalhar é confusão”, o sr. Cantor respondeu. “Por que não vão embora daqui?”
“Não, nada disso”, o tal italiano insistiu, “só depois de espalhar um pouco de pólio. Temos muito lá e vocês não têm nada aqui, por isso pensamos em vir espalhar um pouquinho.” Enquanto falava, se balançava para a frente e para trás a fim de mostrar como era durão. Os polegares enfiados atrevidamente nos passadores do cinto, assim como seu olhar, serviam para sinalizar o desprezo que sentia.
“Sou o fiscal do pátio de recreio”, disse o sr. Cantor, apontando por cima do ombro para nós. “Estou pedindo que vocês saiam de perto do pátio. Vocês não têm nada para fazer aqui e estou pedindo com toda a gentileza que saiam. Entendido?”
“E desde quando há uma lei contra espalhar pólio, senhor Fiscal do Pátio?”
“Olhe, a pólio não é nenhuma brincadeira. E há uma lei contra a perturbação da ordem pública. Não quero ser obrigado a chamar a polícia. Que tal irem saindo por conta própria antes que eu peça à polícia para levar vocês daqui?”
Em resposta, o líder do bando, que certamente tinha uns quinze centímetros a mais que o sr. Cantor, deu um passo à frente e cuspiu no chão. Deixou uma ostra de saliva viscosa a alguns centímetros de distância do tênis do sr. Cantor.
“O que você quer com isso?”, perguntou o sr. Cantor. Sua voz ainda era calma e, com os braços cruzados bem junto ao peito, ele se mantinha tão imóvel quanto uma estátua. Nenhum brigalhão de Ironbound ia levar a melhor contra ele ou chegar perto dos seus meninos.
“Já te falei. Estamos espalhando pólio. Não queremos que gente igual a vocês fique de fora.”
“Olhe, gente igual a nós é o cacete”, disse o sr. Cantor, dando um passo raivoso à frente e ficando cara a cara com o italiano. “Você tem dez segundos para dar meia?volta e se mandar daqui.”
O italiano sorriu. Na verdade, não havia parado de sorrir desde que saíra do carro. “E se a gente não sair?”
“Já disse. Vou chamar a polícia para levar vocês e fazer com que não voltem.”
Nesse momento, o italiano voltou a cuspir, agora bem juntinho a um dos tênis do sr. Cantor, que se dirigiu ao garoto que estava esperando para dar a tacada no jogo e, como todos nós, observava em silêncio enquanto ele enfrentava os dez italianos. “Jerry”, disse o sr. Cantor, “corra até o meu escritório. Telefone para a polícia. Diga que você está chamando porque eu pedi. Diga que eu preciso que eles venham aqui.”
“O que é que eles vão fazer, me prender?”, perguntou o chefe do grupo. “Vão me botar em cana porque cuspi na calçada aqui neste bairro maravilhoso? Você também é o dono da calçada, quatro-olhos?”
O sr. Cantor não respondeu, continuou plantado entre os meninos que haviam parado de jogar beisebol no campo asfaltado atrás dele e o monte de italianos que tinham descido dos dois carros. Ainda de pé na rua em frente ao pátio, cada um deles parecia prestes a jogar fora o cigarro que fumava e sacar uma arma. Mas quando Jerry voltou do escritório do sr. Cantor situado no porão — onde, como fora instruído, telefonara para a polícia —, os dois carros e seus agourentos ocupantes já haviam partido. Alguns minutos depois, o carro de patrulha chegou e o sr. Cantor deu aos policiais os números das duas placas que memorizara durante a confrontação. Só depois que a polícia foi embora os meninos, que haviam se mantido atrás da cerca, começaram a ridicularizar os italianos.
Havia saliva espalhada por toda a área da calçada onde os italianos tinham se congregado, uns dois metros quadrados de gosma úmida e nojenta que sem dúvida parecia ser um excelente caldo de cultura para a doença. O sr. Cantor pediu que dois meninos fossem até o porão da escola, trouxessem do quarto do zelador água quente e amônia e as derramasse na calçada até limpar toda a porcaria. O trabalho dos garotos fez com que o sr. Cantor se lembrasse de como precisara fazer uma limpeza semelhante após matar um rato nos fundos da mercearia do avô quando tinha dez anos de idade.
