Um dia ideal para os peixes-banana e livros e cinema e gibis e nus e ataxia espinocerebelar e 𓋹
sábado, 31 de março de 2012
CONTO Leonor
Edgar Allan Poe
Sou oriundo duma raça caracterizada pelo vigor da fantasia e pelo ardor da paixão.
Os homens chamaram-me louco; mas ainda não está resolvido o problema ? se a loucura é ou não a suprema inteligência ? se muito do que é glorioso ? se tudo o que é profundo ? não tem a sua origem numa doença do pensamento ? em modalidades do espírito exaltadas a custa das faculdades gerais. Aqueles que sonham de dia sabem muitas coisas que escapam àqueles que somente de noite sonham. Nas suas vagas visões obtêm relances de eternidade e, quando despertam, estremecem ao verem que estiveram mesmo à beira do grande segredo. Penetram sem leme nem bússola, no vasto oceano da “luz inefável”; e de novo, como os aventureiros do geógrafo núbio, agressi sunt mare tenebrarum, quid in eo esset exploraturi.
Diremos, então, que estou doido. Concordo, pelo menos, em que há dois estados distintos da minha existência mental ? o de uma razão lúcida que não pode ser contestada, e pertence à memória de acontecimentos que constituem a primeira época da minha vida ? e um estado de sombra e dúvida, que abrange o presente e a recordação do que constitui a segunda grande era do meu ser. Por conseqüência, acreditai tudo o que eu disser do primeiro período de minha existência; e dai ao que eu vier a contar dos derradeiros tempos o crédito que se vos afigurar justo; ou ponde-o completamente em dúvida; ou, se não puderes duvidar, fazei como Édipo e procurai decifrar o seu enigma.
Aquela que na minha mocidade amei, e de quem agora, serena e lucidamente, estou traçando estas recordações, era a filha única da única irmã de minha mãe havia muito falecida.
Minha prima chamava-se Leonor. Havíamos sempre vivido juntos, sob um sol tropical, no vale de Many-Coloured Crass. Jamais viandante algum aventurou seus passos por aquele vale; pois se estendia por entre uma cadeia de montes gigantescos, que sobre ele debruçavam as suas escarpas, vedando o acesso dos raios solares aos seus mais aprazíveis recônditos. Nas suas proximidades atalho algum jamais fora trilhado, e, para chegarmos ao nosso lar, não precisávamos afastar, com força, a folhagem de milhares de árvores, nem esmagar milhões de fragrantes flores. Assim vivíamos nós sozinhos, nada sabendo do mundo para além do vale ? eu, minha prima e sua mãe.
Das obscuras regiões de além dos montes, no extremo superior de nossos domínios, descia um estreito e profundo rio, que excedia em brilho e limpidez tudo menos os claros olhos de Leonor; e, serpenteando furtivamente em intrincados meandros, embrenhava-se por fim através de uma sombria garganta, por entre montes ainda mais negros do que aqueles de que brotara. Denominávamo-lo o “Rio do Silêncio”, pois as suas águas pareciam ter a faculdade de tudo emudecer. Do seu leito nenhum murmúrio se erguia, e tão de mansinho ia desfiando seu curso que os diáfanos seixinhos que esmaltavam o fundo e que nós tanto gostávamos de contemplar, permaneciam absolutamente imóveis, refulgindo eternamente no lugar onde um dia se quedaram.
A margem do rio e de muitos cintilantes riachos que, por tortuosos rodeios, a ele afluíam, bem como os espaços que as margens desciam até o leito de seixos do fundo das águas ? todos estes lugares, não menos de que toda a superfície do vale, desde o rio até as montanhas que o circundavam, eram tapetados por uma relva verde, macia, espessa, curta, perfeitamente lisa e perfumada, mas tão profusamente matizada com botões de ouro, margaridas, violetas e asfódelos que a sua extraordinária beleza dilatava nossos corações com eloquência e paixão, do amor e da glória de Deus.
E, aqui e além, em maciços que se diriam antes matas de sonhos, brotavam fantásticas árvores, cujos altos e esguios troncos se não erguiam a prumo, mas, torcendo-se, inclinavam-se para a luz que ao meio-dia irrompia pelo centro do vale. A sua casca apresentava ao mesmo tempo o esplendor do marfim e da prata, e seria mais suave do que tudo não fosse a suave face de Leonor; de sorte que, se não fora o verde brilhante das enormes folhas que das suas copas se alastravam em linhas compridas e trêmulas, embaladas pelos zéfiros, poderia alguém imaginá-las gigantescas serpentes da Síria, prestando homenagem ao seu soberano, o Sol.
