Após a notícia sobre a morte de Peter Falk, Wim Wenders escreveu uma carta aberta, publicada pela revista People, na qual diz:
Me lembro de uma noite, provavelmente na terceira semana de filmagens de “Asas do Desejo”, quando eu e minha assistente Claire Dennis estávamos em nosso escritório em Berlim tentando lidar com o fato de que o filme precisaria de mais um personagem. O que precisávamos era de um ex-anjo, alguém que teria precedido Damiel, para que pudesse por experiência própria informá-lo como é se tornar um ser humano.
Concluímos, pela dedução lógica, que existia apenas um ator no mundo que poderia interpretar esse personagem: Peter Falk. Era impensável sequer considerar a possibilidade de que Falk pudesse se interessar por um filme que já estava em fase de produção, para interpretar um personagem que não estava originalmente no roteiro, mas concebido da noite para o dia pelo diretor.
Mas eu tinha o telefone de John Cassavetes (amigo de Falk), que já tinha encontrado algumas vezes. Já tinha passado da meia-noite quando liguei para ele. Expliquei a situação. Será que poderia me ajudar a entrar em contato com Peter Falk? Ele riu: ‘claro, lhe darei o número. Você tem uma caneta?’ Meio que perplexo com a facilidade como as coisas estavam acontecendo, escrevi o número que John me deu.
Então, o segundo telefonema foi dado. Claire cruzou os dedos. Após o segundo toque, uma voz atendeu (eu sequer tinha conseguido pensar no que iria dizer). Esta voz me era mais familiar que qualquer outra no mundo. Meu coração acelerou. Era Columbo, com seu tom de voz inconfundível! Então, respirando fundo, disse como conseguira seu número e expliquei a ele que estava procurando por um ator que pudesse interpretar um ex-anjo em uma produção que já tinha iniciado as filmagens.
‘Você está procurando pelo que?’
‘Um ex-anjo…’
A voz no telefone começou a rir e depois a gargalhar. Parecia que ele nunca iria parar. ‘Um ex-anjo?! E você já começou a filmar?’
Meu coração foi para a boca. Parecia que as coisas não estavam indo bem. Ele finalmente parou de rir e perguntou, quase que de repente:
‘E você não tem roteiro?’
‘Não”
‘Para falar a verdade (disse ele) meus melhores trabalhos foram feitos desse jeito’. Após uma pausa, ele perguntou: ‘quando vocês precisam de mim?’
‘O mais rápido possível’
‘Posso ir no final de semana. Ligue para meu assistente. Anote o número’.
Depois que desliguei, Claire me olhou com os olhos arregalados e então eu disse: ‘ele vai fazer’.
As filmagens com Peter Falk foram divertidas. Todos o reconheciam, é claro. Tão logo aparecíamos na rua as pessoas nos cercavam, vindas de todos os lugares. Pizzaiolos saíam de suas pizzarias com as mãos ainda sujas de farinha, só para vê-lo. Os ônibus paravam. Velhas senhoras avançavam o sinal vermelho pela primeira vez em suas vidas!
Nunca tinha visto alguém lidar com a fama de forma tão generosa e educada. Peter Falk apertou todas as mãos que lhe foram estendidas, sorriu para todos e distribuiu autógrafos, fazendo com que soletrassem seus nomes germânicos. Tirou fotos com todas que o cercaram, sem nenhuma exceção. As pessoas saíam de lá felizes dizendo: ‘eu conheci Columbo!’
Nós realmente tínhamos encontrado nosso ex-anjo!
Peter amou Berlim. Ele retornou anos mais tarde para filmar a sequência do filme, depois que o Muro foi derrubado. Seu único problema era sua completa falta de senso de direção. A cada intervalo ele queria sair para um passeio. ‘Go spazieren’, uma expressão que ele aprendeu com sua avó. Mas ele nunca conseguia encontrar o caminho de volta para os sets de filmagens. Certa vez tivemos que ligar para a polícia para pedir que eles o procurassem. Quando finalmente o encontraram e o trouxeram de volta, nós já tratávamos cada oficial por seu primeiro nome.
Meses depois, quando gravamos seu monólogo em Los Angeles, eu tinha escrito algumas linhas em referência a suas caminhadas: “se minha avó estivesse aqui, ela diria: spazieren…go spazieren!”
Peter leu o texto e então riu, do mesmo jeito que riu quando nos falamos pela primeira vez ao telefone. E então ele disse: “um ex-anjo não tem avó, Wim!” É claro que mantive essa parte do monólogo no filme.
Para todos aqueles que puderem notar e puderem encontrar anjos a sua volta.
Wim Wenders, em um dia triste em Berlim.
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