sábado, 24 de março de 2012

TRECHO E OS HIPOPÓTAMOS FORAM COZIDOS EM SEUS TANQUES

Jack Kerouac e William S. Burroughs

kerouac-burroughs

1. Will Dennison
Os bares fecham às três nas noites de sábado, então voltei para casa umas quinze para as quatro, depois de tomar o café da manhã do Riker's na esquina da rua Cristopher com a Seventh Avenue. Joguei o News e o Mirror no sofá, tirei meu paletó listrado e deixei em cima dos jornais. Eu estava indo direto para a cama.
Nisso, a campainha tocou. É uma campainha alta que faz a pessoa tremer, então fui logo apertar o botão que abre a porta da rua. Depois tirei meu casaco do sofá e pendurei numa cadeira para ninguém sentar em cima, e coloquei os papéis numa gaveta. Queria ter certeza de que estariam ali quando eu acordasse de manhã. Então fui abrir a porta. Calculei certo, para que não desse tempo nem de eles baterem.
Quatro pessoas entraram na sala. Agora direi a vocês em linhas gerais quem eram essas pessoas e falarei sobre sua aparência, já que a história é basicamente sobre duas delas.
Phillip Tourian tem dezessete anos, metade turco, metade americano. Ele tem vários sobrenomes para escolher, mas prefere Tourian. Seu pai usa o sobrenome Rogers. Cabelos pretos encaracolados na testa, a pele é muito clara, e ele tem olhos verdes. Já estava sentado na cadeira mais confortável com a perna atravessada no braço antes que os outros sequer tivessem entrado.
Esse Phillip é o tipo do menino para quem as bichas letradas escrevem sonetos que começam assim: "Do corvo tens a cor dos cabelos, grego varão...". Usava umas calças muito sujas e uma camisa cáqui com as mangas arregaçadas que exibiam seus antebraços duros e musculosos.
Ramsay Allen é um homem de aparência impressionante, grisalho de seus quarenta e poucos anos, alto e um pouco flácido. Parece um ator decadente ou alguém que já foi alguém um dia. Além disso, ele é do Sul e diz ser de boa família, como todo sulista. É um cara muito inteligente, mas ninguém diria vendo-o agora. Está tão apaixonado pelo Phillip que fica pairando em torno dele como um urubu tímido, com um risinho idiota e forçado na cara.
Al é um dos melhores sujeitos que eu conheço, e a melhor das companhias. Phillip também. Mas quando os dois se juntam sempre acontece alguma coisa; eles formam uma dupla que deixa todo mundo nervoso.
Agnes O'Rourke tem um rosto feioso irlandês e cabelos pretos curtos, e está sempre de calças compridas. Ela é despachada, viril e confiável. Mike Ryko é um finlandês ruivo de dezenove anos, uma espécie de marinheiro mercante vestido de cáqui sujo.
Bem, era só isso, quatro deles, e Agnes tinha uma garrafa.
"Ah, Canadian Club", eu disse. "Entrem e podem sentar", o que todos já tinham feito a essa altura, e peguei alguns copos e todo mundo se serviu de uma dose pura. Agnes me pediu um pouco de água e fui buscar para ela.
Phillip tivera alguma ideia filosófica que aparentemente viera desenvolvendo ao longo da noite e agora eu iria ouvi-la. Ele falou: "Imaginei toda uma filosofa baseada na ideia de que o desperdício é o mal e a criação é o bem. Enquanto você está criando algo, tudo bem. O único pecado é o desperdício das suas potencialidades".
Aquilo me pareceu uma bobagem, então falei: "Eu sei que não passo de um garçom atordoado, mas e os anúncios de sabonete Lifebuoy? Também não são criação?".
Aí ele disse: "É, mas veja, é o que se pode chamar de criação desperdiçada. É uma dicotomia. E existe também o desperdício criativo, como esta conversa com você".
Então eu disse: "Certo, mas qual é o seu critério para diferenciar o desperdício da criação? Qualquer um pode dizer que o que está fazendo é criação e que todas as outras pessoas estão só desperdiçando. É muito genérico, não faz o menor sentido".
Pois bem, isso pareceu atingi-lo bem na testa. Creio que ele não estivesse encontrando muita oposição até ali. De todo modo ele parou com essa filosofa e fiquei feliz porque esse tipo de ideia para mim está no departamento das "coisas sobre as quais ninguém quer ouvir falar".
Phillip então me perguntou se eu tinha maconha e eu disse que só um pouco, mas ele insistiu que queria fumar, então peguei da gaveta da escrivaninha, acendemos um cigarro e passamos na roda. Era um fumo bem ruim, e um baseado só não fez efeito em ninguém.
Ryko, que ficara no sofá todo esse tempo sem falar nada, disse: "Fumei seis baseados em Port Arthur, Texas, e não me lembro de nada de Port Arthur, Texas".
Eu disse: "Está muito difícil arranjar maconha, e eu não sei onde vou conseguir mais quando essa acabar", mas Phillip enrolou outro e começou a fumar mais. Então enchi meu copo de Canadian Club.
