Um dia ideal para os peixes-banana e livros e cinema e gibis e nus e ataxia espinocerebelar e 𓋹
quinta-feira, 31 de março de 2011
quarta-feira, 30 de março de 2011
O SEGREDO DOS SEUS OLHOS
Sinopse: Depois de trabalhar uma vida como funcionário no Tribunal Penal, Espósito acaba de se aposentar.Há muito tempo ele sonha escrever um romance, mas, para narrá-lo, ele não pretende inventar nada. Ao contrário, ele quer contar uma história real, ocorrida na Argentina, em 1974: uma história trágica e comovente, da qual foi testemunha e protagonista. Porém, naquela Argentina turbulenta, que entrava em uma longa noite de violência e morte, o crime e a justiça, a política e a vingança eram ventos demasiado poderosos para que os personagens pudessem escapar ilesos àquelas forças.Espósito não escreve apenas por escrever. Mesmo sendo difícil de reconhecer, ele escreve para a mulher que compartilhou com ele aqueles acontecimentos, e pela qual é silenciosamente apaixonado há muito tempo. O sentido que busca para aquela história é o mesmo que ele procura para sua própria vida. Não será um percurso fácil, mas ele sabe que deverá persistir, para entender o que realmente aconteceu, e para compreender a si mesmo. Para ver, clique na imagem e vá ao Filmes com legenda.
terça-feira, 29 de março de 2011
CONSELHOS PARA QUEM QUER ESCREVER
por Bernard Cornwell
O primeiro obstáculo para qualquer novo escritor (além de escrever o livro, é claro) é conseguir colocar o manuscrito na escrivaninha de uma pessoa real, em vez de uma pilha de lama (a pilha de lama é a imensa quantidade de manuscritos não solicitados, que aparecem em todos os escritórios dos editores e que eles raramente conseguem ler), e meu conselho sempre foi encontrar um agente - mas como você encontra um agente? Vá a sua livraria local e consulte o Livro do Ano de Artistas e Escritores (ou seu equivalente no EUA). Ou escreva para a Publisher's Weekly ou para os vendedores de livros ou colunistas da área - ou escreva para um autor que você gosta e peça uma recomendação. Mas tenha certeza de que escolheu o agente certo. Não há sentido em enviar uma ficção para um agente que trabalha apenas com não-ficção. Também me objeto a agentes que cobram para ler o livro. Eu sei que muitos agentes detestam ter que ler vários livros, mas é o trabalho deles, maldição, é cobrar por isso é ridículo.
Você pode, é claro, se aproximar diretamente de um editor. Nenhum editor respeitável irá enganá-lo, mas você não vai fazer um negócio tão bom se não tiver a ajuda de um agente. O contrato de edição é complicado, e se você não entende as minúcias dos direitos dos estrangeiros, livros com desconto, blá blá blá, então você vai estar em uma posição ruim. Agentes entendem essas coisas, e os agentes também sabem que os editores estão procurando por determinados livros e, melhor ainda, muitas vezes eles têm mais tempo para consolidar um novo escritor do que um editor possa ter.
Mesmo escrevendo um bom livro você terá problemas para encontrar um agente. Mas, afinal, o que é um bom livro? A Historical Novel Society recentemente entrevistou diversos agentes da área e recebeu todo tipo de resposta inúteis - "livros que vendam", ou "originalidade" tudo bem, mas o que são essas coisas? Para um escritor de primeira viagem, sentado em sua mesa escrevendo para o vazio terrível, essa é uma questão importante, e é melhor eu adiantar que não há uma resposta para isso. Pense em quantos editores recusaram O Dia do Chacal? Ou mais recentemente, o livro Longitude de Dava Sobel. Ou, o mais famoso, o vasto número de rejeições de Harry Potter! Nós podemos produzir o mais brilhante e original livro e ainda assim sermos recusados(felizmente para alguns de nós o contrário também é verdadeiro).
Mas há algumas pistas escondidas dentro das resposta dos editores para a Historical Novel Society. "Uma voz original" disse um deles enquanto outro falou em entusiasmo, e se você não está entusiasmado pelo livro, então ele não será bom. Escrever não deve ser um trabalho, mas uma alegria. Eu não falo aqui da literatura, da qual eu não sei nada, mas do negócio de escrever livros que sejam bons de ler, e até onde eu sei, ninguém é forçado a escrever. Nós fazemos isso porque achamos que isso é melhor do que trabalhar, e porque é divertido, e embora a produção de um primeiro (ou segundo, ou vigésimo) manuscrito pode ser algo trabalhoso, isso não deve aparecer quando o livro estiver pronto. Escrever é divertido, de verdade!
O que significa que é necessário passar a fase em que você não se diverte, que é usualmente a causada por falta de confiança. Será que o material que estou produzindo é bom? O estilo está bom? Estilo parece ser uma pedra de tropeço para muitos romancistas em primeiro lugar, e o único conselho que posso oferecer é lhe dizer como eu superei isso. O que não significa que tenho um estilo bom, apenas que já não me preocupo com isso. Mas quando eu estava escrevendo Sharpe's Eagle passei horas lendo e relendo o texto datilografado, e cada vez eu ficava mais deprimido pensando que não estava bom o bastante porque o estilo era tão desajeitado, e assim, finalmente, eu tentei uma experiência. Eu digitei as três páginas de um romance de Hornblower, substituindo o nome de Hornblower pelo de Sharpe, e então eu coloquei as páginas em uma gaveta. Depois de três dias eu li as três páginas (e parecia que eu próprio havia transcrito aquilo) e, para meu alívio, descobri que eu era tão crítico do estilo Forester como eu era do meu. Mas Forester foi publicado. A além disso foi bem-sucedido, o que provou que eu estava sendo crítico demais. A experiência me libertou dessa preocupação. Tente você mesmo reproduzir três páginas de um romance de Sharpe em sua própria máquina de escrever ou computador, em seguida, volte a ela e veja só que lixo pode ter publicado!
Mais tarde, quando já havia escrito dois ou três livros, aprendi que estilo é algo que pode ser aplicado nas fases posteriores da escrita. A coisa mais importante, no entanto, é fazer com que a história funcione. Escrever, reescrever, reescrever de novo, e não se preocupe com nada, exceto história. É história, história, história. Esse é o seu negócio. Seu trabalho não é educar os leitores sobre os melhores pontos da diplomacia elisabetana ou a guerra napoleônica ou as terríveis conspirações terroristas, seu trabalho é divertir e entreter as pessoas que tiveram um dia difícil no trabalho. O que você publicará? Não será estilo, não será pesquisa, e sim história. Uma vez que ela funcione, o resto vem sozinho. O trabalho duro é conseguir uma história. Uma vez escrevi 12 mil palavras de história para o Edição de Natal do Daily Mail. Eu levei oito dias para conseguir que a história funcionasse e três horas para reescrever todo o texto, e essa reescrita incluía um vilão totalmente novo. Mas uma vez que a história funcione porque haver diversos problemas que mesmo assim a história será forte o bastante para suportá-los.
