sábado, 13 de fevereiro de 2016

TRECHO: O LIVRO DO CEMITÉRIO

NEIL GAIMAN

livro-do-cemiterio

CAPÍTULO UM
De como ninguém ia ao cemitério


A MÃO ESTAVA NO escuro e segurava uma faca.

A faca tinha um cabo de osso preto e lustroso, e uma lâmina mais fina e mais afiada do que qualquer navalha. Se ela cortasse você, não daria para saber que foi cortado, não de imediato. A faca tinha feito quase tudo o que fora fazer naquela casa, e ambos, lâmina e cabo, estavam úmidos. A porta da rua ainda estava aberta, só um pouco, onde a faca e o homem que a segurava se esgueiraram para dentro, e fiapos da neblina noturna deslizavam e se enroscavam para dentro da casa pela porta aberta. O homem chamado Jack parou no patamar da escada. Com a mão esquerda, pegou um grande lenço branco no bolso do casaco preto e com ele limpou a faca e a mão direita enluvada que a segurava; depois guardou o lenço. A caçada estava quase chegando ao fim. Tinha deixado a mulher na cama, o homem no chão do quarto, o filho mais velho em seu quarto de cores vivas, cercado de brinquedos e modelos inacabados. Então só restava o menor, um bebê que nem completara dois anos, para cuidar. Mais um e a tarefa estaria terminada. Ele flexionou os dedos. O homem chamado Jack era, acima de tudo, um profissional, ou assim ele dizia a si mesmo, e não se permitiria sorrir antes de concluir seu trabalho.

Seus cabelos eram escuros, os olhos eram escuros, e ele usava luvas pretas da mais fina pele de cordeiro. O quarto do bebê ficava na parte mais alta da casa. O homem chamado Jack subiu a escada, os pés abafados pelo carpete. Depois empurrou a porta do sótão e entrou. Seus sapatos eram de couro preto e engraxados com tal brilho que pareciam espelhos escuros: dava para ver a lua refletida neles, uma meia-lua fina.

A lua de verdade brilhava pela janela de caixilho. Sua luz não era forte, a neblina a deixava difusa, mas o homem chamado Jack não precisava de muita luz. O luar era suficiente. Teria de ser. Ele podia distinguir a forma da criança no berço, a cabeça, os membros e o tronco. O berço tinha laterais altas e ripadas para evitar que a criança saísse. Jack se curvou, ergueu a mão direita, a que segurava a faca, mirou no peito... e, em seguida, baixou a mão. A forma no berço era um ursinho de pelúcia. Não havia criança alguma.

Os olhos do homem chamado Jack estavam acostumados ao luar fraco, por isso não quis acender a luz. E, afinal, a luz não era importante. Ele tinha outras habilidades. O homem chamado Jack cheirou o ar. Ignorou os odores que tinham entrado no quarto com ele, desprezou os cheiros que podia ignorar com segurança, aprumou o nariz para o cheiro da coisa que viera encontrar. Sentia o cheiro da criança: um cheiro leitoso, de biscoito de chocolate, com o toque azedo de uma fralda descartável molhada. Ele podia sentir o cheiro do xampu do bebê e de algo pequeno, de bor racha - um brinquedo, pensou ele; não, alguma coisa para chupar -, que a criança carregava. A criança estivera ali. Não estava mais. O homem chamado Jack seguiu o que o nariz lhe dizia escada abaixo da casa alta e estreita. Examinou o banheiro, a cozinha, o armário de roupa de cama e, por fim, o corredor do primeiro andar, em que não havia nada para ver, a não ser as bicicletas da família, uma pilha de sacolas de compras vazias, uma fralda caída e as gavinhas errantes de névoa que se insinuavam para o corredor pela porta da rua aberta.

O homem chamado Jack fez um barulhinho, um grunhido que continha ao mesmo tempo frustração e satisfação. Deslizou a faca por sua bainha no bolso interno do casaco comprido e foi para a rua. Havia luar e os postes de rua, mas a neblina a tudo sufocava, obscurecia a luz e abafava os sons, tornando a noite sombria e traiçoeira. Ele desceu a ladeira para a luz das lojas fechadas, depois subiu a rua, onde as últimas casas altas encimavam a ladeira a caminho da escuridão do antigo cemitério. O homem chamado Jack farejou o ar. Depois, sem pressa, começou a subir a ladeira.

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