domingo, 22 de maio de 2011

PENÉLOPE

CRISTOVÂO TEZZA

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Sempre fui um desenhista sem ambição. Despercebido em minha saleta, desenhava letras, garrafas, automóveis. Voltando ao meu apartamento, abria enlatados e esquentava minha comida. Continuo assim.
Cheguei à solidão através de três mulheres. Só na primeira houve paixão. Nas outras, um ceticismo prático. Enquanto isso, me iludia: cinema, jogo, praia, viagens de fim-de-semana. Também isso se perdeu. Ao fim (nem tanto: quarenta anos), restei numa exaustão conformada, fitando a parede branca, asas tortas se debatendo em silêncio. Mas a capacidade de ficar sozinho alimentou minha soberba: a sensação de liberdade, a ilusão da escolha.
Passei a desenhar também à noite, por conta própria. Formas: ruas, casas, homens, mulheres. O que parecia uma fuga - nos meus desenhos eu estava em casa - se transformou em prazer. O painel da aparência se ordenava nos meus traços. Nas minhas ruas, eu mesmo fazia a História. Punha os desenhos na parede e me protegia neste mundo inventado, que ia se desdobrando, folhas sobre folhas. Rosto na janela, multidões nas ruas, prédios vazios, alguém perdido no beco. Uma rua, um bairro, uma cidade inteira parecida com a minha ramificava-se em vizinhos, primos, mães, órfãos, árvores, risadas e socos. Uma mulher apressada, um rosto súbito que se volta no vento da tarde, me atraiu. Chamava-se Penélope, um nome a um tempo clássico e falso. Perdi muitas horas olhando para ela, que, não mais que um vulto, parecia pronta.
Tentei esquecê-la, mas a cada novo desenho eu voltava à minha Penélope suspensa na parede, imperfeita e acabada, completa para sempre como um sol morto. A sensação de alguém conhecido, mas que não conhecemos. De onde? De nenhum lugar. Talvez... e eu abria mais uma folha em branco, prosseguindo o mapa em outra direção. Por pouco tempo; uma distração e meus olhos voltavam a ela, com medo - muito que eu olhasse, e Penélope súbita revelaria o amarelo do tempo, o truque do traço, a invenção do papel.
Precisava enfrentá-la. Recortei Penélope da multidão e coloquei-a diante de mim. Como era incompleta! E no entanto... Decidi, presunçoso, lhe dar todos os traços do meu realismo. Lá ia eu, bêbado de uma idéia, empilhando Penélopes em preto-e-branco, a começar pelo rosto. Sempre a sensação de alguém conhecido, uma sombra, um sinal, uma inexistente prima da infância, uma funcionária de supermercado, um esbarrão na praça da Figueira (a face inquisitiva se voltando), um suspiro esperando o ônibus que não chega, mãos que se tocam no mesmo jornal da banca, mas quando? Ao me perder - não, esses olhos não são dela - rasgava o papel e recomeçava, voltando sempre ao primeiro esboço, o verdadeiro. Um cego tateando estátuas.
Afinal - um cigarro saboroso nos lábios, uma tragada na alma - dominei sua face, cada linha e nuance. Que prazer, olhando o teto! Desdobrei Penélope, cada vez mais dócil. De frente. Olhando para mim. De longe. Cabeça erguida. Tirando o sapato. Escovando os dentes. Silenciosa. Triste. Alegre. Com os cabelos compridos - compridos, negros e espessos. Depois, cortei seus cabelos. Fiz Penélope chorar. Dormir. Pensar. Lado a lado, comparava os desenhos. Ela mesma se comparava ao espelho, rigorosamente a mesma mulher.
E como eu ria, feliz da vida! O desespero de voltar do emprego - agora pintando cartazes de filmes, vida útil de uma semana, O Exterminador do Passado, A Viúva Faceira, Longo Teto Noite Adentro, Bambolê III, O Incrível Homem que Esquecia - o desespero de me entregar à Penélope, desvendá-la, nua, na intimidade do banho, de abrir a porta de seu guarda-roupa e pendurar lá tudo que ela quisesse. Desenhei quatro diamantes na gaveta do seu criado-mudo.
Braços, pernas, seios, curvas. Como era exatamente Penélope? Nas primeiras tentativas ela entristeceu, porque eu estava mentindo, enganado pelos padrões dos outros. Até que, sem saída - nem fui trabalhar naquela tarde - descobri o corpo que correspondia exatamente ao seu rosto. Um corpo, uma altura, um peso. Os braços me pareceram desproporcionais; ao refazê-los, as medidas teimavam - braços, mãos, unhas. Inteira, e com pudor. Nua, fechava os olhos, a mão cobrindo a pequena mancha da perna, uma queimadura da infância? Outra página desenhada, a expressão a um tempo íntima e distante. De onde essa mulher tão familiar?