De mãos dadas, durante 15 anos, vaguei com Leonor por este vale, antes de o Amor penetrar em nossos corações. Era uma tarde, ao cerrar-se o terceiro lustro da sua vida e o quarto da minha: estávamos sentados, abraçados, debaixo das árvores-serpentes e contemplávamos as nossas imagens refletidas no espelho das águas do rio. Nem mais uma palavra pronunciamos durante o resto daquele doce dia, e na manhã seguinte ainda as nossas palavras eram trêmulas e raras. Do fundo das águas havíamos tirado o deus Eros, e agora sentíamos que havíamos ateado dentro de nós as almas ardorosas dos nossos maiores. As paixões que durante séculos haviam caracterizado a nossa raça acudiam agora de tropel com as fantasias que os haviam igualmente distinguido e bafejavam venturas e bênçãos sobre o vale de Many-Coloured Crass. Tudo como por encanto mudou. Sobre as árvores onde jamais se conhecera uma flor desabrocharam agora estranhas flores em forma de estrela. Tornaram-se mais carregados os tons das alfombras de verdura; e quando uma a uma murcharam as brancas margaridas, surgiram em seus lugares, dez a dez, os asfóidelos da cor dos rubis. E a vida brotava em nossos atalhos; pois o alto flamingo, até aqui nunca visto, com todas as álacres e variegadas aves, ostentava ante nós a sua plumagem escarlate. Peixes de ouro e de prata acorriam agora ao rio, de cujo seio se erguia, de mansinho, um murmúrio que, por fim, foi engrossando até se transformar numa suave melodia mais divina de que a da harpa de Éolo, mais doce do que tudo, não fosse a voz de Leonor. E agora, também uma enorme nuvem, que por muito tempo dominara as regiões do Hesper, avançara num deslumbramento carmesim e ouro e viera pairar serenamente sobre nós, descendo dia a dia até pousar sobre os cumes dos montes, transfigurando-os com o seu glorioso esplendor e encerrando-nos, como que para sempre, dentro duma mágica prisão de magnificência e glória.
O encanto de Leonor era o de um Serafim, mas ela era uma adolescente ingênua e simples como a curta vida que vivera entre as flores. Nenhum artifício mascarava o amor que lhe estuava no coração, e ela examinava comigo os seus mais íntimos recessos, quando passeávamos no vale de Many-Coloured e conversávamos sobre as notáveis transformações que nele ultimamente se haviam operado.
Um dia, finalmente, tendo falado, banhada em pranto da triste e derradeira transformação que a Humanidade deve sofrer, nunca mais deixou de discutir este doloroso assunto, intercalando-o em todas as nossas conversas, como nos cantos do bardo de Schiraz estão constantemente ocorrendo as mesmas imagens, a cada passo repetidas em cada impressionante variação de frase.
Ela tinha visto que o dedo da morte se lhe cravara no seio ? que, como o efêmero, ela fora feita perfeita em encanto e beleza somente para morrer; mas para ela os terrores do túmulo apenas consistiam numa apreensão, que uma tarde, ao crepúsculo, ela me revelou, passeando comigo pelas margens do Rio do Silêncio. O que a penalizava era pensar que, após havê-la sepultado no vale de Many-Coloured, eu abandonaria para sempre aquelas ditosas paragens, transferindo o amor, que só dela tão apaixonadamente agora era, para alguma jovem do mundo exterior e banal. E, então, ao ouvir-lhe expressar este pesar, atirei-me aos pés de Leonor e jurei que nunca me ligaria pelo casamento a filha alguma da Terra ? que jamais eu, fosse de que maneira fosse, trairia a sua querida recordação. Invoquei o Onipotente Senhor como testemunha da pia solenidade do meu juramento. E a maldição de que Deus e dela impetrei, no caso de eu atraiçoar meu juramento, envolvia uma pena cujo extraordinário horror me não permite referi-la aqui.
Os olhos de Leonor se tornaram mais claros, quando eu assim exprimi o carinho que a prendia à minha vida; como se do peito arrancassem um peso mortal; tremeu e chorou amargamente; mas (que era ela senão uma criança?) aceitou o juramento, que lhe tornava mais suave o leito de morte. E disse-me, não muitos dias depois, finando-se tranqüilamente, que, em vista do que eu fizera para alívio e consolo do seu espírito, velaria sempre por mim depois de morta, e se tal lhe fosse permitido, voltaria visivelmente a visitar-me nas vigílias da noite; se, porém, isto ultrapassasse o que às almas no Paraíso é permitido, dar-me-ia, pelo menos, freqüentes indicações de sua presença, suspirando sobre mim nos ventos da tarde ou enchendo o ar que eu respirasse com o perfume dos turíbulos dos anjos. E, com estas palavras, exalou a sua inocente vida, ponto termo à primeira época da minha.