Kurt Vonnegut uma vez deu um excelente conselho. Toda boa história, segundo ele, começa com uma pergunta. Harry se encontra com Anne e quer casar com ela. Há a questão já está aí. Ele vai conseguir? Mas Harry já está casado com Catarina, aí está o seu enredo. Simples, não é? E se a sua pergunta inicial estiver certo, então, a busca da resposta vai impulsionar o leitor através do livro. E mais importante, ela irá impulsionar o escritor através do livro. Eu sei que há diferenças de opinião aqui, mas eu só posso falar por mim e eu raramente sei como um livro que estou escrevendo vai acabar quando eu começo, e mesmo quando eu acho que eu sei, eu costumo vir a estar errado. Como você pode saber? Cada história é nova, e se é incalculável, como você sabe o final? Você escreve para descobrir o que vai acontecer, e é a emoção dessa descoberta deve dar ao manuscrito seu entusiasmo.
E uma vez que você tiver sua história, você deve mantê-la em movimento. Se eu pudesse voltar no tempo eu iria reescrever o primeiro terço do Rei de Inverno para comprimir a história, porque quando eu escrevi eu estava muito ocupado criando um mundo quando eu deveria ter mantido os personagens ocupados.Mas como você sabe quando você está perdendo o ritmo? Como você sabe se uma cena é muito longa, ou se uma explicação discursiva é apropriada em um capítulo particular? Com o tempo isso se torna instintivo, mas um romancista de primeira viagem pode muito bem não ter esses instintos. Neste caso só há uma coisa a fazer, algo que eu muitos escritores profissionais fizeram quando começaram, e algo que raramente parece ser recomendável.
Suponha que você decida construir uma ratoeira melhor. Você começaria, certamente, desmontando a ratoeiras existente para ver como eles funcionavam. Você deve fazer o mesmo com os livros. Quando eu escrevi A Águia de Sharpe, sem nunca ter escrito um livro antes, comecei por desmontar três outros livros. Dois foram de Hornblowers, e não lembro qual foi o terceiro, mas eu gostava de todos eles. Então eu li eles novamente, mas desta vez eu fiz enormes gráficos coloridos que mostravam o que estava acontecendo parágrafo por parágrafo, através dos três livros. Quanto teve de ação? E onde estava a ação no plano geral do livro? Quanto diálogo? Quanto romance? Quanto flashback (eu odeio flashback)? Quanta informação de fundo? Onde o escritor a colocava? Eu já sabia o que eu gostava nos livros, e eu estava determinado a ter as mesmas qualidades no meu livro, e eu sabia o que eu não gostava, e queria usar menos disso, mas os três grandes gráficos (infelizmente eu os perdi) eram meus planos. Não foi plágio, mas foi imitação. Eu aprendi a começar com uma cena bastante frenética, e manter esse ritmo antes de eu diminuir o ritmo para fornecer as informações necessárias. Eu aprendi, se você preferir, a estrutura de um best-seller, e então eu impus essa estrutura no que eu estava escrevendo. Atualmente eu não penso mais nisso (eu devia ter feito isso com O Rei do Inverno), mas nos primeiros três ou quatro anos, as análises foram inestimáveis.
Seu livro deve ter uma voz original. Mas vai, não vai? Porque há apenas um de você, e a não ser que você seja um gênio da literatura de alta classe, você estará produzindo um livro que está dentro de um gênero reconhecível, e você vai melhorar muito suas chances de sucesso se você reservar um tempo para estudar trabalhos bem sucedidos do mesmo gênero. Porque não aprender com os autores de sucesso? Desmonte os seus livros, em seguida, faça melhor. Se você se preocupa que a longa cena em seu capítulo quatro é muito longa, então veja como outros escritores abordaram cenas semelhantes em um estágio comparável de seu livro. As respostas a muitas perguntas já estão nas suas prateleiras, mas você tem que cavar.
Pesquisa, o quanto é necessário? A resposta é irritantemente contraditória - o máximo que você puder fazer e o mínimo necessário. Com isso quero dizer que você nunca sabe o suficiente sobre o período escolhido, e assim toda a sua vida torna-se um projeto de investigação sobre o século 16 ou 18 ou qualquer século que você está escrevendo, mas quando se trata de um livro específico realmente não há pesquisa demais. Porque pesquisar sobre o mobiliário do século 18, se o livro não falará disso? Faça uma pesquisa enquanto você se sentir confortável fazendo, escreva o livro e veja onde estão as lacunas, e depois vá pesquisar essas lacunas. Mas não fique preso em investigação - algumas pessoas não fazem nada além de pesquisa e nunca mais se voltam para escrever o livro.
Nada, suponho, pode garantir o sucesso. Parece-me que há uma grande dose de sorte em todo o processo. Tive sorte em conhecer o meu agente (suas primeiras palavras para mim foram: "Deve ser um maldito de um livro!"), tive sorte em encontrar um editor que entendeu que primeiros livros raramente se tornam best-sellers (alguns sim), mas que se insistirmos na série ela pode se tornar um sucesso, e tive sorte em ter uma esposa que estava disposta a manter o lobo fora da porta enquanto eu escrevia os primeiros livros. E eu também sou extremamente sortudo por - vinte anos depois ainda ter o mesmo agente, editor e esposa. Então sorte é importante e o setor editorial é caprichoso, e o mundo é injusto, mas se você entender que seu trabalho não é ser um historiador, mas ser um contador de histórias, e se você der ao trabalho de descobrir como as histórias são contadas, você pode melhorar sua sorte.
No final, você tem que escrever o livro. Escreva, lembre-se que todos os escritores começaram assim como você, sentado a uma mesa e, secretamente, duvidando que pudessem terminar a tarefa. Mas insista. Uma página por dia e em um ano você tem um livro escrito! E divirta-se! Escrever, como muitos de nós temos descoberto, é muito melhor do que trabalhar.
Traduzido por Michael Hasfel
segunda-feira, 21 de março de 2011
domingo, 20 de março de 2011
sábado, 19 de março de 2011
A MULHER QUE QUERO
Pio Vargas
Eu quero uma mulher de aço
que seja leve como a pena,
cujo sorriso seja um laço
a me prender como um poema.
Eu quero uma mulher madura
a me guiar durante o dia,
quando for noite ser vadia
a me domar sem armadura
e a me tomar como num sonho,
uma mulher que seja a lua
dentro do sol em que me ponho.