Cobri os meus espaços de Penélope. Horas e horas contemplando alguém que me criava. Tão completa! Mas eu não tinha o poder de desvendá-la. Desenhei-a se oferecendo, até implorando que eu me lançasse naquele aquário de nada - e sempre uma redoma preservando-a. Deixei Penélope em paz, imóvel nas minhas paredes. Abria uma lata de cerveja e passeava pelos desenhos, com a falsa indiferença de quem já desistiu. Meses depois, bêbado, tentei redesenhá-la, e fracassei. Senti medo. Idêntica a ela mesma, Penélope achou graça. Eu também, ressentido e mais velho.
A onipresença das minhas paredes se transformou numa sombra das ruas: senti que me vigiavam. No ônibus, na praça, nas curvas da Trindade, a sombra de Penélope me acompanhava, como quem depende, como quem se diverte, como quem não tem saída. Uma proximidade inquieta: de algum lugar, em algum momento, alguém vai segurar minha mão para um encontro assustador e inevitável. Onde andará Penélope? Um tanto por vingança, um tanto por desejo, tomei seu rosto emprestado para um outdoor na beira-mar anunciando xampu de farmácia, a serviço de um novo emprego. Tão deformada assim, colorida!
Num sábado bissexto, passei o dia no Pântano do Sul, bebendo só. Esperava o ônibus das cinco. Alguém me chamou para empurrar um carro na areia:
- Penélope?
Ela não disse nem sim nem não, mostrando o pneu enterrado. Pensei que estivesse assustada, mas não; apenas distante, perguntou se eu ia à cidade. Fiz que sim, o sol na cabeça. Ela acelerou, eu empurrei, e o carro saiu fácil, mas me encheu de areia. Ela abriu a porta, eu entrei, inseguro. Por dez minutos falamos banalidades: o banco sujo de areia, o vento, o calor, o cinto de segurança, que não funciona. Depois, extensões agoniantes de silêncio, ao longo do caminho que ela já sabia. Eu vigiava aquele perfil: idêntica. Na Trindade, Penélope estacionou o carro e desligou o motor. Olhou para mim, muito séria. Alguém que se destaca de uma página em branco, na precisão do meu lápis. Leviano e cavalheiro, abri a porta para ela e segurei sua mão: mão firme e quente. Gostei de Penélope assim, em silêncio: um medo terrível de que a voz alta diminuísse minha obra.
Entramos no apartamento e ela foi direto aos desenhos. Nem espanto, só um quase sorriso:
- Essa sou eu?!
Não respondi, nem ela esperava resposta. Caminhou pelas paredes, vendo-se tão perfeitamente imóvel.
- Você me vigiava.
- Você me vigiava...
Afinal ela achou graça, previsivelmente inclinando a cabeça e passando a mão nos cabelos, exata no meu desenho. Seguiu-se um buraco de silêncio, tão pesado que não saía do lugar. Atravessar esse terror, a fala: a interminável tortura dos detalhes, a profissão, o corte da roupa, o leite na geladeira, o prazo, o troco no cinema, a memória, o acúmulo despropositado das coisas que se deve fazer, cada uma delas nos tirando um pedaço. Insisti no silêncio: cada palavra e estamos menores - medo de olhar para Penélope e descobrir um erro. Que horror é esse que ameaça minha solidão?
Nos meses que se seguiram - sei lá onde vivia Penélope, sei lá que espaço ocupava no mundo! - jamais pronunciei seu nome. Quem sabe nele se evidenciasse o engano e o desastre? Mas não: lá estava a pequena mancha na perna, que ela movia com a leveza de um bico-de-pena, nua no nosso desejo. Uma ânsia corrosiva de descobri-la mais e mais, mas tudo nela já estava desenhado, página a página. Amei Penélope com desespero, pressentindo o fim.
Depois, começou lentamente a morte de Penélope. Semana a semana ela perdia a cor, a firmeza, a voz. Perdia a leveza, a elegância e o brilho dos olhos, surtos de escuridão numa página em branco. Uma noite, minha mão trespassou seu braço, como a um vento. Metade do rosto eclipsava-se, uma lua sem rumo. Eu vi Penélope sofrer: suas últimas frases, sem sintaxe, imploravam alguma coisa que parecia salvação. Há três dias, acordei definitivamente sem Penélope, todas as paredes em branco. Ontem, da janela do quarto, vi oficiais do trânsito rebocando seu carro, abandonado na calçada estreita.

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