Até aqui é fiel o relato que fiz. Mas, quando transponho a barreira formada pela morte de minha amada e penetro na segunda era da minha existência, sinto uma sombra empolgar-me o cérebro e não confio na perfeita sanidade das minhas palavras. Mas, prossigamos.
Os anos foram-se arrastando pesadamente e eu continuei habitando no vale ? mas uma segunda transformação se operara em todas as coisas. As flores em forma de estrela secaram nas árvores e não mais reapareceram. Apagaram-se os matizes do verde tapete de relva; e, um a um, murcharam os rubros asfódelos e, em seu lugar, surgiram, dez a dez, escuras violetas sempre carregadas de orvalho.
A vida desapareceu dos nossos atalhos; o alto flamingo já não exibia ante nós a sua plumagem escarlate, mas tristemente fugiu do vale para os montes com todas as álacres aves multicores que em sua companhia tinham vindo. Os peixes de ouro e prata nunca mais esmaltaram o nosso doce rio. A suave melodia que encantara mais do que a harpa e Éolo e fora mais divina do que tudo menos a voz de Leonor, foi-se pouco a pouco extinguindo, sumindo-se em murmúrios cada vez mais débeis, até que, por fim, o rio voltou à solenidade do seu primitivo silêncio. E então ergueu-se de novo a enorme nuvem e, abandonando os píncaros dos montes à sua antiga tristeza, recuou para as regiões de Hesper, e consigo levou o áureo esplendor e todas as magnificências que por alguns anos transfiguraram o vale de Many-Coloured Crass.
Todavia, as promessas de Leonor não ficaram no olvido; pois eu ouvia os sons do balouçar dos turíbulos dos anjos; correntes dum sagrado perfume flutuavam permanentemente sobre o vale; nas horas ermas, quando meu coração palpitava pesadamente, os ventos que me refrescavam a fronte vinham carregados de brandos suspiros; indistintos murmúrios ? oh, mas só uma vez! fui desperto de um sono, que se me afigurava o sono da morte, pela pressão de uns lábios espirituais sobre os meus.
Mas o vácuo dentro do meu coração recusava-se, ainda assim, a ser preenchido. Tinha saudades do amor que o enchera a transbordar. Por fim o vale fazia-me sofrer pelas recordações, e abandonei-o então para sempre, trocando-o pelas vaidades e pelos turbulentos triunfos do mundo.
Encontrei-me dentro duma estranha cidade, onde todas as coisas podiam ter servido para me apagaram da lembrança os doces sonhos que por tanto tempo sonhara no vale. O luxo e a pompa de uma corte majestosa, o doido clangor das armas e a radiosa beleza das mulheres desvairaram-me e embriagaram-me o cérebro. Até aqui, porém, ainda a minha alma permanecera fiel aos seus juramentos, e nas horas silentes da noite ainda até mim chegavam as revelações da presença de Leonor.
De súbito, cessaram estas manifestações; mundo escureceu de todo ante os meus olhos, e quedei-me espavorido ante o escaldante pensamento que me possuía ? ante as terríveis tentações que me empolgavam; pois de muito longe, de uma terra distante e ignota, viera para a alegre corte do rei que eu servia, uma donzela a cuja beleza todo o meu perjuro coração imediatamente se rendeu ? a cujos pés me curvei sem uma luta, no mais ardente, no mais abjeto culto de amor.
Que era, na verdade, a minha paixão pela adolescente do vale comparada com o fervor e o delírio, o alucinado êxtase de adoração com que eu depunha toda a minha alma em pranto aos pés da etérea Hermengarda? ? Oh, que deslumbrante era a angélica Hermengarda! E na minha alma para ninguém mais havia lugar. ? Oh, que divina era a celestial Hermengarda! E quando eu sondava as profundezas dos olhos inolvidáveis, só neles pensava ? só neles e nela!
Casei; não me arreceei da maldição que invocara; nem senti o amargor de haver infringido um juramento solene.
Mas uma vez, no silêncio da noite, chegaram até mim, através das minhas persianas, os brandos suspiros que havia muito eu já não ouvia e, numa voz familiar e doce, percebi estas palavras que jamais esquecerei:
- Dorme em paz! ? pois o Espírito do Amor reina e governa e, acolhendo no teu apaixonado coração aquela que se chama Hermengarda, tu és absolvido, por motivos que só no céu serão explicados, dos juramentos que fizeste a Leonor!
quinta-feira, 29 de março de 2012
TRAILER Ai to makoto
Sou admirador da obra do Senhor Takashi Miike. Seus filmes são bizarros, loucos, violentos, poéticos e perfeitos.
quarta-feira, 28 de março de 2012
CONTO O sol da Itália
Isaac Bábel
Estive ontem mais uma vez no quarto de empregados ocupado por pani Eliza, aquecendo-me ao fogo de uma coroa de ramos verdes de abeto. Permaneci sentado ali, perto da estufa tépida,
viva, resmungona, e era noite alta quando voltei para casa. No fundo do barranco, o silencioso Zbrutch rolava suas escuras águas de vidro.
