Enfim, a terra começara a rejeitar os mortos. Corpos putrefatos, inchados de gazes e vermes, coagulados e com rostos carregados de horror e tristeza, brotando como se fossem flores horrendas na terra úmida.
― Pelos deuses ― disse alguém nos portões do cemitério.
Lá dentro, os mortos cambaleavam e gemiam e havia orgia e banquetes; um jovem defunto se esfregava em uma mulher morta, apesar de seu pênis a muito ter caído e ela estar mais interessada em comer uma pequena flor branca que crescera inocentemente na terra nua; alguns mortos se alimentavam de outro, estirado e de entranhas à mostra. Ele gritaria se tivesse língua ou se sentisse dor.
A polícia chegou com lança-chamas e máscaras e mãos trêmulas e os portões foram abertos e a chama lambeu a carne: jatos longos e esganiçados de fogo sobre corpos que se negavam a parar. Não demorou muito. Logo o cemitério era uma enorme fogueira e o cheiro de carne podre e torrada ergueu-se no vento salgado e misturou-se ao sabor do mar.
Da minha janela eu podia ver tanto o mar calmo como a chama inquieta dos mortos; eu podia ouvir os gritos e o horror. Talvez os mortos sentissem dor afinal.
Sentei-me diante da janela e comecei a limpar minha espada; eu a queria perfeita para o duelo do dia seguinte. Aquela era, portanto, a minha última noite em vida. Talvez.
Bateram na porta.
― Entre, seja quem for, eu disse.
― Então é verdade, disse Katerina.
― É, respondi eu. ― É sempre verdade, não importa no que acreditemos.
― Não se faça de engraçado. Não acredito que vá fazer isto, um duelo ao amanhecer. Isso é estupidez.
― Defenderei a sua honra.
― Não seja tolo. Sou prostituta, esqueceu? Sei por que faz isso.
― Não é preciso, no entanto, que o digam como ofensa. Por quê?
― Pelo amor à espada.
― Pode ser. De qualquer modo amanhã poderei estar morto. Não deveria me dar algo mais que uma bronca?
Mas ela já se sentara à cama e começara a despir-se.
― Vou te deixar tão exausto que amanhã desistirá de lutar.
― Você me subestima, disse eu, largando a espada e também deixando minha roupa pelo chão a caminho da cama.
Nua, Katerina abriu suavemente as pernas e então disse:
― Beije-me. Aqui.
Eu vi o morto cambalear lá fora; ouvi seus passos errantes; senti seu odor adocicado; e cortei sua cabeça com um golpe de espada vuuump que a jogou onde ela continuou gemendo. Olhei dentro de casa e vi Katerina dormindo. Encolhida entre as cobertas, sua pela muito branca e seus cabelos muito negros, ela parecia pura como uma virgem, inocente como uma menina. Eu quase a amei naquele instante. Então o sol começou a surgir e seu reflexo tornou o mar um grande espelho onde pairavam as nuvens e a fumaça que ainda se erguia do cemitério na colina. O ronco de um motor. De algum lugar, se aproximava um carro.
― Pois os mortos cavalgam céleres, eu disse e me espantei. Onde ouvira ou vira aquelas palavras?
O carro subiu pela colina e parou diante da casa. Era a hora.
continua
Nenhum comentário:
Postar um comentário