sábado, 27 de fevereiro de 2021

GANSU NU

José Marcelo


Eu costumava acordar babando numa sala fria que tinha cheiro de mijo e merda. Eu me levantava e cambaleava até a janela gradeada. Eu gostava de ficar olhando as nuvens que tinham formas bizarras e a cor do céu que para mim sempre lembrou desespero e outra coisa que não gosto de lembrar. Eu gritava à noite e chorava e balançava o corpo de dia. Em meus melhores dias eu simplesmente ficava parado no meio da sala, sem me importar com os ecos e risos e choros e esbarrões dos outros. Em meus piores dias eu era amarrado em uma cama velha e sedado. Eu sonhava com uma mulher muito alta e muito bela que me deixava em êxtase e aterrorizado – depois eu acordava molhado e com marcas nos pulsos e tornozelos. Durante um tempo eu fui um louco e indigente internado em um hospício e durante um tempo parecia que seria assim para sempre. E durante muito tempo foi.

Mas para sempre é tempo demais e um dia eu fui declarado curado e colocado em um ônibus.

Saltei na última parada e estava chovendo. Havia um bar do outro lado da rua – o nome GANSO NU pintado na vidraça – e pisei em poças úmidas e corri até entrar em seu interior razoavelmente seco. Lá dentro estava abafado, embora chovesse, abafado como em um forno. Um velho ventilador girava como se fosse cair do teto de metal onde a chuva batia com força. O bar estava vazio. Eu me sentei em um canto. Enfiei a mão no bolso de onde tirei um punhado de notas amassadas. Não era muito, apenas o suficiente para uma semana, se eu economizasse bastante.

Uma garota de quinze ou quatorze anos apareceu ao meu lado e perguntou o que eu desejava. Ela sorria. Logo eu descobriria que sorrir para ela era algo tão natural como, não sei, respirar talvez. Eu olhei desanimado para meu dinheiro bagunçado e tentei sorrir. Acho que ela percebeu meu embaraço, porque disse, o prato do dia é bem barato. Eu, ah tudo bem. Ela, eu não demoro. E afastou-se.

Sobre o balcão havia um enorme pintura mal feita de um ganso com palavras tão apagadas entre suas pernas que praticamente ninguém poderia ler. Havia uma prateleira com garrafas de tantas cores que eu não reconheci muitas delas. Atrás do balcão, um homem com um pano cobrindo a cabeça lavava copos de costas para mim.

Alguém entrou, um sujeito de sobretudo, chapéu e barba rala, e sentou-se ao balcão. Eu vou beber um desses seus vinhos incrivelmente ruins, disse ele. Um homem inquieto, estendeu ambas as mãos abertas sobre o balcão, sorrindo muito, olhando ao redor, me vendo e sorrindo. Tirou o chapéu, exibindo uma cabeça raspada. Como vai, meu chapa?

Eu, Como?

Ele, perguntei como vai. Não precisa responder, tudo bem. Chuva dos diabos, não?

A menina voltou (o homem com o pano na cabeça continuava lavando copos e ignorando as pessoas ao redor). A menina perguntou, o que vai querer, senhor?

Ele virou-se para ela. Um vinho, disse, qualquer vinho. Sei que vou detestar de qualquer jeito.

Ora, você não pode ter tanta certeza.

Sim, posso, respondeu ele. Acredite em mim.

Qualquer um?

É. Qualquer um. Aquele com o pirata seria bom.

Hein?

Qualquer um.

A menina serviu-lhe uma dose. Deixe a garrafa, disse ele.

Ela deixou a garrafa e virou-se para mim. Não demora agora, disse ela. E voltou para a cozinha.

O careca tornou a encher o copo. Desviei o olhar. A menina trouxe o prato do dia e um refrigerante. Mas não afastou-se. Eu o conheço?

Eu, duvido. Desculpe.

Ela, é. Eu sou Cristina.

Eu, Mérimée.

Ela, Mérimée? Nome engraçado. Bem, vou deixá-lo em paz.

Está tudo bem.

Ela assentiu e voltou a desaparecer.

O careca disse, uma gracinha, hein? Linda.

Ignorei-o e comecei a comer. Estava com mais fome do que imaginara.

O careca sentou-se diante de mim. Não se lembra de mim? disse ele. Não, não, não se lembra. Se se lembrasse, não estaria tão calmo, certo?

Larguei o garfo. Muito bem, disse eu. Quem é você?

Puta merda. Você não se lembra mesmo. Assim não vai ter graça.

O que não vai ter graça?

Quando eu te matar.

Cai fora, lunático. Eu estava perdendo a paciência.

Ei, não é justo. Não era eu que estava internado na casa dos loucos. Bem…

O careca deu de ombros e colocou a pistola sobre a mesa. Ouvi um grito de susto. Era a menina, os olhos fixos na arma.

Sem olhar para ela, o careca disse, ei, menina bonita, por que você e o esquisito ai não vão para a cozinha e ficam por lá. Isso não é com vocês.

Quando o sujeito largou os copos na pia (eu o imaginara com uma expressão indiferente, mas agora ele parecia praticamente aterrorizado) e empurrou a menina para a cozinha, o careca acrescentou, estou num daqueles dias de ser bonzinho. Mas não se anime. Não vou ser bonzinho com você. Coma.

Perdi o apetite.

Não seja tolo. É sua última refeição.

Não, obrigado.

Hunf. Ele coça a cabeça, torna a me olhar. Hora da história, então. Mãos na mesa, anda, não vai fazer besteira agora.

Eu não preciso saber.

Eu preciso que você saiba.

Não faz diferença para mim.

Para mim faz. Para mim faz muita diferença.

Eu me levanto.

O que está fazendo? ele pergunta.

Se vai atirar, faça logo.

Hunf.

O barulho da chuva havia silenciado. Havia apenas o ventilador, girando e estalando.

Então tá, disse o careca. E atirou em mim.

Sabe, eu te segui desde a porra do hospício, disse ele. Imaginei que teríamos uma longa conversa. Eu lhe diria quem sou. Contaria o que você fez. Te mataria. Iria para casa e comemoraria. Simples. Mas você tinha que ser mal educado e estragar tudo.

Ele falava e eu estava estirado no chão, sangrando.

Ele continuou, puta que pariu, velho. Puta que pariu. Está certo. Isso já se prolongou demais. Não quis comer sua última refeição. Não quis ouvir minha história. Vai pelo menos dizer suas últimas palavras?

Eu cuspi sangue, me virei e tentei erguer-me. Não consegui. Eu comecei a arrastar-me, deixando um rastro vermelho. O careca caminhava sem pressa atrás de mim.

Isto é por Lara, disse ele. Este nome te diz alguma coisa? Lara. Lara. Nada?

Eu lembrei de uma mulher linda olhando a lua lá fora. Uma lua vermelha em uma noite quente. Ela virando-se para mim, meio trêmula, assustada, perguntando, eu vou ficar bem?

Eu vou ficar bem?

Sim, eu menti, não se preocupe.

O careca, agora, apontando a arma para minha nuca e sorrindo ao ver a expressão em meu rosto. Você se lembra.

Quem… era… ela?

Ele não responde. Apenas atira.


 


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