Virada Cultural. Assisto Nosferatu em um telão montado ao lado do muro do Cemitério da Vila Nova Cachoeirinha. Um clássico do terror projetado em um cenário sombrio, à meia-noite.
Nada assustador. O verdadeiro horror ainda está por vir.
Terminada a projeção, eu e os manos vamos pro Centro. O destino é a Praça da Sé. Show dos Racionais MC's, marcado para começar às três da manhã.
A gente se mistura ao público. A praça está insuportavelmente lotada. Tiozinhos passam vendendo um caninho fino e comprido de plástico. Um chup-chup gigante de pinga. Vejo dois manos, cada um com a boca numa extremidade, mamando a cachaça vagabunda. Nojento.
Além da cana, são inúmeros os malucos que entornam garrafas de vinho Chapinha. Eu fico com minha cervejinha, nem sempre gelada (fazer o quê?), comprada dos ambulantes que passam com isopor.
Meu camarada Cão Morto aponta para a marquise na entrada de uma farmácia. Um monte de caras está lá em cima, dançando rap. Poucos minutos depois, vejo uma fila de PMs se dirigindo para o grupo. Os bêbados gritam "FILHA DA PUTA!" e atiram coisas nos policiais. "É assim que as merdas começam", digo pro meu amigo.
Resolvemos ficar entre as palmeiras da Sé para ter uma visão melhor do palco. Mas, em qualquer lugar onde vamos, o som chega muito baixo. Estamos muito longe, do outro lado da praça. E é impossível avançar. Gente pra caralho.
Ficamos mais de uma hora lá, de pé. A porra do show não começa logo e estou impaciente.
Às quatro e meia da manhã, finalmente, os Racionais MC's sobem ao palco. Tocando " Eu sou 157". A praça da Sé inteira se empolga, dança e canta junto. "Hoje eu sou ladrão/ Artigo 157/ As cachorra me ama/ Os playboy se derrete..."
Mas o som tá baixo demais. Logo o grau de empolgação na área onde estamos começa a baixar. Tentamos avançar um pouco. Noto que os malucos voltaram a subir na marquise da farmácia e numa banca de jornais ao lado. Alguns deles trepam em varandas de um antigo edifício comercial. E dançam perto de uma grande placa onde lemos "compra-se ouro".
Se não me engano, o grupo está tocando "Crime vai e Crime vem", quando começa o empurra-empurra. O povo se afasta em pânico. Alguns amigos somem. Eu e o Cão continuamos lá. Parados. "Calma. Sem nóia, sem nóia...", é o que um fala pro outro.
Então vejo um bando de PMs com cassetetes na mão ser alvo de uma chuva de garrafas e latas. A situação fica pequena pros meganhas. Olho em direção à catedral e percebo que o recuo do público abre um corredor que pode nos levar até perto do palco. Lá em cima, os Racionais continuam mandando ver no som. "Vamos pra frente", digo pro brother. E a gente vai correndo curvado, pra não tomar garrafada, ao som de Vida Loka parte 1.
Estamos no meio do caminho e surge a tropa de choque. Escudos, cassetetes, capacetes, bombas de efeito moral e espingardas calibre 12, carregadas com balas de borracha. Eles estão dispostos a passar por cima de qualquer um que entrar na frente.
As bombas estouram e o público reage. Alguns manos quebram cavaletes e tacam os pedaços de pau nos gambés. A Sé vira um campo de batalha.
Pra não tomar garrafada nem bomba, o Cão Morto encosta em um poste. Eu, numa palmeira. Algumas minas, sozinhas ou com namorados, estão desesperadas, agaixadas ao pé das árvores e chorando. "Assim não dá!", diz Mano Brown, interrompendo o show.
"Pára com isso.... Vamos usar a inteligência... Tá suave, tá suave...", diz o líder do grupo, tentando acalmar a população. "Eu também sô obrigado a conviver com um monte de coisa que eu não gosto. O mundo é assim. Vocês vê polícia todo dia. Por que, justo hoje, qué arrumá confusão?", prossegue Brown.
Nesse momento, eu e o truta chegamos ao lado do palco. Noto que, pouco a pouco, as pessoas vão parando de atacar a PM. Passam a prestar atenção nas palavras do rapper. Os Racionais também devem ter notado que a situação se acalmava, pois, na seqüência, resolvem seguir em frente. Ouvimos o começo da base de "Negro Drama" e o público delira.
Eu e o Cão entramos na massa bem em frente ao palco.
Estamos lá, pulando e cantando junto com o MC Edy Rock, quando escuto novas explosões de bombas de efeito moral. Na seqüência, a multidão entra em desespero e o tumulto recomeça nervoso. Nesse momento, eu e o Cão somos separados.
Espremido entre os manos, tento sair do meio da multidão em pânico. Mal consigo me mexer. Grito "calma, porra! Calma!". Pouco a pouco vou saindo. Até que, por cima do ombro de um cara à minha frente, vejo um PM apontando a 12 em nossa direção e disparando. "É hoje que tomo bala de borracha", penso.
Os gambés filhos da puta não querem saber. Querem acabar com o show de qualquer jeito. Consigo sair do meio da muvuca. Deixo a multidão com os braços levantados, andando devagar e olhando pros PMs. Nenhum atira em mim. Mas vejo um meganha da tropa de choque mirar a 12 em um grupo de minas que corre em direção à praça João Mendes. O policial covarde está babando pra atirar nas garotas pelas costas. Vejo isso nos olhos dele. Mas outro coxinha lhe fala algo e o cuzão, lentamente, abaixa a 12.
Torno a me virar pra muvuca, à procura do meu camarada. Rapidamente o acho. Ele também sai do meio do povo com os braços pro alto e andando devagar. Caminhamos em direção à João Mendes, enquanto Mano Brown , antes de deixar o palco, diz ao microfone: "parabéns pra PM, hein. Vocês conseguiram acabar com a festa."
Deixando a Sé, vemos fãs dos Racionais revoltados, quebrando vidros e chutando portas de ferro das lojas. Estamos quase atrás da catedral quando sentimos o gás pimenta. A garganta trava e lágrimas saem dos olhos. Ao nosso lado há um jovem casal. A mina não consegue respirar e desmaia. O namorado a pega no colo e sai correndo dali.
Só voltamos a respirar direito no viaduto João Mendes. Horas depois, sou informado de que houve carro incendiado e quebra-quebra em todo entorno da praça. Tudo por causa de meia dúzia de idiotas que resolveu tacar coisa na gloriosa e intocável PM. Mais conhecida como Raça do Caralho.
Um dia ideal para os peixes-banana e livros e cinema e gibis e nus e ataxia espinocerebelar e 𓋹
quarta-feira, 1 de setembro de 2010
TERÇA-FEIRA, MAIO 08, 2007
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