“Não há razão para se preocuparem”, disse o sr. Cantor aos meninos. “Eles não vão voltar. A vida é assim mesmo”, continuou, usando uma das frases prediletas do avô, “tem sempre alguma coisa esquisita acontecendo.” Dito isso, retornou ao campo e o jogo recomeçou. Os garotos, observando tudo por trás do alambrado de dois andares de altura que cercava o pátio, tinham ficado muito impressionados com o modo como o sr. Cantor confrontara os italianos. Seu jeito confiante e decidido, sua força de halterofilista, sua participação cotidiana e entusiástica em nossas partidas de beisebol — tudo isso já havia causado admiração na turma que comparecia regularmente ao pátio desde o dia em que ele se apresentou como fiscal. Mas após o incidente com os italianos ele se tornou um verdadeiro herói, idolatrado como um irmão mais velho e protetor, sobretudo para aqueles cujos próprios irmãos lutavam na guerra.
Alguns dias mais tarde, não apareceram para jogar dois dos meninos que estavam no pátio quando os italianos vieram. Pela manhã, ambos haviam acordado com febre alta e o pescoço enrijecido, e já na noite seguinte — tendo perdido gradualmente a força nos braços e pernas e respirando com dificuldade — foram levados às pressas de ambulância para o hospital. Um deles, Herbie Steinmark, era um aluno da oitava série gorducho, desajeitado e amigável que, devido a sua incompetência atlética, costumava jogar como jardineiro direito e bater por último; o outro, Alan Michaels, também da oitava série, era um dos dois ou três melhores atletas do pátio e o que criara a relação mais próxima com o sr. Cantor. Herbie e Alan foram as duas primeiras vítimas da doença na vizinhança. Nas quarenta e oito horas seguintes, foram registrados outros onze casos e, embora nenhum envolvesse meninos que haviam estado no pátio naquele dia, tornou-se voz corrente em Weequahic que a doença havia sido trazida pelos italianos. Uma vez que, até então, no bairro deles tinha ocorrido o maior número de casos, contra nenhum em nossas redondezas, firmou-se a convicção de que, tal como os próprios italianos haviam declarado, eles atravessaram a cidade naquela tarde com a intenção de infectar os judeus com a poliomielite — e haviam
obtido êxito.
Como a mãe de Bucky Cantor morrera no parto, ele foi criado pelos avós maternos numa casa de cômodos que abrigava doze famílias na rua Barclay, perpendicular à parte baixa da avenida Avon, numa das áreas mais pobres da cidade. Seu pai, do qual herdara a miopia, era guarda?livros de uma grande loja de departamentos no centro da cidade e exibia uma paixão incomum pelas apostas nas corridas de cavalo. Pouco após a morte de sua mulher e o nascimento do filho, foi condenado por roubar da firma a fim de cobrir as dívidas de jogo — tendo se verificado que ele vinha furtando desde o primeiro dia no trabalho. Passou dois anos na prisão e, depois de solto, nunca retornou a Newark. Em vez de ter um pai, o menino, que se chamava Eugene, aprendeu tudo que precisava para viver com o avô, que mais parecia um urso e dava duro de sol a sol na mercearia da avenida Avon, onde ele também trabalhava depois das aulas e aos sábados. Tinha cinco anos quando o pai, casado pela segunda vez, contratou um advogado para fazer com que o filho fosse viver com ele e a nova mulher em Perth Amboy, onde arranjara um emprego nos estaleiros. O avô, em vez de contratar seu próprio advogado, pegou o carro e foi até Perth Amboy, onde ocorreu uma confrontação durante a qual, ao que se dizia, ele ameaçara quebrar o pescoço do ex?genro caso ousasse tentar interferir de qualquer modo na vida do menino. Depois disso, nunca mais se ouviu falar do pai de Eugene.
Foi por carregar caixotes cheios de frutas e legumes na loja com o avô que ele começou a desenvolver a musculatura do peito e dos braços, enquanto o fato de subir e descer correndo inúmeras vezes por dia os três andares de escadas até o apartamento onde morava fortaleceu suas pernas. E foi com a intrepidez do avô que ele aprendeu a enfrentar qualquer obstáculo, inclusive ser filho de um homem que o avô nunca deixou de descrever como um “sujeito sem caráter”. Desde garoto quis ser fisicamente forte, tal qual o avô, e não ter de usar óculos de lentes grossas. Mas sua visão era tão ruim que, quando tirava os óculos à noite para se deitar, mal conseguia distinguir a forma dos poucos móveis em seu quarto. O avô, que jamais se importara com suas próprias deficiências, ensinou ao menino infeliz, quando ele pela primeira vez pôs os óculos aos oito anos, que seus olhos eram agora tão bons quanto os de qualquer outra pessoa. Depois disso, nunca mais foi necessário falar sobre o assunto.