Eu quero uma mulher de ferro
com um aplauso pra quando acerto
e um perdão pra quando erro,
como alguém que seja o brilho
dentro do escuro em que me encerro.
Uma mulher que seja plena
uma amante de verdade
que seja motivo de lembrança
e um intervalo na saudade
que, diurna, me cuida,
mas que, noturna me invade.
Eu quero uma mulher-mãe
que seja vinho, cerveja,
refrigerante, champanhe,
que me entenda se viajo
e se fico me acompanhe.
Eu quero uma mulher toda
que me edifique como homem
e algo depois me exploda.
O MESTRE E A MARGARIDA
Mikhail Bulgákov
Um trecho:
1
Nunca falem com estranhos.
Na hora de um quente pôr do sol primaveril, surgiram dois cidadãos em Patriarchi Prudý. O primeiro, com aproximadamente quarenta anos, trajava um costume cinza de verão, era de estatura baixa, cabelos escuros, rechonchudo, careca, na mão seu respeitável chapéu Fedora. Óculos de tamanho sobrenatural de armação preta de chifre ornavam seu rosto cuidadosamente escanhoado. O segundo era um jovem de ombros largos, arruivado, hirsuto, com um boné xadrez caído na nuca, camisa de caubói, calças brancas amarrotadas e tênis pretos.
O primeiro era nada mais nada menos que Mikhail Aleksándrovitch Berlioz, editor de uma volumosa revista de arte e presidente do conselho administrativo de uma das maiores associações literárias de Moscou, abreviadamente denominada Massolit. Já seu jovem acompanhante era o poeta Ivan Nikoláievitch Ponyriov, que escrevia sob o pseudônimo de Bezdômny.
Assim que entraram na sombra das tílias verdejantes, os escritores se precipitaram para um quiosque multicolorido com a placa "Cerveja e refrescos".
Sim, convém destacar a primeira esquisitice desse terrível entardecer de maio. Não só perto do quiosque, mas também em toda a aleia paralela à rua Málaia Brônnaia, não havia vivalma. Naquela hora, quando não se tinha forças nem para respirar, quando o sol, após incandescer Moscou, mergulhava numa neblina seca em algum lugar de Sadôvoie Koltsô, ninguém viera para a sombra das tílias, ninguém se sentara no banco, a aleia estava vazia.
- Uma água com gás - pediu Berlioz.
- Não tem - respondeu a mulher do quiosque, e sabe-se lá por que se ofendeu.
- Tem cerveja? - quis saber Bezdômny, com a voz rouca.
- Vão trazer mais tarde - respondeu a mulher.
- Então tem o quê? - perguntou Berlioz.
- Refresco de damasco, e só quente - disse a mulher.
- Então vai, pode ser, pode ser!...
O refresco de damasco formou uma espuma densa e amarela, surgiu no ar um cheiro de cabeleireiro. Depois de beberem, os literatos imediatamente começaram a soluçar, pagaram e sentaram-se no banco, de frente para o lago e de costas para a Brônnaia.
Nesse momento, ocorreu a segunda esquisitice, que só tinha a ver com Berlioz. Ele parou de soluçar repentinamente, seu coração bateu e, num rufo, sentiu como se tivesse despencado para algum lugar e depois voltado, mas com uma agulha cega cravada nele. Além disso, Berlioz foi tomado por um medo infundado, mas tão forte, que teve vontade de sair correndo imediatamente de Patriarchi, sem olhar para trás.
Berlioz olhou em volta angustiado, sem entender o que o assustara tanto. Empalideceu, enxugou a testa com um lenço e pensou: "O que está acontecendo comigo? Nunca senti isso... o coração está falhando... estou esgotado... Acho que está na hora de mandar tudo para o inferno e ir para Kislovôdsk..."
Na mesma hora, o ar tórrido condensou-se diante dele e desse ar fez-se um cidadão transparente, de aspecto estranhíssimo. Na pequena cabeça, um boné de jóquei, um paletó xadrez apertado e também vaporoso... Um cidadão de estatura colossal, mas de ombros estreitos, incrivelmente magro e de fisionomia, quero destacar, zombeteira.
A vida de Berlioz transcorria de tal modo que ele não estava acostumado a fenômenos extraordinários. Empalidecendo ainda mais, ele esbugalhou os olhos e pensou, confuso: "Isso não pode ser real!"
Mas infelizmente era real, e através daquilo se via um cidadão alongado e transparente, que balançava diante dele, ora para a esquerda ora para a direita, sem tocar no chão.
Nesse instante, o pavor tomou conta de Berlioz de tal forma que ele fechou os olhos. Quando os abriu, viu que tudo tinha acabado, a miragem evaporara, o xadrez desaparecera e, a propósito, a agulha cega se desprendera de seu coração.
sexta-feira, 18 de março de 2011
quinta-feira, 17 de março de 2011
OS DEVANEIOS DO GENERAL
Érico Veríssimo
Abre-se uma clareira azul no escuro céu de inverno.
O sol inunda os telhados de Jacarecanga. Um galo salta para cima da cerca do quintal, sacode a crista vermelha que fulgura, estica o pescoço e solta um cocoricó alegre. Nos quintais vizinhos outros galos respondem.
O sol! As poças d’água que as últimas chuvas deixaram no chão se enchem de jóias coruscantes. Crianças saem de suas casas e vão brincar nos rios barrentos das sarjetas. Um vento frio afugenta as nuvens para as bandas do norte e dentro de alguns instantes o céu é todo um clarão de puro azul.
O General Chicuta resolve então sair da toca. A toca é o quarto. O quarto fica na casa da neta e é o seu último reduto. Aqui na sombra ele passa as horas sozinho, esperando a morte. Poucos móveis: a cama antiga, a cômoda com papeis velhos, medalhas, relíquias, uniformes, lembranças; a cadeira de balanço, o retrato do Senador; o busto do Patriarca; duas ou três cadeiras… E recordações… Recordações dum tempo bom que passou, — patifes! — dum mundo de homens diferentes dos de hoje. — Canalhas! — duma Jacarecanga passiva e ordeira, dócil e disciplinada, que não fazia nada sem primeiro ouvir o General Chicuta Campolargo.
O general aceita o convite do sol e vai sentar-se à janela que dá para a rua. Ali está ele com a cabeça atirada para trás, apoiada no respaldo da poltrona. Seus olhinhos sujos e diluídos se fecham ofuscados pela violência da luz. E ele arqueja, porque a caminhada do quarto até a janela foi penosa, cansativa. De seu peito sai um ronco que lembra o do estertor da morte.
