(Entrevista com Billy Wilder concedida ao jornalista François Forestier, publicada na revista francesa "Le Nouvel Observateur", número 1510, de outubro de 1993, traduzida por Daniel Caetano e publicada na Contracampo.)
-Você tem trabalhado?
Billy Wilder – É claro. Em um roteiro.
-Sobre o que é?
Billy Wilder – Não posso contar.
-Pode sim.
Billy Wilder – Não.
-Pode.
Billy Wilder – Não.
-Está bem, você ganhou. É uma comédia?
Billy Wilder – Não sei, ainda não decidi. Só tenho idéias, cenas, personagens. A única coisa que eu sei é que não terá efeitos especiais. Eu não sei utilizá-los – para falar a verdade, eu não sei sequer fechar um frasco. Eu gosto de diálogos, não de trucagens.
-Vou formular a questão de outro modo: Será uma comédia?
Billy Wilder – Eu não sei nem mesmo se Se Meu Apartamento Falasse é uma comédia, então... É uma sátira do modo de vida americano, é tudo que se pode dizer. Uma visão especial – aprende-se como não fazer carreira e como vencer na vida. Mas é uma comédia? É um assunto bastante sério, coberto por chocolate e creme. Eu faço rir, mas gosto também que as pessoas discutam por uma meia-hora depois da projeção. É a minha mais bela recompensa.
-Você assinou também alguns dramas terríveis, como "Farrapo Humano", em que o assunto era o alcoolismo...
Billy Wilder – Ah, este não foi uma comédia, com certeza! O mesmo para Pacto de Sangue... Talvez Hitchcock tivesse razão em só fazer um gênero de filme... Talvez. Quando se vai assistir a um Hitchcock, sabe-se que haverá trens, cadáveres, um mistério. E eis que já há sessenta anos que faço cinema e ainda não sei o que é uma comédia. Fiz de tudo: roteirista, diretor... Mas não fazer mais que um gênero de filme? Eu me entediaria. Se eu devesse fazer um Hitchocock, faria Testemunha de Acusação, com Charles Laughton, Tyrone Power e Marlene Dietrich.
-Mas... é um filme de Billy Wilder!
Billy Wilder – Hehe... Sim. Se eu fosse Billy Wilder, eu não comeria no mesmo restaurante por toda minha vida.
-Bem... você é Billy Wilder, não?
Billy Wilder – Sim. Portanto, eu não como sempre no mesmo restaurante. Você quer um café?
-Duas pedras de açúcar, por favor. Você ficou com a mesma esposa por quarenta e cinco anos.
Billy Wilder – Ah... eu tive sorte.
-Ela teve paciência.
Billy Wilder – Sim, uma santa paciência.
-É uma santa?
Billy Wilder – Talvez. Devo dizer que a instituição do casamento não é um dos meus assuntos prediletos. A não ser para rir dela.
-Como nos filmes de seu cineasta favorito, Ernst Lubitsch.
Billy Wilder – Ele se casou duas vezes. Uma catástrofe...
-Eu vou lhe cortar , se me permite. Nas suas "Memórias", você diz que chegou em Nova Iorque com onze dólares no bolso. Isso aconteceu em 1934. Qual foi a sua primeira impressão?
Billy Wilder – Meu irmão, que era dois anos mais velho, veio me procurar no porto. Eu tinha feito a travessia no navio mais elegante da Linhas Cunard, o "Aquitânia". Eu tinha visto dezenas e dezenas de filmes americanos, mas devo dizer que nada me preparou para aquela visão: Nova Iorque sob a neve. Eu vinha de Paris e só sabia fazer uma coisa: cinema. Eu não percebia bem que os EUA estavam ainda sob o golpe da Grande Depressão.. Estávamos em janeiro, e o barco estava atrasado. Chegamos às onze da noite. Meu irmão e sua esposa me levaram de carro a Long Island. Tudo estava branco, e eu pedi para passearmos. Passamos pela Rua 42, pela Park Avenue, pela Broadway... os olhos me saltavam da cara, eu estava de queixo caído e vi o milagre dos milagres, o edifício Chrysler. U-lá-lá... Depois comecei a observar as pessoas que dormiam sob as pontes, os mendigos diante dos teatros... Assim que cheguei na casa do meu irmão, fiquei horas olhando pela janela. A manhã chegou, e eu vi um garoto saltar de um Cadillac, jogar o jornal e voltar ao carro, onde um chofer o esperava. Alguns metros adiante, o mesmo ritual. Eu falei comigo mesmo: Que país! Que maravilha! Mesmo os entregadores de jornal andam de limousine! Ou era apenas um estudante que fazia sua volta habitual. Como havia trinta centímetros de neve, ele não podia fazer de bicicleta. Seus pais, excepcionalmente, emprestavam-lhe o carro...