A cidade incendiada – colunas quebradas e ganchos cravados no chão, iguais aos mindinhos de velhas malvadas – parecia suspensa no ar, conveniente e inaudita como num sonho. O brilho
nu da lua derramava-se sobre ela com uma força inesgotável. O musgo úmido dos escombros florescia feito o mármore de uma frisa de teatro. E, com o espírito perturbado, eu esperava a saída de um Romeu por entre as nuvens, um Romeu vestido de cetim, cantando o amor, enquanto, nos bastidores, um eletricista deprimido mantém o dedo no interruptor da lua.
Caminhos azuis fluíam à minha frente, qual rios de leite jorrando de muitos peitos. Na volta para casa, temia encontrar meu vizinho Sídorov, que toda noite pousava em mim a pata
peluda de sua tristeza. Felizmente, naquela noite devastada pelo leite da lua, Sídorov não disse palavra. Cercado de livros, ele escrevia. Em cima da mesa fumegava uma vela corcunda, a pira fúnebre dos sonhadores. Sentado à parte, eu tirava uma pestana, os sonhos pulavam ao meu redor feito gatos. E só bem tarde da noite fui acordado por um ordenança, que viera convocar
Sídorov ao Estado-Maior. Os dois saíram juntos. Então corri até a mesa em que Sídorov ficara escrevendo e dei uma folheada nos livros. Havia ali um manual de língua italiana para autodidatas,
uma reprodução do Fórum Romano e um mapa de Roma. O mapa da cidade estava todo marcado de cruzes e pontos. Debrucei-me sobre uma folha escrita e, com o coração aos pulos, torcendo os dedos, li uma carta alheia. Sídorov, o assassino macambúzio, rasgou em pedaços o algodão rosa de minha imaginação e arrastou-me pelos corredores de sua loucura ajuizada. A carta começava pela segunda folha, e eu não tive coragem de procurar o começo:
... o pulmão perfurado e desatinando um pouco, ou, como diz Serguei, perdendo a cabeça. Mas quem não perde a cabeça de um jeito, acaba perdendo de outro. Pensando bem, é melhor deixar as brincadeiras de lado... Voltemos à ordem do dia, minha amiga Viktória...
Participei da campanha de Makhnó durante três meses, uma farsa extenuante e mais nada... Só Volin ainda continua lá. Volin enverga os paramentos sacerdotais e almeja tornar-se o Lênin da anarquia. É terrível. O batko dá-lhe ouvidos, afagando os arames empoeirados de suas melenas
e soltando entre os dentes cariados sua risadinha de mujique. E eu agora já não sei se não há nisso tudo a erva daninha da anarquia, e se não passaremos a perna em vocês, prósperos membros improvisados de um cc de fabricação caseira, made inKhárkov, a capital improvisada. Bons sujeitos como vocês não gostam de lembrar agora os pecados anarquistas da juventude, e riem-se deles do alto da sabedoria dos dirigentes. O diabo que os carregue...
Depois fui parar em Moscou. Como acabei indo parar em Moscou? Os rapazes tinham esculhambado um fulano num caso de requisição ou coisa assim. Eu, besta, me intrometi. Levei uma surra que foi merecida. O machucado era o de menos, mas em Moscou, ai, Viktória, em Moscou eu emudeci de desgosto. Todos os dias as enfermeiras do hospital me serviam um grãozinho dekacha. Cheias de cerimônia, elas traziam a comida numa enorme bandeja, e eu passei a detestar aquela kacha de brigada de choque, o abastecimento fora do plano e a Moscou planificada. Depois, no soviete, encontrei um punhado de anarquistas. Eram todos janotas ou velhotes meio destrambelhados. Meti-me no Kremlin com um autêntico plano de trabalho. Passaram a mão na minha cabeça e me prometeram o cargo de assessor, caso eu me emendasse. Não me emendei. O que veio depois? Depois veio o front. O Exército de Cavalaria, a tropa,
cheirando a sangue fresco e a restos humanos.
Salve-me, Viktória! A sabedoria dos dirigentes me deixa louco e bêbado de tédio. Se você não me ajudar, acabo batendo as botas sem plano nenhum. Se existe alguém que queira um combatente morto de forma tão desorganizada, certamente não é você, Viktória, a noiva que nunca chegará
a ser esposa. E lá vem o sentimentalismo de novo, pois ele que se ferre...