O general passa a mão pelo rosto murcho: mão de cadáver passeando num rosto de cadáver. Sua barbicha branca e rala esvoaça ao vento. O velho deixa cair os braços e fica imóvel como um defunto.
Os galos tornam a cantar. As crianças gritam. Um preto de cara reluzente passa alegre na rua com um cesto de laranjas à cabeça.
Animado aos poucos pela ilusão de vida que a luz quente lhe dá, o general entreabre os olhos e devaneia…
Jacarecanga! Sim senhor! Quem diria? A gente não conhece mais a terra onde nasceu… Ares de cidade. Automóveis. Rádios. Modernismos. Negro quase igual a branco. Criado tão bom como patrão. Noutro tempo todos vinham pedir a benção ao General Chicuta, intendente municipal e chefe político… A oposição comia fogo com ele.
O general sorria a um pensamento travesso. Naquele dia toda a cidade ficou alvoroçada. Tinha aparecido na “Voz de Jacarecanga” um artigo desaforado… Não trazia assinatura. Dizia assim: “A hiena sanguinária que bebeu o sangue dos revolucionários de 93 agora tripudia sobre a nossa mísera cidade desgraçada”. Era com ele, sim, não havia dúvida. (Corria por todo o Estado a sua fama de degolador.) Era com ele! Por isso Jacarecanga tinha prendido fogo ao ler o artigo. Ele quase estourou de raiva. Tremeu, bufou, enxergou vermelho. Pegou o revólver. Largou. Resmungou “Patife! Canalha!” Depois ficou mais calmo. Botou a farda de general e dirigiu-se para a Intendência. Mandou chamar o Mendanha, diretor do jornal. O Mendanha veio. Estava pálido. Era atrevido mas covarde. Entrou de chapéu na mão, tremendo. Ficaram os dois sozinhos, frente a frente.
— Sente-se, canalha!
O Mendanha obedeceu. O general levantou-se. (Brilhavam os alamares dourados contra o pano negro do dólmã.) Tirou da gaveta da mesa a página do jornal que trazia o famoso artigo. Aproximou-se do adversário.
— Abra a boca! — ordenou.
Mendanha abriu, sem dizer palavra. O general picou a página em pedacinhos, amassou-os todos numa bola e atochou-a na boca do outro.
— Come! — gritou.
Os olhos de Mendanha estavam arregalados. O sangue lhe fugira do rosto.
— Coma! — sibilou o general.
Mendanha suplicava com o olhar. O general encostou-lhe no peito o cano do revolver e rosnou com raiva mal contida.
— Coma, pústula!
E o homem comeu.
Um avião passa roncando por cima da casa, cujas vidraças trepidam. O general tem um sobressalto desagradável. A sombra do grande pássaro se desenha lá em baixo, no chão do jardim. O general ergue o punho para o ar, numa ameaça.
— Patifes! Vagabundos, ordinários! Não têm mais o que fazer? Vão pegar no cabo duma enxada, seus canalhas. Isso não é serviço de homem macho.
Fica olhando, com olho hostil, o avião amarelo que passa voando rente aos telhados da cidade.
No seu tempo não havia daquelas engenhocas, daquelas malditas máquinas. Para que servem? Para matar gente. Para acordar quem dorme. Para gastar dinheiro. Para a guerra. Guerras covardes, as de hoje! Antigamente brigava-se em campo aberto, peito contra peito, homem contra homem. Hoje se metem os poltrões nesses “banheiros” que voam, e lá de cima se põem a atirar bombas em cima da infantaria. A guerra perdeu toda a sua dignidade.
O general remergulha no devaneio.
93… Foi lindo. O Rio Grande inteiro cheirava a sangue. Quando se aproximava a hora do combate, ele ficava assanhado. Tinha perto de cinqüenta anos mas não se trocava por nenhum rapaz de vinte.
Por um instante, o general se revê montado no seu tordilho, teso e glorioso, a espada chispando ao sol, o pala voando ao vento… Vejam só! Agora está aqui, um caco velho, sem força nem serventia, esperando a todo instante a visita da morte. Pode entrar. Sente-se. Cale a boca!
Morte… O general vê mentalmente uma garganta aberta sangrando. Fecha os olhos e pensa naquela noite… Naquela noite que ele nunca mais esqueceu. Naquela noite que é uma recordação que o há de acompanhar decerto até o outro mundo… se houver outro mundo.
Os seus vanguardeiros voltaram contando que a força revolucionária estava dormindo desprevenida, sem sentinelas… Se fizessem um ataque rápido, ela seria apanhada de surpresa. O general deu um pulo. Chamou os oficiais. Traçou o plano. Cercariam o acampamento inimigo. Marchariam no maior silêncio e, a um sinal, cairiam sobre os “maragatos”. Ia ser uma festa! Acrescentou com energia: “Inimigo não se poupa. Ferro neles!”
Sorriu um sorriso torto de canto de boca. (Como a gente se lembra dos mínimos detalhes…) Passou o indicador da mão direita pelo próprio pescoço, no simulacro duma operação familiar… Os oficiais sorriam, compreendendo. O ataque se fez. Foi uma tempestade. Não ficou nenhum prisioneiro vivo para contar dos outros. Quando a madrugada raiou, a luz do dia novo caiu sobre duzentos homens degolados. Corvos voavam sobre o acampamento de cadáveres. O general passou por entre os destroços. Encontrou conhecidos entre os mortos, antigos camaradas. Deu com a cabeça dum prisioneiro fincada no espeto que na tarde anterior servira aos maragatos para assar churrasco. Teve um leve estremecimento. Mas uma frase soou-lhe na mente: “Inimigo não se poupa”.
O general agora recorda… Remorso? Qual! Um homem é um homem e um gato é um bicho.
Lambe os lábios gretados. Sede. Procura gritar:
— Petronilho!
A voz que sai da garganta é tão remota e apagada que parece a voz de um moribundo, vinda do fundo do tempo, dum acampamento de 93.
— Petronilho! Negro safado! Petronilho!
Começa a bater forte no chão com a ponta da bengala, frenético. A neta aparece à porta. Traz nas mãos duas agulhas vermelhas de tricô e um novelo de lã verde.
— Que é, vovô?
— Morreu a gente desta casa? Ninguém me atende. Canalhas! Onde está o Petronilho?
— Está lá fora, vovô.
— Ele não ganha pra cuidar de mim? Então? Chame ele.
— Não precisa ficar brabo, vovô. Que é que o senhor quer?
— Quero um copo d’água. Estou com sede.
— Por que não toma suco de laranja?
— Água, eu disse.
