sábado, 6 de fevereiro de 2016

CONTO: A fúria das pestes

Samanta Schweblin
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Gismondi estranhou que os garotos e os cães não correram para recebê-lo. Intranquilo, olhou para a planície onde já se distanciava, diminuto, o carro que viria buscá-lo no dia seguinte. Fazia anos que visitava lugares da fronteira, comunidades pobres que somava ao censo populacional e às quais retribuía com alimentos. Pela primeira vez, porém, diante desse pequeno povoado que naufragava em meio ao vale, Gismondi notou uma quietude absoluta. Viu as casas, poucas. Três ou quatro figuras imóveis e alguns cães largados sobre a terra. Avançou sob o sol do meio-dia. Carregava nos ombros duas bolsas grandes que, ao balançar, machucavam seus braços e o obrigavam a parar. Um cachorro ergueu a cabeça para vê-lo chegar, sem levantar-se do piso. As construções, uma estranha mescla de barro, pedra e zinco, sucediam-se sem ordem alguma, deixando no centro uma rua vazia. Parecia desabitada, contudo podia adivinhar os habitantes por trás das janelas e das portas. Não se moviam, não o espiavam, porém estavam ali, e Gismondi viu, junto a uma porta, um homem sentado; apoiadas em uma coluna, as costas de um menino; a cauda de um cão saindo do interior da casa. Mareado pelo calor, deixou cair as bolsas e limpou com a mão o suor da testa. Contemplou as construções. Não havia ninguém com quem falar, de modo que escolheu uma porta e pediu permissão antes de entrar. Dentro, um homem velho observava o céu através de um buraco no teto de zinco.
     — Desculpe — disse Gismondi.
     Do outro lado do cômodo, duas mulheres estavam sentadas uma de frente para a outra numa mesa e, mais atrás, em um catre velho, dois garotos e um cão dormitavam apoiados uns nos outros.
     — Desculpe... — repetiu.
     O  homem não se mexeu. Quando Gismondi se acostumou ao escuro, descobriu que uma das mulheres, a mais jovem, olhava para ele.
     — Bom dia — disse ele, recuperando o ânimo —, trabalho para o governo e... Com quem posso falar? — Gismondi se inclinou levemente para a frente.
     A mulher não respondeu, sua expressão era indiferente. Gismondi se encostou na parede que demarcava a porta; sentia-se enjoado.
     — Deve ter alguém... Que sirva de referência, sabe com quem posso falar?
     — Falar? — perguntou a mulher com voz seca, cansada.
     Gismondi não respondeu; temia descobrir que ela nunca pronunciara palavra alguma e que o calor do meio-dia o afetava. A mulher pareceu perder o interesse e deixou de olhá-lo. Gismondi pensou que podia calcular a população e completar o censo a seu critério, pois nenhum agente se incomodaria em corroborar os dados de um lugar como aquele, mas, de qualquer maneira, o carro que passaria para pegá-lo não regressaria até o dia seguinte. Aproximou-se dos meninos, ao menos poderia fazê-los falar. O cão, que se fazia de morto sobre a perna de um deles, nem sequer se moveu. Gismondi cumprimentou. Somente um dos garotos, lento, o olhou nos olhos e fez um gesto mínimo com os lábio, quase um sorriso. Seus pés caíam do catre, descalços, porém limpos, como se nunca tivessem tocado o solo. Gismondi se agachou e roçou com a mão um dos pés. Não soube o que o levou a fazer aquilo, talvez apenas necessitasse saber que o garoto era capaz de se movimentar, que estava vivo. O garoto o olhou, assustado. Gismondi se levantou. Ele também, de pé no meio do cômodo, olhou o garoto com medo. Mas não era aquele rosto o que temia, nem o silêncio, nem a quietude. Percorreu com o olhar o pó das prateleiras e das bancadas vazias até se deter no único recipiente à vista. Pegou-o e esvaziou seu conteúdo sobre a mesa. Permaneceu absorto por uns segundos. Depois, acariciou a poeira esparramada sem entender o que estava vendo. Revirou os caixotes e as estantes. Abriu latas, caixas, garrafas. Não havia nada. Nada para comer nem para beber. Nem mantas, nem ferramentas, nem roupas. Somente alguns utensílios inúteis. Vestígios de jarros que um dia tinham contido algo. Sem olhar para os meninos, como se falasse apenas para si próprio, perguntou se tinham fome. Ninguém respondeu.
     — Sede? — um calafrio fez sua voz tremer.
     Observavam-no, estranhando-o, como se não conseguissem entender o significado de suas palavras. Gismondi abandonou o cômodo, saiu para a rua, correu até as bolsas, carregando-as de volta. Parou diante dos garotos, agitado. Esvaziou a carga sobre a mesa. Pegou um saco ao acaso, abriu-o com os dentes e deixou cair um punhado de açúcar em sua palma. Os meninos olharam como se agachava junto a eles e lhes oferecia algo em sua mão. Porém nenhum deles parecia entender. Foi então que Gismondi sentiu uma presença, percebeu, talvez pela primeira vez no vale, a brisa de um movimento. Levantou-se e olhou para os lados. Um pouco de açúcar caiu no chão. A mulher estava em pé e o observava do umbral da porta. Não era o olhar que mantivera até então; não olhava uma cena nem uma paisagem, olhava para ele.
     — O que quer? — perguntou.
     Era, como as demais, uma voz sonolenta, porém estava carregada de uma autoridade que o surpreendeu. Um dos garotos havia abandonado a cama e agora contemplava a mão repleta de açúcar. A mulher olhou os pacotes esparramados e se voltou com fúria para ele. O cachorro se levantou e rodeou a mesa nervoso. Pela porta e pelas janelas começavam a surgir homens e mulheres, cabeças atrás de cabeças, um tumulto que crescia. Outros cães se acercaram. Gismondi olhou o açúcar em sua mão. Desta vez, enfim, todos concentravam a atenção nele. Mal viu o garoto, sua mão pequena, os dedos úmidos acariciando o açúcar, os olhos fascinados, certo movimento dos lábios que pareciam recordar o doce sabor. Quando o garoto levou os dedos à boca, todos se paralisaram. Gismondi retirou a mão. Viu naqueles que o acompanhavam uma expressão que, à princípio, não chegou a entender. Então sentiu, profunda no estômago, a ferida do corte. Caiu de joelhos. Deixou o açúcar esparramar, e a lembrança da fome crescia acima do vale com a fúria das pestes.

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