domingo, 30 de janeiro de 2011

AZINCOURT

Bernard Cornwell

azincourt

Um trecho:

Prólogo
Num dia de inverno de 1413, logo antes do Natal, Nicholas Hook decidiu cometer assassinato.
Era um dia frio. Durante a noite havia geado forte, e o sol do meio-dia não conseguira derreter o branco do capim. Não existia vento, de modo que o mundo inteiro estava pálido, congelado e imóvel quando Hook viu Tom Perrill na trilha funda que ia da floresta alta às pastagens do moinho.
Nick Hook, de 19 anos, movia-se como um fantasma. Era guarda-caça, e mesmo num dia em que a pisada mais leve poderia soar como gelo se partindo, ele se movia em silêncio. Agora andava contra o vento, saindo da trilha funda onde Perrill prendera um dos cavalos de tração de lorde Slayton ao tronco de um olmo derrubado. Perrill estava arrastando a árvore para o moinho, para fazer novas pás para a roda-d’água. Estava sozinho e isso era incomum, porque Tom Perrill raramente se afastava de casa sem seu irmão ou algum outro companheiro, e Hook nunca vira Tom Perrill tão longe da aldeia sem o arco pendurado no ombro.
Nick Hook parou no limite das árvores, num local onde arbustos de azevinho o escondiam. Estava a cem passos de Perrill, que praguejava porque os sulcos no caminho haviam congelado e ficado duros, o grande tronco de olmo se agarrava na trilha irregular e o cavalo empacava. Perrill havia batido no animal a ponto de tirar sangue, mas as chicotadas não tinham ajudado, e agora o rapaz estava simplesmente parado, chicote na mão, xingando o infeliz animal.
Hook pegou um flecha na sacola pendurada a tiracolo e verificou se era a que ele queria. Era de ponta larga, com espigão longo, destinada a cortar o corpo de um cervo, uma flecha feita para rasgar artérias de modo que o animal sangrasse até a morte caso Hook errasse o coração, mas ele raramente errava. Aos 18 anos havia vencido o campeonato dos três condados, derrotando arqueiros mais velhos e famosos em metade da Inglaterra, e a cem passos jamais errava.
Encostou a flecha na madeira do arco. Estava observando Perrill porque não precisava olhar para a flecha nem para o arco. O polegar esquerdo prendia a flecha e a mão direita esticou ligeiramente a corda até que ela se encaixou no pequeno entalhe reforçado com chifre na extremidade emplumada da flecha. Levantou o arco, os olhos ainda no filho mais velho do moleiro.
Puxou a corda sem esforço aparente, ainda que a maioria dos homens que não fossem arqueiros não conseguisse puxá-la até a metade. Esticou a corda até a orelha direita.
Perrill havia se virado para olhar a pastagem do moinho, onde o rio era uma tira sinuosa de prata sob os salgueiros despidos pelo inverno. Estava usando botas, calções, um gibão e um casaco de pele de cervo, e não fazia ideia de que sua morte estava a instantes de acontecer. Hook disparou. Foi um disparo suave, a corda de cânhamo soltando-se do polegar e dos dois dedos sem ao menos um tremor.
A flecha voou reta. Hook acompanhou as penas cinza, olhando enquanto a haste de freixo ligeiramente afunilada, com ponta de aço, acelerava rumo ao coração de Perrill. Ele havia afiado a ponta em forma de cunha e sabia que ela cortaria a pele de cervo como se fosse teia de aranha.
Nick Hook odiava a família Perrill, assim como os Perrill odiavam os Hook. A rixa durava duas gerações, desde quando o avô de Tom Perrill havia matado o avô de Hook na taverna do povoado cravando um atiçador de lareira em seu olho. O velho lorde Slayton havia declarado que fora uma luta justa e se recusou a castigar o moleiro, e desde então os Hook tentavam se vingar.
Nunca haviam conseguido. O pai de Hook fora morto a chutes no jogo anual de futebol e ninguém jamais descobrira quem o havia matado, mas todo mundo sabia que deviam ter sido os Perrill. A bola fora chutada para o meio dos juncos, atrás do pomar da casa senhorial, e uma dúzia de homens havia corrido atrás, mas apenas 11 saíram. O novo lorde Slayton riu da ideia de chamar a morte de assassinato.
- Se fôssemos enforcar alguém por matar num jogo de futebol – dissera ele -, iríamos enforcar metade da Inglaterra.
O pai de Hook era pastor. Deixou esposa grávida e dois filhos, e a viúva morreu dois meses depois da morte do marido, ao dar à luz uma menina natimorta. Faleceu no dia de são Nicolau, dia do décimo terceiro aniversário de Nick Hook, e sua avó dissera que a coincidência provava que Nick era amaldiçoado. Ela tentou tirar a maldição com sua própria magia. Golpeou-o com uma flecha, cravando fundo a ponta em sua coxa, depois lhe disse para matar um cervo com a flecha e que assim a maldição iria embora. Hook caçou ilegalmente um dos animais de lorde Slayton, matando-o com a flecha suja de sangue, mas a maldição permaneceu. Os Perrill viviam e a rixa continuou. Uma bela macieira no quintal da avó de Hook havia morrido, e ela insistiu que fora a velha senhora Perrill que havia enfeitiçado a árvore.
- Os Perrill sempre foram uns desgraçados pútridos comedores de bosta – disse sua avó. Ela pôs mau-olhado em Tom Perrill e seu irmão mais novo, Robert, mas a velha senhora Perrill devia ter usado um contrafeitiço, porque nenhum dos dois adoeceu. Os dois bodes que Hook mantinha na área pública desapareceram, e o povoado achava que haviam sido os lobos, mas Hook sabia que tinham sido os Perrill. Em vingança matou a vaca deles, mas isso não era o mesmo que matá-los.
- É seu trabalho matá-los – insistia a avó de Nick, mas ele nunca tivera oportunidade. – Que o diabo faça você cuspir merda – amaldiçoou ela – e depois o leve para o inferno. – Ela o expulsou de casa quando ele estava com 16 anos. – Vá morrer de fome, desgraçado – rosnou. Nesse ponto ela estava enlouquecendo, e não havia como discutir, assim Nick Hook saiu de casa e podia ter mesmo morrido de fome, mas esse foi o ano em que tirou o primeiro lugar na competição dos seis povoados, colocando uma flecha depois da outra no alvo distante.
Lorde Slayton fez de Nick um guarda-caça, o que significava que precisava manter a mesa do senhor cheia de carne de veado.
- É melhor você matá-los legalmente do que ser enforcado como caçador ilegal – havia observado lorde Slayton.
Agora, no dia de são Winebald, logo antes do Natal, Nick Hook olhava sua flecha voar na direção de Tom Perrill.
Iria matá-lo, sabia.
A flecha voou certeira, baixando ligeiramente entre as altas cercas vivas brilhantes de geada. Tom Perrill não tinha ideia de que ela vinha. Nick Hook sorriu.
Então a flecha oscilou.
Uma pena havia se soltado, a cola e a amarra deviam ter cedido e a flecha se desviou à esquerda, cortando o flanco do cavalo e se alojando em seu ombro. O cavalo relinchou, empinou e saltou à frente, arrancando o grande tronco de olmo dos sulcos congelados no chão.

Tom Perrill se virou e olhou para a floresta elevada, depois percebeu que uma segunda flecha poderia seguir a primeira, por isso se virou de novo e correu atrás do cavalo.

Nick Hook havia fracassado de novo. Era amaldiçoado.

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