A neta suspira e sai. O general entrega-se a pensamentos amargos. Deus negou-lhe filhos homens. Deu-lhe uma única filha mulher que morreu no dia em que dava à luz uma neta. Uma neta! Por que não um neto, um macho? Agora aí está a Juventina, metida o dia inteiro com tricôs e figurinos, casada com um bacharel que fala em socialismo, na extinção dos latifúndios, em igualdade. Há seis anos nasceu-lhe um filho. Homem, até que enfim! Mas está sendo mal educado. Ensinam-lhe boas maneiras. Dão-lhe mimos. Estão a transformá-lo num maricas. Parece uma menina. Tem a pele tão delicada, tão macia, tão corada… Chiquinho… Não tem nada que lembre os Campolargos. Os Campolargos que brilharam na guerra do Paraguai, na Revolução de 1893 e que ainda defenderam o governo em 1923…
Um dia ele perguntou ao menino:
— Chiquinho, você quer ser general como o vovô?
— Não. Eu quero ser doutor como o papai.
— Canalhinha! Patifinho!
Petronilho entra, trazendo um copo de suco de laranja.
— Eu disse água! — sibila o general.
O mulato sacode os ombros.
— Mas eu digo suco de laranja.
— Eu quero água. Vá buscar água, seu cachorro!
Petronilho responde sereno:
— Não vou, general de bobagem…
O general escabuja de raiva, esgrime a bengala, procurando inutilmente atingir o criado. Agita-se todo, num tremor desesperado.
— Canalha! — cicia arquejante — Vou te mandar dar umas chicotadas!
— Suco de laranja — cantarola o mulato.
— Água! Juventina! Negro patife! Cachorro!
Petronilho sorri:
— Suco de laranja, seu sargento!
Com um grito de fera o general arremessa a bengala na direção do criado. Num movimento ágil de gato, Petronilho quebra o corpo e esquiva-se do golpe.
O general se entrega. Atira a cabeça para trás e, de braços caídos, fica todo trêmulo, com a respiração ofegante e os olhos revirados, uma baba a escorrer-lhe pelos cantos da boca mole, parda e gretada.
Petronilho sorri. Já faz três anos que assiste com gozo a esta agonia. Veio oferecer-se de propósito para cuidar do general. Pediu apenas casa, comida e roupa. Não quis mais nada. Só tinha um desejo: ver os últimos dias da fera. Porque ele sabe que foi o general Chicuta Campolargo que mandou matar o seu pai. Uma bala na cabeça, os miolos escorrendo para o chão… Só porque o mulato velho na última eleição fora o melhor cabo eleitoral da oposição. O general chamou-o a intendência. Quis esbofeteá-lo. O mulato reagiu, disse-lhe desaforos, saiu altivo. No outro dia…
Petronilho compreendeu tudo. Muito menino, pensou na vingança mas, com o correr do tempo, esqueceu. Depois a situação política da cidade melhorou. O general aos poucos foi perdendo a autoridade. Hoje os jornais já falam na “hiena que bebeu em 93 o sangue dos degolados”. Ninguém mais dá importância ao velho. chegou aos ouvidos de Petronilho a notícia de que a fera agonizava. Então ele se apresentou como enfermeiro. Agora goza, provoca, desrespeita. E fica rindo… Pede a Deus que lhe permita ver o fim, que não deve tardar. É questão de meses, de semanas, talvez até de dias… O animal passou o inverno metido na toca, conversando com os seus defuntos, gritando, dizendo desaforos para os fantasmas, dando vozes de comando: “Romper fogo! Cessar Fogo! Acampar”.
E recitando coisas esquisitas. “V. Exa. precisa de ser reeleito para glória do nosso invencível Partido”. Outras vezes olhava para o busto e berrava: “Inimigo não se poupa. Ferro neles”.
Mais sereno agora, o general estende a mão pedindo. Petronilho dá-lhe o copo de suco de laranja. O velho bebe, tremulamente. Lambendo os beiços, como se acabasse de saborear o seu prato predileto, o mulato volta para a cozinha, a pensar em novas perversidades.
O general contempla os telhados de Jacarecanga. Tudo isto já lhe pertenceu… Aqui ele mandava e desmandava. Elegia sempre os seus candidatos; derrubava urnas, anulava eleições. Conforme a sua conveniência, condenava ou absolvia réus. Certa vez mandou dar uma sova num promotor público que não lhe obedeceu à ordem de ser brando na acusação. Doutra feita correu a relho da cidade um juiz que teve o caradurismo de assumir ares de integridade de opor resistência a uma ordem sua.
Fecha os olhos e recorda a glória antiga.
Um grito de criança. O general baixa os olhos. No jardim, o bisneto brinca com os pedregulhos do chão. Seus cabelos louros estão incendiados de sol. O general contempla-o com tristeza e se perde em divagações…
Que será o mundo de amanhã, quando Chiquinho for homem feito? Mais aviões cruzarão nos céus. E terá desaparecido o último “homem” da face da terra. Só restarão idiotas efeminados, criaturas que acreditam na igualdade social, que não têm o sentido da autoridade, fracalhões que não se hão de lembrar dos feitos dos seus antepassados, nem… Oh! Não vale a pena pensar no que será amanhã o mundo dos maricas, o mundo de Chiquinho, talvez o último dos Campolargos!
E, dispnéico, se entrega de novo ao devaneio, adormentado pela carícia do sol.
De repente, a criança entra de novo na sala, correndo, muito vermelho:
— Vovô! Vovô!
Traz a mão erguida e seus olhos brilham. Faz alto ao pé da poltrona do general.
— A lagartixa, vovozinho…
O general inclina a cabeça. Uma lagartixa verde se retorce na mãozinha delicada, manchada de sangue. O velho olha para o bisneto com ar interrogador. Alvorotado, o menino explica:
— Degolei a lagartixa, vovô!
No primeiro instante o general perde a voz, no choque da surpresa. Depois murmura, comovido:
— Seu patife! Seu canalha! Degolou a lagartixa? Muito bem. Inimigo não se poupa. Seu patife!
E afaga a cabeça do bisneto, com uma luz de esperança nos olhos de sáurio.
quarta-feira, 16 de março de 2011
MENSUR
A nova graphic novel de Rafael Coutinho é baseada em uma prática de esgrima das fraternidades alemãs, em voga dos séculos 16 ao 19 mas que existe até hoje. Não se trata de um esporte, mas de um ritual de passagem e preservação da honra e fortalecimento dos laços entre os homens.
DANÇA, DANÇA BONEQUINHA
Hans Christian Andersen
— Oh, não passa de uma cantiguinha idiota para criancinhas pequeninas — declarou a tia Malle. — Por muito boa vontade que tenha, não vejo qualquer significado na Dança, dança, bonequinha.É uma palermice, um disparate!
