quinta-feira, 13 de outubro de 2022

grito

josé marcelo

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em uma hora tardia. a noite quente demais. seca demais. longa e triste. o corpo da menina deitada em uma mesa no meio da sala. parecia uma fada. dormindo dentro de um vestido branco e rodeada de flores. o leve odor ainda era o das flores, mas logo seria o da menina. de perfume à putrefação. as pessoas choravam. falavam baixo.

- ela era muito jovem.

- quinze anos.

- o que aconteceu?

- o que aconteceu?

ninguém sabia. ela fora dormir e não acordara. simples assim. Fora a mãe dela quem a encontrara. entrara no quarto para acordar a filha, atrasada para a escola. a menina nunca mais acordaria.

a mãe dela estava inconsolável, dopada, passaria pelo luto como quem passa por uma nuvem de poeira. o pai estava sentado em um canto da sala. não tirava os olhos da filha. nada dizia. ignorava a todos. não olhava, não falava com ninguém. passaria pelo luto com uma expressão impassiva e dura.

a mãe não foi ao enterro. ficou dormindo em casa. o pai pegou a pá do coveiro e cobriu a filha de terra. depois ficou sozinho, fumando e tossindo ao lado da sepultura. ficou até de noite. parecia esperar algo.

no meio da noite quente, o pai começou a desenterrar a filha. ela estava mais pálida agora. mais fria. mas continuava bela. o pai beijou-lhe a testa. pegou-a no colo.

foi o vigia do cemitério que viu a cena. depois de um tempo ele ofereceu-se para ajudar o pobre homem a enterrar novamente a menina.

o homem gritou com o vigia e acertou-o com a pá. a lâmina passou pela garganta do vigia, fez-lhe um talho de onde esguinchou sangue escuro que escorreu e cobriu-lhe todo o peito. o vigia engasgou em seu próprio sangue e morreu tossindo.

o homem então saiu do cemitério carregando a filha.

alguém chamou a polícia e ele foi preso e a menina devolvida à cova.

- fui eu, ficava repetindo o homem na delegacia. fui eu.

- foi você o quê? perguntou o delegado, já impaciente e inquieto.

- fui eu que a matei.

- você matou o vigia, nós sabemos.

- não, fui eu que matei minha filha.

-

- eu a matei.

- por quê? por que a matou?

- ela ia gritar.

o homem olhou para o delegado como se aquilo explicasse tudo.

- ela ia gritar.

2 comentários:

Anônimo disse...

Esse e os outros. Muito bons. Muito bons.

O Ancião disse...

Mais uma vez obrigado, jogador.