Agora vamos falar do que importa. A vida militar me aborrece. O ferimento me impede de montar, o que significa que não estou mais em condições de combater. Use sua influência, Viktória, para que me mandem para a Itália. Estou aprendendo italiano e em dois meses já estarei sabendo
falar. Na Itália há fogo sob as cinzas. Lá muitas coisas estão maduras. Só faltam dois tiros. Um deles será disparado por mim. É preciso mandar o rei para o outro mundo. Isso é muito importante. O rei deles é um bom sujeito que, em nome da popularidade, faz-se fotografar na companhia de socialistas domesticados, para sair nas revistas de família.
No CC, no Narkomindel, não vá mencionar nem rei, nem tiros. Eles passariam a mão na sua cabeça e balbuciariam: "É um romântico!". Diga apenas: ele está doente, com raiva, bêbado de tédio, e só quer o sol da Itália e bananas. Pois fez ou não fez por merecer? Só para se tratar e basta (1). Do contrário, que o mandem para a Tcheká de Odessa... Lá eles são muito sensatos e...
Quanta besteira, e que modo besta e injusto de lhe escrever, minha amiga Viktória...
A Itália entrou no meu coração como uma alucinação. Para mim, a idéia daquela terra que nunca vi é doce como um nome de mulher, como o seu nome, Viktória...
terça-feira, 27 de março de 2012
segunda-feira, 26 de março de 2012
TRECHOS Gringo Velho
Carlos Fuentes
“Não a ouviram gritar quando a ponte ardeu em chamas: Estive aqui. Essa terra jamais me deixará. Eles lhe deram as costas e viram-na para sempre entrando num salão de baile cheio de espelhos, sem mirar a si própria porque na verdade adentrava num sonho.”
“A mulher que ele chamava A Lua disse que era estranho ouvir um sino e não saber a origem de seu toque. Foi assim que ela soube que a Revolução chegara a seu vilarejo de Durango: os sinos começaram a repicar numa hora em que ninguém podia identificar com vésperas ou matinas ou qualquer outra coisa: era como um novo tempo, disse, um tempo que não sabíamos imaginar e então ela pensou na regularidade de nosso tempo, geração após geração aferrada às estações tradicionais, às horas consabifas, inclusive os minutos tradicionais: ela foi criada dessa forma, decente, não rica em demasia mas decente, isso sim, seu pai era comerciante de grãos, seu marido um prestamista no mesmo vilarejo onde todos, crianças ou mulheres, levantavam às cinco, para se vestirem quando ainda estava escuro (isso era muito importante, nunca ver o próprio corpo) para em seguida apresentar-se na igreja às seis e voltar para casa com fome, mesmo quando tinham comido o corpo de Cristo (…) e a senhorita me dirá que não era uma vida ruim; mas quando a vida do homem é selada à vida da menina noiva, aí então miss Harriet, essa vida se torna sombria, repetitiva, como acontece com as coisas quando estancam e já não mais florescem a partir do que eram antes de que o homem, o pai, o marido, estivesse presente para garantir que a pessoa continuaria sendo a noiva menina e que o casamento era uma cerimônia de medo…”
domingo, 25 de março de 2012
sábado, 24 de março de 2012
TRECHO E OS HIPOPÓTAMOS FORAM COZIDOS EM SEUS TANQUES
Jack Kerouac e William S. Burroughs
1. Will Dennison
Os bares fecham às três nas noites de sábado, então voltei para casa umas quinze para as quatro, depois de tomar o café da manhã do Riker's na esquina da rua Cristopher com a Seventh Avenue. Joguei o News e o Mirror no sofá, tirei meu paletó listrado e deixei em cima dos jornais. Eu estava indo direto para a cama.
Nisso, a campainha tocou. É uma campainha alta que faz a pessoa tremer, então fui logo apertar o botão que abre a porta da rua. Depois tirei meu casaco do sofá e pendurei numa cadeira para ninguém sentar em cima, e coloquei os papéis numa gaveta. Queria ter certeza de que estariam ali quando eu acordasse de manhã. Então fui abrir a porta. Calculei certo, para que não desse tempo nem de eles baterem.
Quatro pessoas entraram na sala. Agora direi a vocês em linhas gerais quem eram essas pessoas e falarei sobre sua aparência, já que a história é basicamente sobre duas delas.
Phillip Tourian tem dezessete anos, metade turco, metade americano. Ele tem vários sobrenomes para escolher, mas prefere Tourian. Seu pai usa o sobrenome Rogers. Cabelos pretos encaracolados na testa, a pele é muito clara, e ele tem olhos verdes. Já estava sentado na cadeira mais confortável com a perna atravessada no braço antes que os outros sequer tivessem entrado.
Esse Phillip é o tipo do menino para quem as bichas letradas escrevem sonetos que começam assim: "Do corvo tens a cor dos cabelos, grego varão...". Usava umas calças muito sujas e uma camisa cáqui com as mangas arregaçadas que exibiam seus antebraços duros e musculosos.