Mas a pequena Amália via grande significado na cantiga. Ela tinha só três anos, mas já sabia brincar às bonecas e estava a educar as suas para serem tão inteligentes como a tia Malle.
Costumava ir lá a casa um estudante, que ajudava os irmãos da Amália a fazer os trabalhos de casa e conversava muito com ela e com as suas bonecas. Ele fazia-a rir, porque era muito engraçado e brincalhão, mas nunca fazia troça dela e falava de coisas importantes que ambos compreendiam.
A tia Malle insistia em que ele não sabia lidar com crianças e que as cabecitas delas não podiam entender todos os seus disparates ridículos. Mas a da pequena Amália podia. Na realidade, ela aprendeu a cantiga do estudante toda de cor e costumava cantá-la às suas três bonecas. Duas delas eram novas, uma menina e um menino, e a terceira já tinha um ano e chamava-se Lisa. Lisa ouvia a cantiga — e até entrava nela!
Dança, dança, bonequinha!
Como ela é bonitinha!
Bonito também é o seu noivo, Raul,
De calças brancas e casaco azul,
Com um chapéu alto, encantador,
E sapatos novos que lhe fazem dor!
Ele é belo, ela uma estrelinha,
Dança, dança, bonequinha.
A Lisa do ano passado
Dança com ar engraçado.
Louro é o cabelo que tem
E o seu rosto brilha também.
Parece ser a mais nova,
A velha Lisa, que canta a trova.
Roda e salta ainda uma vez,
Dancem lá todas as três!
Dancem leves como o ar,
Não há nada que enganar.
É preciso que não esqueçam
As piruetas quando dançam.
Com vénia à esquerda e à direita
A dança será perfeita!
Alegrias, meu tesouro,
Bonequinhas, petiz d’ouro.
Bem, as bonecas compreendiam a canção, a pequena Amália compreendia-a e o estudante também. Afinal, ele é que a tinha escrito e ele dizia que era excelente. Só a tia Malle é que não a percebia — mas a verdade é que ela já tinha saído do mundo da infância há tanto tempo que não admirava. A tia Malle podia dizer que a cantiga era um disparate, mas a Amália não achava. E continuava a cantá-la.
É por ela a cantar que a temos aqui.
TRÓPICO DE CÂNCER
Henry Miller
Trechos:
Hoje sinto orgulho que dizer que sou inumano, que não pertenço a homens e governos, que nada tenho a ver com a maquinaria rangente da humanidade – eu pertenço à terra! (...)
Lado a lado com a espécie humana corre outra raça de seres, os inumanos, a raça de artistas que, incitados por desconhecidos impulsos, tomam a massa sem vida da humanidade e, pela febre e pelo fermento com que a impregnam, transformam a massa úmida em pão, e pão em vinho, e o vinho em canção. Do composto morto e da escória inerte criam uma canção que contagia. Vejo esta outra raça de indivíduos esquadrinhando o universo, virando tudo de cabeça pra baixo, e os pés sempre se movendo em sangue e lágrima, as mãos sempre vazias, sempre se estendendo na tentativa de agarrar o além, o deus inatingível: matando tudo ao seu alcance a fim de acalmar o monstro que lhe corrói as entranhas. (...) E tudo quanto fique aquém desse aterrorizador espetáculo, tudo quanto seja menos sobressaltante, menos terrificante, menos louco, menos delirante, menos contagiante, não é arte. Esse resto é falsificação. Esse resto é humano. Pertence a vida e à ausência de vida.
(...) Se sou inumano é porque meu mundo transbordou de suas fronteiras humanas, porque ser humano parece uma coisa pobre, triste, miseravel, limitada pelos sentidos, restringidas pelas moralidades e pelos códigos, definida pelos lugares-comuns e ismos.
(...) Tenhamos um mundo de homens e mulheres com dínamos entre as pernas, um mundo de fúria natural, de paixão, ação, drama, sonhos, loucuras, um mundo que produza êxtase e não peidos secos.
(...) Que os mortos comam os mortos. Dancemos nós os vivos, à beira da cratera, uma última e agonizante dança. Mas que seja uma dança!
Não tenho dinheiro, nem recursos, nem esperanças. Sou o mais feliz dos homens vivos. Há um ano, háseis meses, eu pensava ser um artista. Não penso mais nisso. Eusou. Tudo quanto era literatura se desprendeu de mim. Não há mais livros a escrever, graças a Deus.
E isto, então? Isto não é um livro. Isto é uma injúria, calúnia, difamação de caráter. Isto não é um livro, no sentindo comum da palavra. Não, isto é um prolongado insulto, uma cusparada na cara da Arte, um pontapé no traseiro de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza... e do que mais quiserem. Vou cantar para você, um pouco desafinado talvez, mas vou cantar. Cantarei enquanto você coaxa, dançarei sobre seu cadáver sujo...
segunda-feira, 14 de março de 2011
quarta-feira, 9 de março de 2011
sexta-feira, 4 de março de 2011
O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO
José Saramago
Um trecho:
Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe porque ele não sabe o que fez. Depois, foi morrendo no meio de um sonho, estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo os ombros e sorrindo também, Nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu pode dar-me todas as respostas. Ainda havia nele um resto de vida quando sentiu que uma esponja embebida em água e vinagre lhe roçava os lábios, e então, olhando para baixo, deu por um homem que se afastava com um balde e uma cana ao ombro. Já não chegou a ver, posta no chão, a tigela negra para onde o seu sangue gotejava.
quinta-feira, 3 de março de 2011
DESONRA
J.M. Coetzee
Um trecho:
1
Para um homem de sua idade, cinqüenta e dois, divorciado, ele tinha, em sua opinião, resolvido muito bem o proble-ma de sexo. Nas tardes de quinta-feira, vai de carro até Green Point. Pontualmente às duas da tarde, toca a campainha da portaria do edifício Windsor Mansions, diz seu nome e entra. Soraya está esperando na porta do 113. Ele vai direto até o quarto, que cheira bem e tem luz suave, e tira a roupa. Soraya surge do banheiro, despe o roupão, escorrega para a cama ao lado dele. "Sentiu saudade de mim?", ela pergunta. "Sinto saudade o tempo todo", ele responde. Acaricia seu corpo marrom cor-de-mel, sem marcas de sol, deita-a, beija-lhe os seios, fazem amor.
Soraya é alta e magra, de cabelo preto comprido e olhos escuros, brilhantes. Tecnicamente, ele tem idade para ser seu pai; só que, tecnicamente, dá para ser pai aos doze. Ele está na agenda dela faz mais de um ano; ele acha que ela é perfeitamente satisfatória. No deserto da semana, a quinta-feira passou a ser um oásis de luxe et volupté.