Sua avó era uma mulherzinha carinhosa e de bom coração, um contrapeso positivo e seguro para o avô em termos de educação familiar. Enfrentava com bravura as adversidades, embora seus olhos ficassem marejados quando se mencionava a filha de vinte anos que morrera no parto. Os fregueses da mercearia gostavam muito dela e, em casa, onde suas mãos jamais estavam em repouso, ela seguia, sem dedicar atenção total, a novela radiofônica A vida pode ser bonita e outras do gênero, que a atraíam porque o ouvinte ficava sempre sobressaltado, sempre nervoso, à espera do próximo infortúnio. Nas poucas horas do dia em que não estava ajudando na mercearia, devotava?se por inteiro ao bem?estar de Eugene, cuidando dele quando teve sarampo, caxumba e catapora, certificando-se de que suas roupas estavam sempre limpas e sem rasgões, de que a lição de casa havia sido feita, de que seus boletins escolares tinham sido assinados, de que ia ao dentista com regularidade (o que acontecia com poucas crianças pobres naquela época), de que a comida que cozinhava para ele era saudável e em quantidade suficiente, de que estavam pagas as contribuições para a sinagoga aonde Eugene ia após as aulas a fim de estudar hebraico como parte da preparação do bar mitzvah. Exceto pelas três enfermidades infecciosas comuns a quase todas as crianças, o garoto exibia uma saúde perfeita, dentes fortes e regulares, uma sensação física de bem?estar que sem dúvida tinha a ver com a forma pela qual ela cuidara dele como uma mãe, tentando fazer tudo que, naqueles dias, se imaginava ser bom para uma criança em fase de crescimento. Ela e o marido raramente brigavam — cada qual sabia a função que lhe cabia e como melhor executá-la, fazendo isso com um entusiasmo cujo exemplo certamente não passou despercebido ao jovem Eugene.
O avô acompanhou o desenvolvimento da masculinidade do garoto, sempre pronto a eliminar qualquer fraqueza que pudesse ter sido herdada — juntamente com a miopia — do pai natural, ensinando?lhe que todos os atos de um homem devem estar imbuídos de responsabilidade. A dominação exercida pelo avô não era fácil de suportar o tempo todo, porém, quando Eugene correspondia às suas expectativas, também não faltavam elogios. Certa vez, quando tinha dez anos, deu de cara com um grande rato cinzento no sombrio depósito nos fundos da loja. Já escurecera do lado de fora quando viu o rato entrando e saindo de uma pilha de caixas de verduras que ele havia ajudado o avô a esvaziar. Naturalmente, seu primeiro impulso foi correr. Em vez disso, sabendo que o avô estava na parte da frente com um freguês, buscou num canto a pesada pá que vinha aprendendo a usar para cuidar da fornalha que aquecia a loja.
Prendendo a respiração, avançou na ponta dos pés até encurralar num canto o rato em pânico. Quando levantou a pá, o rato se ergueu sobre as patas traseiras e, rangendo os dentes, se preparou para saltar. No entanto, antes que pudesse sair do chão, o menino arriou velozmente a parte de baixo da pá, esfacelando o crânio do roedor. Sangue misturado a fragmentos de ossos e cérebro penetraram nas fissuras entre as tábuas do assoalho do depósito depois que, não tendo conseguido suprimir completamente uma súbita ânsia de vômito, ele usou a pá para recolher o animal morto. Era pesado, mais do que poderia ter imaginado, parecendo maior e mais comprido na lâmina da pá do que quando se erguera sobre as patas traseiras. Estranhamente, nada — nem mesmo a cauda sem vida e os quatro pés imóveis — dava a impressão de estar tão morto quanto os pares de bigodes, tão finos quanto agulhas e manchados de sangue. Ao brandir a arma, não notara os bigodes, só havia registrado as palavras “Mata ele!” como se formuladas em seu cérebro pelo avô. Esperou até que o freguês houvesse partido com seu saco de verduras e só então, segurando a pá bem à sua frente — e mantendo o rosto inexpressivo para mostrar como não se deixara perturbar —, atravessou a loja com o rato morto a fim de exibi?lo ao avô antes de sair porta afora. Na esquina, deixando a carcaça escorregar da pá, enfiou?a pelo bueiro de ferro para dentro do esgoto. Voltou à mercearia e, com uma escova, sabão de pedra, pedaços de pano e um balde de água, limpou seu próprio vômito e os restos do rato no chão e na lâmina da pá.
Foi após esse triunfo que seu avô começou a chamar de Bucky o menino de dez anos e óculos de lentes grossas, devido às conotações de tenacidade, coragem e espírito de iniciativa que o apelido sugeria.