-Você tinha algum emprego em vista?
Billy Wilder – Sim, eu queria escrever roteiros. Eu tinha toda a coragem do mundo. Meu bilhete de entrada era um script que eu tinha vendido durante minha estadia na França, que tinha chegado à Columbia, em Hollywood. Haviam me oferecido, então, um contrato por seis semanas, ganhando cinqüenta dólares por semana.
-Era "Pam-Pam"?
Billy Wilder – Era. Nunca foi filmado.
-Seu amor pelo cinema foi constante. Durante sua estadia em Paris, você passou seu tempo vendo filmes...
Billy Wilder – Sim. Fiquei vidrado durante tempo por 42nd Street, uma comédia musical de Busby Berkeley, eu ia rever este filme todos os dias – assisti ele umas quarenta vezes... Houve alguns meses em que eu fiquei um pouco deprimido. Ao invés de ir a um analista, para me esticar num divã, fui ver A Gaiola das Loucas por uma semana. Era minha cura. Foi menos caro que psicanálise.
-Na sua infância, você teve heróis?
Billy Wilder – Asta Nielsen, a estrela. E Harry Piel, que interpretava detetives. Entre 1926 e 1933, em Berlim, eu ia ver com freqüência os filmes estrelados por Lilian Harvey. E havia os Mabuse de Fritz Lang. Mas era o cinema americano que realmente mexia com meu coração. Com treze anos, no colégio, em Viena, os alunos deviam escolher uma língua viva para estudar, e a moda era de todos escolherem o Francês – eu preferi o Inglês. Minha matéria predileta era Geografia, eu detestava cordialmente a geometria. Você quer outro café?
-Duas pedras de açúcar, por favor. Em 1933, você esteve refugiado em Paris – no Hotel Ansonia, mais precisamente, onde havia toda uma colônia alemã em torno de Erich Maria Remarque...
Billy Wilder – Sim. Rua de Saigon, perto da Avenida Foch – eu era jovem... Foi um momento difícil. Algum tempo antes disso, eu estava com uma amiga na Suíça e ouvi no rádio as notícias – o chanceler alemão tinha sido deposto, Hitler aparecia... Eu soube, imediatamente, que precisava ir embora. A democracia estava morta. Voltei a Berlim. Depois houve o incêndio do Reichstag... Um complô pretensamente comunista...
-Onde você estava neste dia, 23 de fevereiro de 1933?
Billy Wilder – Eu estava sentado num bistrô, a primavera estava quase chegando. Vi a fumaça... Eu já sabia então que seria minha última semana em Berlim. Vendi tudo imediatamente: meu apartamento, meus móveis, todos meus objetos...
-Você foi jornalista nos anos vinte e entrevistou algumas celebridades, como Arthur Schnitzler...
Billy Wilder – Sim, ele me recebeu muito gentilmente. E tentei entrevistar Freud. Cheguei em seu apartamento na hora do almoço, cerca de meio-dia. Toquei no número 9 da Bergstrasse e a empregada me atendeu dizendo que Herr Professor estava almoçando. Fiquei esperando, olhando o divã e aquela coleção magnífica... Centenas de antigüidades gregas e romanas – sim, centenas! È a única coisa que tínhamos em comum. Ah, não... nós dois somos judeus. Repare que, como disse Woody Allen, eu sou judeu, mas posso me explicar... Logo, Freud saiu para me ver, com o guardanapo preso no pescoço. "Herr Wilder?", perguntou ele. "Jawohl, Herr Doktor", eu respondi. "A porta é por ali", disse ele. Ele detestava jornalistas – eles consideram a psicanálise motivo de piadas. Mas eu ainda prefiro me ferrar sendo mal-recebido por Sigmund Freud que ser recebido com toda a pompa por Saddam Hussein. Seu café está bom?
-Obrigado. Você também entrevistou Von Sternberg.