Na cama, Soraya não é efusiva. Seu temperamento, na verdade, é bastante sossegado, sossegado e dócil. Suas opiniões são surpreendentemente moralistas. Fica ofendida com as turistas que despem os seios ("tetas", ela diz) nas praias públicas; acha que os vagabundos deviam ser recolhidos e postos para trabalhar, varrendo as ruas. Ele não pergunta como ela consegue coadunar essas opiniões com o tipo de trabalho que faz.
Como tem prazer com ela, um prazer invariável, começa a nascer nele uma afeição por ela. Até certo ponto, ele acredita, essa afeição é correspondida. Afeição pode não ser amor, mas é ao menos prima-irmã do amor. Diante do começo pouco promissor que tiveram, até que têm sorte, os dois: ele porque a encontrou, ela porque o encontrou.
Ele tem consciência de que seus sentimentos são complacentes, até matrimoniais. Mesmo assim não renuncia a eles.
Por uma sessão de uma hora e meia paga-lhe quatrocentos rands, dos quais metade vai para a Discreet Escorts. É uma pena a Discreet Escorts cobrar tanto. Mas são donos do 113 e de outros apartamentos no Windsor Mansions; de certa forma são donos de Soraya também, dessa parte dela, dessa função.
Ele anda brincando com a idéia que pedissem para se en-contrar no tempo livre dela. Gostaria que passassem uma noite juntos, talvez até a noite toda. Mas não a manhã seguinte. Ele se conhece bem demais para sujeitá-la à manhã seguinte, quando estará frio, ranzinza, impaciente para ficar sozinho.
É assim seu temperamento. Seu temperamento não vai mudar, está velho demais para isso. Está fixo, estabelecido. O crânio, depois o temperamento: as duas partes mais duras do corpo.
Obedeça seu temperamento. Não é uma filosofia, ele não atribuiria tal dignidade a esse sentimento. É uma regra, como a regra de são Benedito.
Ele está com boa saúde, com a cabeça clara. Por profissão ele é, ou foi, um acadêmico, e a vida acadêmica ainda ocupa, intermitentemente, o seu íntimo. Gosta de viver dentro de seus rendimentos, dentro de seu temperamento, dentro de seus meios emocionais. É feliz? Em termos gerais, é, acha que sim. Porém, não se esquece da última fala do coro de Édipo: Nenhum ho-mem é feliz até morrer.
No campo do sexo, seu temperamento, embora intenso, nunca foi passional. Se tivesse de escolher um animal totem, seria a cobra. A relação sexual entre Soraya e ele deve ser, imagina, como uma cópula de cobras: prolongada, absorvente, mas um tanto abstrata, seca, mesmo no ponto mais quente.
O totem de Soraya seria a cobra também? Com outros homens, sem dúvida, ela é outra mulher: la donna è mobile. Porém, em termos de temperamento, sua afinidade com ele não pode de jeito nenhum ser fingida.
Embora seja uma libertina por profissão, ele confia nela, dentro de certos limites. Durante as sessões, ele fala com certa liberdade, às vezes até desabafa. Ela conhece os fatos da vida dele. Ouviu a história de seus dois casamentos, sabe de sua filha e dos altos e baixos da vida dela. Conhece muitas de suas opiniões.
Soraya nada revela de sua vida fora de Windsor Mansions. Soraya não é seu nome verdadeiro, com toda a certeza. Há indícios que deu à luz um filho, ou filhos. Pode até ser que ela não seja profissional coisa nenhuma. Talvez trabalhe para a agência só uma ou duas tardes por semana, e no resto do tempo viva uma vida respeitável nos subúrbios, em Rylands ou Athlone. Seria um pouco estranho para uma muçulmana, mas hoje em dia tudo é possível.
Sobre o próprio trabalho ele fala pouco, não quer aborrecê-la. Ganha a vida na Universidade Técnica do Cabo, antiga Fa-culdade da Universidade da Cidade do Cabo. Outrora professor de línguas modernas, ele passou a professor-adjunto de comunicações quando o Departamento de Línguas Clássicas e Modernas foi fechado como parte da grande reengenharia. Como to-dos os professores afetados pela racionalização, ele pode propor um curso especial por ano, independente do currículo, porque isso faz bem para o ânimo. Este ano, ele montou um curso sobre os poetas românticos. No mais, dá aulas em Comunicações 101, "Capacitação em Comunicações", e Comunicações 201, "Capacitação em Comunicações - Avançado".
Embora dedique diariamente horas e horas à nova disciplina, acha ridícula a primeira premissa constante da ementa de Comunicações 101: "A sociedade humana criou a linguagem para podermos comunicar nossos pensamentos, sentimentos e intenções". Sua opinião, que ele não ventila, é que a origem da fala está no canto, e as origens do canto na necessidade de preen-cher com som o vazio grande demais da alma humana.
Ao longo de uma carreira de um quarto de século, ele publicou três livros, nenhum dos quais provocou qualquer comoção, nem mesmo um abalo: o primeiro sobre ópera (Boito e a lenda do Fausto: a gênese de Mefistófeles), o segundo sobre a visão enquanto eros (A visão de Ricardo de São Vítor), o terceiro sobre Wordsworth e a história (Wordsworth e o peso do passado).
Nos últimos anos, tem brincado com a idéia de um trabalho sobre Byron. De início, pensou que seria um novo livro, outra obra crítica. Mas todas as tentativas de escrever atolaram no tédio. A verdade é que está cansado da crítica, cansado do discurso medido a metro. O que quer escrever é música: Byron na Itália, uma meditação sobre o amor entre os sexos na forma de uma ópera de câmara.
Enquanto enfrenta as aulas de comunicações, frases, me-lodias, fragmentos de canções da obra ainda não escrita flutuam por sua cabeça. Nunca foi um grande professor; nessa instituição de ensino transformada e, em sua opinião, emasculada, ele está mais deslocado do que nunca. Mas seus colegas de antigamente também estão na mesma, curvados pela formação inadequada para as tarefas que se meteram a cumprir; sacerdotes em uma era pós-religiosa.
Como não tem respeito pela matéria que ensina, não causa nenhuma impressão nos alunos. Não o olham quando ele fala, esquecem seu nome. Essa indiferença lhe dói mais do que admite. Mas cumpre ao pé da letra as obrigações com os alunos, com os pais deles, com o Estado. Mês após mês ele passa, recolhe, lê e anota seus trabalhos, corrigindo lapsos de pontuação, ortografia e concordância, questionando argumentações fracas, anexando a cada trabalho uma crítica breve e ponderada.