Ramsay Allen é um homem de aparência impressionante, grisalho de seus quarenta e poucos anos, alto e um pouco flácido. Parece um ator decadente ou alguém que já foi alguém um dia. Além disso, ele é do Sul e diz ser de boa família, como todo sulista. É um cara muito inteligente, mas ninguém diria vendo-o agora. Está tão apaixonado pelo Phillip que fica pairando em torno dele como um urubu tímido, com um risinho idiota e forçado na cara.
Al é um dos melhores sujeitos que eu conheço, e a melhor das companhias. Phillip também. Mas quando os dois se juntam sempre acontece alguma coisa; eles formam uma dupla que deixa todo mundo nervoso.
Agnes O'Rourke tem um rosto feioso irlandês e cabelos pretos curtos, e está sempre de calças compridas. Ela é despachada, viril e confiável. Mike Ryko é um finlandês ruivo de dezenove anos, uma espécie de marinheiro mercante vestido de cáqui sujo.
Bem, era só isso, quatro deles, e Agnes tinha uma garrafa.
"Ah, Canadian Club", eu disse. "Entrem e podem sentar", o que todos já tinham feito a essa altura, e peguei alguns copos e todo mundo se serviu de uma dose pura. Agnes me pediu um pouco de água e fui buscar para ela.
Phillip tivera alguma ideia filosófica que aparentemente viera desenvolvendo ao longo da noite e agora eu iria ouvi-la. Ele falou: "Imaginei toda uma filosofa baseada na ideia de que o desperdício é o mal e a criação é o bem. Enquanto você está criando algo, tudo bem. O único pecado é o desperdício das suas potencialidades".
Aquilo me pareceu uma bobagem, então falei: "Eu sei que não passo de um garçom atordoado, mas e os anúncios de sabonete Lifebuoy? Também não são criação?".
Aí ele disse: "É, mas veja, é o que se pode chamar de criação desperdiçada. É uma dicotomia. E existe também o desperdício criativo, como esta conversa com você".
Então eu disse: "Certo, mas qual é o seu critério para diferenciar o desperdício da criação? Qualquer um pode dizer que o que está fazendo é criação e que todas as outras pessoas estão só desperdiçando. É muito genérico, não faz o menor sentido".
Pois bem, isso pareceu atingi-lo bem na testa. Creio que ele não estivesse encontrando muita oposição até ali. De todo modo ele parou com essa filosofa e fiquei feliz porque esse tipo de ideia para mim está no departamento das "coisas sobre as quais ninguém quer ouvir falar".
Phillip então me perguntou se eu tinha maconha e eu disse que só um pouco, mas ele insistiu que queria fumar, então peguei da gaveta da escrivaninha, acendemos um cigarro e passamos na roda. Era um fumo bem ruim, e um baseado só não fez efeito em ninguém.
Ryko, que ficara no sofá todo esse tempo sem falar nada, disse: "Fumei seis baseados em Port Arthur, Texas, e não me lembro de nada de Port Arthur, Texas".
Eu disse: "Está muito difícil arranjar maconha, e eu não sei onde vou conseguir mais quando essa acabar", mas Phillip enrolou outro e começou a fumar mais. Então enchi meu copo de Canadian Club.
Foi quando me ocorreu que aquilo estava estranho, aqueles caras nunca tinham dinheiro, de onde tinha vindo aquele Canadian Club, e então perguntei a eles.
Al disse: "Agnes roubou de um bar".
Parece que Al e Agnes estavam na ponta do balcão do Pied Piper tomando uma cerveja, quando Agnes de repente disse a Al: "Pega o troco e me segue. Estou com uma garrafa de Canadian Club embaixo do casaco". Al foi atrás, mais assustado do que ela. Ele nem tinha visto ela pegando.
Isso tinha acontecido naquela noite e a garrafa agora já estava pela metade. Dei os parabéns a Agnes e ela sorriu confiante.
"Foi fácil", disse ela. "Vou fazer de novo."
Não quando estiver comigo, eu disse a mim mesmo.
Então houve uma calmaria na conversa, mas eu estava com muito sono para dizer qualquer coisa. Falaram algo que não ouvi e então me virei a tempo de ver Phillip dando uma mordida no seu copo e começando a mascar o vidro, o que fez um barulho que se ouvia pela sala toda. Agnes e Ryko fizeram uma cara como se alguém estivesse arranhando uma lousa com as unhas.
Phillip mascou bastante o seu vidro e depois engoliu com a água de Agnes. Aí Al comeu um pedaço também e dei a ele um copo d'água para ajudar a engolir. Agnes me perguntou se eu achava que eles iriam morrer, e eu disse que não, que não havia perigo se você mastigasse bastante; era como engolir um pouco de areia. Todo aquele papo de pessoas que morriam de mascar vidro era boato.