Billy Wilder – Ah, sim. Ele vivia no Hotel Adlon Esplanade. Ele iria rodar um filme com Emil Jannings para a UFA – ele era célebre. Eu o admirava, mas havia coisas nele de que não gostava. Como cineasta, ele só se interessava pela fotografia. Ele fazia a câmera passar pela mancha de Marlene, depois pela mesa, depois entre a fumaça, depois mostrava uma fatia de pêssego... Era maneirista demais para o meu gosto. Ele era baixinho, um pouco pomposo, mas muito gentil. Ele se vestia como o protótipo do cineasta, com botas e tudo mais. O que eu respeito é que ele foi o primeiro colecionador de arte moderna em Hollywood. Um gosto bastante firme. Ele inventou Marlene...
-Você colaborou no roteiro de "Menschen am Sonntag", que foi o ato fundador do cinema falado alemão, em 1930.
Billy Wilder – Sim. Que equipe! Havia Kurt Siodmak, o autor de "Ski Fever"... Ele ainda está vivo. Tem 90 anos e mora na Califórnia... Havia Fred Zinnemann, que mais tarde dirigiu Matar ou Morrer; Edgar Ulmer, que assinou dezenas de filmes; Eugene Shufftan, operador de câmera genial. E Robert Siodmak, que dirigiu Os Assassinos, com Burt Lancaster e Ava Gardner... Nada mal, não? Nós roubamos, mentimos, improvisamos, mendigamos, mas nós fizemos um filme.
-Sabe-se que você foi dançarino de boate. Mas nunca alguém contou se você era bom dançarino.
Billy Wilder – Eu não era ruim. Eu me garantia no tango...Foi em 1927, em Berlim, creio eu. Eu tinha uma noiva americana que me ensinou o charleston – era novidade, então eu tive a oportunidade de me destacar dos outros. A clientela apreciava. Vinte marcos por meia-hora. Mas isso não era vida.
-Depois você se envolveu com a escrita de roteiros. Qual é a receita para um bom roteiro?
Billy Wilder – O enredo. Se o enredo é bom, o filme tem chances de ser bom. Caso contrário, está ferrado. Atmosfera, intriga, ela vai matá-lo, ele vai matá-la, meu Deus, o que irá acontecer com o filho ilegítimo... não interessa o quê, mas que agarre o espectador.
-Você vendeu seu primeiro roteiro em Berlim...
Billy Wilder – Sim. Uma noite, minha vizinha recebia um amante escondida. De repente, o noivo da garota chegou, prestes a... A porta de comunicação dos apartamentos se abre, e eu vejo entrar um senhor de cuecas, apavorado, com suas roupas na mão. Enquanto ele se vestia, conversamos um pouco. E eu me dei conta de que ele era Herr Galinzenstein, um dos maiores produtores alemães da época. Eu lhe disse: "Tenho algumas coisas aqui que lhe interessariam". Ele me responde: "Passe amanhã no meu escritório". Mas eu sei que amanhã é amanhã e que hoje é agora, e lhe disse: "Você está no meu escritório. Vamos conversar". Ele me encarou, terminou de se vestir, pegou meu roteiro e me deu quinhentos marcos. Foi embora e sem dúvida largou meu roteiro na primeira lata de lixo que apareceu...
-Mais tarde você veio a assinar dezenas de roteiros. O de "Ninotchka" cabe na sua definição de um bom roteiro?
Billy Wilder – Ah sim, muito bom. Foi baseado numa pequena história de um autor húngaro, Melchior Lengyel. A aventura dessa comissária política leninista hospedada em Paris era formidável, e Lubitsch fez dela uma maravilha. Lubitsch era um gênio – ele era muito exigente com seus roteiristas. Quando nós entrávamos em pânico, ele corria para o banheiro e voltava dizendo: "Eu tenho a solução". E tinha, de fato. Nós nos perguntávamos se não havia uma biblioteca secreta nos seus banheiros... Eu fui conferir – não havia nada.
-De todas as pessoas que você encontrou, Lubitsch foi quem mais lhe influenciou...
Billy Wilder – Provavelmente. Mas David Hockney e Charles Eames me causaram um forte impressão. Na verdade, eu encontrei várias pessoas fascinantes – não tenho tempo para perder com imbecis ou com mulheres estúpidas e feias.
-A beleza de uma mulher está sujeita a mudanças.
Billy Wilder – Uma mulher bonita está à beira de se tornar feia, creio eu.
-Qual foi a mulher mais bonita que você já encontrou? Sabe-se da sua carreira de sedutor...