Ele continua ensinando porque é assim que ganha a vida; e também porque aprende a ser humilde, faz com que perceba o seu papel no mundo. A ironia não lhe escapa: aquele que vai ensinar acaba aprendendo a melhor lição, enquanto os que vão aprender não aprendem nada. É um aspecto de sua profissão que não comenta com Soraya. Ele duvida que exista uma ironia semelhante na vida dela.
quarta-feira, 2 de março de 2011
terça-feira, 1 de março de 2011
SEARA VERMELHA
Dashiel Hammet
Um trecho:
Acordei na manhã seguinte com uma idéia na cabeça. Per sonville tinha apenas uns quarenta mil hahitantes. Não devia ser difícil espalhar uma notícia. Às dez horas, lá estava eu dando um jeito de fazê-la circular.
Fiz o boato correr nos salões de bilhar, tabacarias, botecos clandestinos, biroscas que vendiam refrescos e nas esquinas – onde quer que eu encontrasse dois homens vadiando. Minha técnica foi mais ou menos o seguinte:
– Tem fogo?... Obrigado... Vai assistir às lutas de boxe hoje à noite?... Ouvi dizer que o Ike Bush vai simular um nocaute no sexto round... Não deve ser papo-furado, não: foi o próprio Garganta que me falou... É, eles não prestam mesmo...
As pessoas gostam de ficar sabendo de boatos quentes e, em Personville, qualquer boato associado ao nome de Thaler era quentíssimo. A notícia se espalhou bem. Metade dos sujeitos com quem conversei trabalhou com empenho quase tão diligente quanto o meu, só para mostrar que estava por dentro das coisas.
Quando soltei a notícia na rua, pagavam-se sete por quatro em caso de vitória de Ike Bush, e dois por três se a vitória fosse por nocaute. Às duas da tarde, nenhuma das espeluncas que estavam aceitando apostas pagava mais que um por um, e às três e meia Kid Cooper era o favorito, pagando dois por um.
Minha última parada foi no balcão de um bar, onde disparei a notícia para o garçom e alguns clientes enquanto comia um sanduíche de carne.
Ao sair, dei com um homem na porta esperando por mim. Tinha pernas arqueadas e seu maxilar inferior era comprido e pronunciado como o de um porco. Acenou com a cabeça e se pôs a caminhar ao meu lado na rua, mascando um palito de dente e olhando de soslaio para o meu rosto. Ao chegarmos a esquina ele disse:
– Você está por fora.
– Por fora de quê? – Perguntei.
– Essa história de que o Ike Bush vai deixar o outro bater nele é a maior besteira que já ouvi na vida.
– Então você não tinha que esquentar com isso. Mas quem sabe das coisas está apostando dois por um no Cooper, e ele nao é tão bom assim, não. a menos que o Bush facilite as coisas para ele.
O queixo de porco cuspiu fora o palito destroçado e arreganhou os dentes amarelos para mim.
– Eu ouvi da boca dele ontem à noite, ele mesmo disse que a luta vai ser uma barbada, e ele não faria uma coisa dessas... não comigo.
– É amigo seu?
– Não exatamente, mas o sujeito me conhece... Escuta aqui, o garganta falou isso mesmo, no duro?
– No duro.
Praguejou violentamente. – E eu que torrei meus úItimos trinta e cinco mangos na conversa fiada daquele rato! Como ele foi fazer isso justo comigo!? Eu podia despachar ele daqui pelo que... – Interrompeu-se e olhou para rua.
– Despacharia ele daqui pelo quê? Perguntei.
– Muita coisa – disse. – Nada.
Eu tinha uma sugestão:
– Se você tem alguma coisa contra ele, talvez pudéssemos conversar sobre isso. Não me importo nem um pouco que o Bush ganhe. Se o quê voçê sabe é chumbo grosso, qual o problema de usar isso para colocá-lo na parede?
Olhou para mim, para a calçada, fuçou o bolso do colete atrás de outro palito, colocou-o na boca e resmungou:
– Ouem é você?
Dei-lhe um nome qualquer, algo como Hunter, Hunt ou Huntington e perguntei o dele. Disse que se chamava MacSwain, e que eu poderia perguntar a qualquer um na cidade se não era isso mesmo.
Falei que acreditava nele e indaguei:
– Então, o que me diz? Vamos dar uma prensa no Bush? Luzinhas cruéis acenderam-se em seus olhos e depois se apagaram .
– Não dá – engoliu em seco. – Não sirvo para essas coisas. Eu nunca...
– Nunca o quê? Ficou sempre aí parado, deixando que levassem você no bico? Olhe aqui, MacSwain, você não precisa falar com ele. Me conte essa história direitinho e eu mesmo dou um jeito na coisa... Quer dizer, se é que é chumbo grosso mesmo.
Refletiu sobre a proposta passando a língua pelos lábios, deixando que o palito de dente caísse e se dependurasse no paletó.
– Garante que não vai deixar ele saber que eu estou metido nisso? - indagou. - Eu sou daqui, e se essa coisa vazar estoufrito. E você não pode usar isso para cagüetar ele certo? É só para fazer ele lutar, certo?
– Certo.
Pegou nervosamente na minha mão e exigiu:
– Jura por Deus?
– Juro.
– O nome verdadeiro dele é Al Kennedy. Ele participou daquele assalto ao Keystone Trust na Filadélfia, dois anos atrás, quando o bando do Haggerty Tesoura apagou dois mensageiros. O Al não teve nada a ver com as mortes, mas estava na parada. Vivia se metendo em rolo lá na Filadélfia. O resto foi em cana, mas ele conseguiu escapar. É por isso que continua na moita por aqui. É por isso que não deixa de jeito nenhum a cara dele sair nos jornais e nos cartazes. É por isso que luta como estreante, mesmo sendo bom que nem os melhores. Entendeu? Ele estava metido...
– Entendi, entendi, sim – interrompi o circunlóquio. – O próximo passo é falar com esse camarada. Onde a gente encontra ele?
– A toca dele é lá no Maxwell, na Union Street. Acho que talvez esteja por lá agora, descansando para a luta.
– Descansando por quê? Ele pensa que não vai ter que lutar. Mas quem sabe a gente faz o sujeito mudar de idéia.
– A gente? A gente uma ova! Que história é essa? Você falou... você jurou que ia me deixar fora disso.
– Puxa vida! – eu disse. – Tinha me esquecido. Como ele é?
– É um rapaz novo, cheio de cravos no rosto, meio magro, surdo de um ouvido e as sombrancelhas dele atravessam a testade ponta a ponta. Não sei se com isso você vai conseguir saber quem ele é.
– Deixe isso por minha conta. Onde encontro você depois?
– Vou estar lá no Murry's. Cuidado para não me cumprimentar. Você prometeu.