Foi quando tive uma ideia para uma cena e falei: "Estou faltando com meus deveres de anfitrião. Alguém está com fome? Tenho uma coisa muito especial que chegou hoje".
A essa altura, Phillip e Al estavam tirando pedaços de vidro do meio dos dentes. Al tinha ido ao banheiro para olhar as gengivas no espelho, e elas estavam sangrando.
"Eu", Al falou do banheiro.
Phillip disse que andava gostando de comer vidro.
Al me perguntou se era outro daqueles pacotes de comida que a minha mãe mandava, e eu disse que "sim, aliás uma coisa muito gostosa".
Aí entrei na despensa, vasculhei um pouco ali e voltei com um monte de lâminas de navalha num prato e um vidro de mostarda.
Phillip disse: "Seu puto, estou com uma baita fome", e eu achei aquilo muito bom e falei: "Que tal uma cena?".
Ryko disse: "Eu vi um cara comendo lâminas em Chicago. Gilete, copo e lâmpada. No final ele ainda comeu um prato de porcelana".
A essa altura, todo mundo já estava bêbado, menos Agnes e eu. Al estava sentado aos pés de Phillip olhando para ele com uma expressão idiota no rosto. Comecei a desejar que todos fossem para casa.
Então Phillip se levantou, balançando um pouco, e falou: "Vamos subir no telhado".
E Al disse: "Certo", ficando de pé num pulo, como se nenhuma outra sugestão pudesse ser tão maravilhosa.
Eu disse: "Não, não vamos. Vocês vão acordar a minha senhoria. E lá em cima não tem nada para ver".
Al falou: "Vá pro inferno, Dennison", ressentido porque eu estava reprimindo uma ideia de Phillip.
Então eles se esgueiraram pela porta e começaram a subir a escada. A senhoria e a família dela fcam no apartamento em cima do meu, e acima deles tem o telhado.
Sentei-me e me servi de mais um pouco de Canadian Club. Agnes não queria mais e disse que ia para casa. Ryko estava cochilando no sofá, então pus o resto no meu copo, e Agnes se levantou para sair.
Dava para ouvir uma movimentação no telhado e depois ouvi um som de vidro estilhaçando na rua. Andamos até a janela e Agnes disse: "Eles devem ter jogado um copo na rua".
Aquilo me pareceu lógico e então enfiei a cabeça para fora com cuidado, e tinha uma mulher olhando para cima e xingando. Estava ficando claro lá fora.
"Seus loucos de merda", ela dizia, "o que vocês querem? Matar alguém?"
Ora, eu, como bom amante dos contra-ataques, disse: "Cala essa boca. Você está acordando todo mundo. Saia daí ou vou chamar a polícia", e apaguei as luzes como se tivesse sido tirado da cama e voltasse a dormir.
Alguns minutos depois ela foi embora ainda xingando, e eu estava xingando a mim mesmo, só que em silêncio, lembrando dos problemas que aqueles dois já tinham me causado. Lembrei de quando eles bateram o meu carro em Newark e me fizeram ser expulso de um hotel em Washington porque o Phillip mijou pela janela. E tinha muito mais desse tipo de coisa. Quero dizer, coisas de amigos de faculdade, naquele estilo dos anos 1910. Isso acontecia sempre que eles se juntavam. Sozinhos, eram ótimos.
Acendi a luz e Agnes saiu. Estava tudo calmo no telhado.
"Espero que eles não resolvam pular dali", eu disse a mim mesmo, porque Ryko estava dormindo. "Bom, eles que passem a noite empoleirados lá, se quiserem. Eu vou para a cama."
Tirei a roupa e me deitei na cama, deixando Ryko dormindo no sofá. Eram umas seis horas.
sexta-feira, 23 de março de 2012
quarta-feira, 21 de março de 2012
terça-feira, 20 de março de 2012
TRECHO Crimes
Ferdinand Von Schirach
Fähner
Friedhelm Fähner passara a vida inteira como clínico geral em Rottweil; 2.800 consultas por ano, consultório na rua principal, presidente do Centro Cultural Egípcio, membro do Lions Club, sem antecedentes criminais ou sequer pequenos desvios de conduta. Além da sua casa, tinha outros dois imóveis alugados, um Mercedes Classe E com três anos de fabricação, estofamento de couro e ar-condicionado, cerca de 750 mil euros em ações e obrigações do tesouro e um seguro de vida. Fähner não tinha filhos. Seu único parente ainda vivo era a irmã seis anos mais nova, que vivia com o marido e dois filhos em Stuttgart. A vida de Fähner realmente nada tinha de interessante.
Exceto o caso Ingrid.
Aos 24 anos, Fähner conhecera Ingrid no 60º aniversário de seu pai, que também fora médico em Rottweil.