Foi quando me ocorreu que aquilo estava estranho, aqueles caras nunca tinham dinheiro, de onde tinha vindo aquele Canadian Club, e então perguntei a eles.
Al disse: "Agnes roubou de um bar".
Parece que Al e Agnes estavam na ponta do balcão do Pied Piper tomando uma cerveja, quando Agnes de repente disse a Al: "Pega o troco e me segue. Estou com uma garrafa de Canadian Club embaixo do casaco". Al foi atrás, mais assustado do que ela. Ele nem tinha visto ela pegando.
Isso tinha acontecido naquela noite e a garrafa agora já estava pela metade. Dei os parabéns a Agnes e ela sorriu confiante.
"Foi fácil", disse ela. "Vou fazer de novo."
Não quando estiver comigo, eu disse a mim mesmo.
Então houve uma calmaria na conversa, mas eu estava com muito sono para dizer qualquer coisa. Falaram algo que não ouvi e então me virei a tempo de ver Phillip dando uma mordida no seu copo e começando a mascar o vidro, o que fez um barulho que se ouvia pela sala toda. Agnes e Ryko fizeram uma cara como se alguém estivesse arranhando uma lousa com as unhas.
Phillip mascou bastante o seu vidro e depois engoliu com a água de Agnes. Aí Al comeu um pedaço também e dei a ele um copo d'água para ajudar a engolir. Agnes me perguntou se eu achava que eles iriam morrer, e eu disse que não, que não havia perigo se você mastigasse bastante; era como engolir um pouco de areia. Todo aquele papo de pessoas que morriam de mascar vidro era boato.
Foi quando tive uma ideia para uma cena e falei: "Estou faltando com meus deveres de anfitrião. Alguém está com fome? Tenho uma coisa muito especial que chegou hoje".
A essa altura, Phillip e Al estavam tirando pedaços de vidro do meio dos dentes. Al tinha ido ao banheiro para olhar as gengivas no espelho, e elas estavam sangrando.
"Eu", Al falou do banheiro.
Phillip disse que andava gostando de comer vidro.
Al me perguntou se era outro daqueles pacotes de comida que a minha mãe mandava, e eu disse que "sim, aliás uma coisa muito gostosa".
Aí entrei na despensa, vasculhei um pouco ali e voltei com um monte de lâminas de navalha num prato e um vidro de mostarda.
Phillip disse: "Seu puto, estou com uma baita fome", e eu achei aquilo muito bom e falei: "Que tal uma cena?".
Ryko disse: "Eu vi um cara comendo lâminas em Chicago. Gilete, copo e lâmpada. No final ele ainda comeu um prato de porcelana".
A essa altura, todo mundo já estava bêbado, menos Agnes e eu. Al estava sentado aos pés de Phillip olhando para ele com uma expressão idiota no rosto. Comecei a desejar que todos fossem para casa.
Então Phillip se levantou, balançando um pouco, e falou: "Vamos subir no telhado".
E Al disse: "Certo", ficando de pé num pulo, como se nenhuma outra sugestão pudesse ser tão maravilhosa.
Eu disse: "Não, não vamos. Vocês vão acordar a minha senhoria. E lá em cima não tem nada para ver".
Al falou: "Vá pro inferno, Dennison", ressentido porque eu estava reprimindo uma ideia de Phillip.
Então eles se esgueiraram pela porta e começaram a subir a escada. A senhoria e a família dela fcam no apartamento em cima do meu, e acima deles tem o telhado.
Sentei-me e me servi de mais um pouco de Canadian Club. Agnes não queria mais e disse que ia para casa. Ryko estava cochilando no sofá, então pus o resto no meu copo, e Agnes se levantou para sair.
Dava para ouvir uma movimentação no telhado e depois ouvi um som de vidro estilhaçando na rua. Andamos até a janela e Agnes disse: "Eles devem ter jogado um copo na rua".
Aquilo me pareceu lógico e então enfiei a cabeça para fora com cuidado, e tinha uma mulher olhando para cima e xingando. Estava ficando claro lá fora.
"Seus loucos de merda", ela dizia, "o que vocês querem? Matar alguém?"
Ora, eu, como bom amante dos contra-ataques, disse: "Cala essa boca. Você está acordando todo mundo. Saia daí ou vou chamar a polícia", e apaguei as luzes como se tivesse sido tirado da cama e voltasse a dormir.
Alguns minutos depois ela foi embora ainda xingando, e eu estava xingando a mim mesmo, só que em silêncio, lembrando dos problemas que aqueles dois já tinham me causado. Lembrei de quando eles bateram o meu carro em Newark e me fizeram ser expulso de um hotel em Washington porque o Phillip mijou pela janela. E tinha muito mais desse tipo de coisa. Quero dizer, coisas de amigos de faculdade, naquele estilo dos anos 1910. Isso acontecia sempre que eles se juntavam. Sozinhos, eram ótimos.
Acendi a luz e Agnes saiu. Estava tudo calmo no telhado.
"Espero que eles não resolvam pular dali", eu disse a mim mesmo, porque Ryko estava dormindo. "Bom, eles que passem a noite empoleirados lá, se quiserem. Eu vou para a cama."
Tirei a roupa e me deitei na cama, deixando Ryko dormindo no sofá. Eram umas seis horas.

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