Billy Wilder – Você não acredita que eu vá lhe responder, certo? Para me queimar com todas as outras?
-Greta Garbo?
Billy Wilder – Na tela de cinema, ela era sublime. Gary Cooper, a mesma coisa. A câmera transfigura.
-Você trabalhou em cerca de trinta filmes. De qual você gosta mais?
Billy Wilder – A Montanha dos Sete Abutres, com Kirk Douglas, em 1951. Um filme sobre a manipulação de opinião... E Se Meu Apartamento Falasse, com Jack Lemmon. Woody Allen acha quePacto de Sangue é uma dos dez melhores filmes da história do cinema, mas eu não concordo.
-Um de seus primeiros filmes foi "Mauvaise Graine", que você rodou em Paris, com Danielle Darrieux.
Billy Wilder – Foi o primeiro filme que dirigi. Eu estava muito inseguro, era como um problema de álgebra. Não me saí muito bem. Danielle Darrieux tinha 17 anos... ela era sublime.
-Eu detesto você.
Billy Wilder – Por quê?
-Porque você teve a chance de encontrar Danielle Darrieux com 17 anos.
Billy Wilder – Eu me detesto.
-Por quê?
Billy Wilder – Porque não tenho mais vinte anos de idade...
-Você conheceu Marlene Dietrich, Marilyn Monroe...
Billy Wilder – Marlene foi uma grande amiga dos dias berlinenses. Eu entrevistei ela... Fizeram dela uma vamp, e ela adorava essa imagem. Mas, na verdade, era uma mulher do interior – ela adorava fazer sopa, sempre que alguém aparecia resfriado ela arrumava uma aspirina, ela sempre cuidava dessas besteiras... Marlene era como uma Madre Teresa com pernas bonitas. Quanto a Marilyn, realmente era preciso ter uma paciência de monge zen-budista de sétimo grau para trabalhar com ela. No início das filmagens de Quanto Mais Quente Melhor, nós pedíamos para ela chegar às nove da manhã e ela aparecia ao meio-dia. No final, nós pedíamos que ela viesse em maio e esperávamos que chegasse em setembro. Era um pesadelo – mas, se eu pudesse, não hesitaria em fazer outro filme com ela. À noite, chegando em casa depois de um dia com ela, acontecia de eu vomitar no caminho... Era o estresse...
-E Gloria Swanson?
Billy Wilder – Quando trabalhei com ela, em Crepúsculo dos Deuses, pensava-se que essa grande estrela dos filmes mudos estava acabada! Ela tinha cinqüenta anos! Mas o cinema mudo parecia tão distante... Ela teve uma coragem enorme.
-Havia várias celebridades nesse filme: Erich von Stroheim, Buster Keaton, Cecil B. De Mille..
Billy Wilder – Este último era excelente ator.
-Era também um reacionário demente.
Billy Wilder – Sim. Ele chegou até a tentar transformar a Associação de Diretores em movimento macartista! Na hora, John Huston se levantou e se opôs. Mesmo John Ford, que não era de esquerda, foi contra! Mas Huston foi magnífico: "Onde estava o senhor, senhor De Mille, quando combatemos em Anzio? Você estava se embandeirando em seu patriotismo? Em casa?". E isso pôs fim à manipulação.
-Fale-nos de seus altos e baixos.
Billy Wilder – Há filmes, como Amor na Tarde, Uma Loura por Um Milhão ou A Montanha dos Sete Abutres, que eu adoro e que foram fracassos. Outros, que eu dirigi no piloto automático, foram grandes sucessos. Vai entender...
-Você é famoso por seus diálogos...
Billy Wilder – Sobretudo por "Nobody’s perfect", a última réplica de Quanto Mais Quente Melhor. Na verdade, é uma frase que deixamos lá, eu e meu colaborador I. A. L. Diamond, por falta de alternativa melhor. Por pura preguiça.
-Você tem a fama de cronometrar as cenas durante os ensaios, e depois dizer aos atores: vocês podem refazer isso, mas com quinze segundos a menos?
Billy Wilder – Sim, eu faço isso, mas sem cronômetro. É automático, eu digo para meus atores: "Me dê uma alegria, corte uma semana nessa cena".
- Última questão: Existe um Deus?
Billy Wilder – Sim, e ele se chama Ernst Lubitsch.
Nenhum comentário:
Postar um comentário