Rottweil é uma cidade essencialmente burguesa. O estrangeiro que chega não precisa perguntar para saber que a cidade foi fundada pelos Staufer e é a mais antiga do estado de Baden-Württemberg. Com efeito, pode-se encontrar aqui fachadas medievais e lindos brasões do século XVI. Os Fähner sempre viveram aqui. Pertenciam às chamadas primeiras famílias, gerações de conceituados médicos, juízes e farmacêuticos.
Friedhelm Fähner se parecia com o jovem John F. Kennedy. Tinha um rosto afável, e todos o consideravam uma pessoa despreocupada, de bem com a vida. Olhando cuidadosamente, no entanto, percebia-se um quê de tristeza em sua fisionomia, algo de velho e sombrio que não se vê com muita frequência por estas bandas, entre a Floresta Negra e os Alpes da Suábia.
Os pais de Ingrid, farmacêuticos em Rottweil, levaram sua filha à festa de aniversário. Três anos mais velha do que Fähner, ela exibia uma pujante beleza provinciana e seios fartos. De olhos azulados, cabelos negros e pele muito clara, tinha consciência da impressão que causava. Sua voz metálica, de tom singularmente elevado e monocórdio, irritava Fähner. Mas, quando falava baixo, suas palavras soavam como uma melodia.
Não chegara a concluir o ensino médio e trabalhava como garçonete. “Temporariamente”, disse ela a Fähner. Isso não lhe importava. Em outras áreas que mais lhe interessavam, ela já era formada. Até então, Fähner tivera apenas dois breves contatos sexuais com mulheres, que só lhe haviam trazido insegurança.
Imediatamente apaixonou-se por Ingrid.
Dois dias após a festa, ela o seduziu, na volta de um piquenique.
Debaixo de uma marquise, Ingrid deu conta do recado com perfeição. Fähner ficou tão perturbado que, uma semana depois, a pediu em casamento. Sem hesitar, ela aceitou. Fähner era o que se chamava de bom partido; estudava Medicina em Munique, era atraente e carinhoso e estava às vésperas dos primeiros exames finais. Porém, o que mais a atraía era a sua seriedade. Ela não sabia como descrevê-la, mas dizia às amigas que Fähner jamais a abandonaria. Quatro meses depois, estava morando com ele.
Na lua de mel, viajaram para o Cairo, conforme ele desejava. Mais tarde, quando lhe perguntavam sobre o Egito, ele dizia que “não sentira a força da gravidade”, embora soubesse que ninguém o entendia. Lá, ele foi o jovem Parsival, imune aos males do mundo, e foi feliz. Pela última vez em sua vida.
Na noite que antecedeu a viagem de volta, ficaram deitados no quarto do hotel. As janelas estavam abertas, mas o calor persistia; o ar quente parecia estar preso no interior do pequeno aposento. Era um hotel barato, que cheirava a fruta podre, e eles podiam ouvir os ruídos que vinham da rua.
Apesar do calor, haviam feito sexo. Fähner, deitado de costas, acompanhava o movimento do ventilador de teto. Ingrid fumava um cigarro. Virando-se de lado, ela apoiou a cabeça em uma das mãos e pôs-se a contemplá-lo. Ele sorriu. Durante um bom tempo, permaneceram calados.
Então, ela começou a falar. Falou dos homens antes de Fähner, das decepções que tivera e dos erros que cometera, mas sobretudo do tenente francês que a engravidara e do aborto que quase a matara. Estava chorando. Surpreso, ele a abraçou. Em seu peito, sentia o coração dela pulsar, desamparado. Ela confia em mim, pensou.
“Você tem de jurar que vai cuidar de mim. Você não pode me abandonar.” A voz de Ingrid era trêmula.
Comovido, ele tentou acalmá-la. Já o havia jurado na igreja, durante as bodas, era feliz com ela, queria...
Ela o interrompeu bruscamente, e sua voz se elevou, assumindo aquele tom metálico e vulgar. “Jure!”
De súbito, ele entendeu. Não se tratava de uma conversa entre amantes. Num átimo, haviam desaparecido todos os clichês — o ventilador, o Cairo, as pirâmides, o calor do quarto de hotel. Ele a afastou um pouco, a fim de poder olhar em seus olhos, e depois falou. Falou lentamente, e sabia o que estava dizendo. “Eu juro.”
Puxando-a novamente para si, ele a beijou no rosto. E mais uma vez fizeram sexo. Dessa vez foi diferente. Ela se sentou sobre ele e fez dele o que quis. Foram momentos de autenticidade, alheamento e solidão. Ao gozar, ela o esbofeteou. Ele ainda permaneceu acordado por muito tempo, olhando fixamente para o teto. Faltou luz, e o ventilador parou de girar.