__ Não existe nenhuma forma genuína de explicá-lo [o limite] porque as únicas pessoas que sabem onde ele está são aquelas que o ultrapassam.
Hunter S. Thompson
Um dia ideal para os peixes-banana e livros e cinema e gibis e nus e ataxia espinocerebelar e 𓋹
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Charles Dickens
“Olá! Você, aí embaixo!”
Quando ele ouviu uma voz chamando-o, estava à porta de sua cabine, com uma bandeira na mão, enrolada na sua vareta curta. Considerando-se a natureza da área, imaginar-se-ia que ele não pudesse duvidar de onde vinha a voz; mas em vez de olhar para cima, onde eu me postara no alto do patamar praticamente por sobre a sua cabeça, ele virou-se e olhou para a Linha abaixo. Havia algo de estranho na sua maneira de fazê-lo, mas eu não, absolutamente não, poderia dizer o quê. Mas sei que era estranho o bastante para atrair minha atenção, embora sua silhueta estivesse parcialmente oculta e ensombrecida na passagem de nível abaixo, e a minha, bem acima dele, tão imersa no brilho incandescente de um crepúsculo rubro que eu tivera de proteger meus olhos com a mão antes de o ver.
“Olá! Aí embaixo!”
Depois de olhar para a Linha abaixo, ele voltou-se novamente e, levantando os olhos, viu minha silhueta no alto.
“Existe um caminho pelo qual eu possa descer e falar com você?”
Olhou para mim sem responder e olhei para ele, sem pressioná-lo imediatamente com uma repetição de minha pergunta ociosa. Foi então que houve uma vaga vibração no chão e na atmosfera, rapidamente transformando-se em uma violenta pulsação e progressiva agitação que me fez recuar, como se ela tivesse força para arrastar-me para baixo. Quando uma nuvem de vapor do trem veloz havia passado por mim, olhei novamente o nível inferior e o vi enrolando novamente a bandeira que ele desfraldara à passagem do trem.
Repeti minha pergunta. Após uma pausa, durante a qual ele pareceu me olhar com uma atenção concentrada, acenou com sua bandeira enrolada em direção a um ponto em meu patamar, distante umas duas ou três centenas de jardas.
Respondi-lhe “Está bem!” e desci àquele ponto. Lá, à força de olhar atentamente ao meu redor, encontrei um caminho escavado e irregular descendo em ziguezague, que segui.
O entalho era extremamente profundo e anormalmente abrupto. Era feito em pedra úmida, que se tornava mais gotejante e molhada à medida que eu descia. Por isso, o percurso foi lento o bastante para me dar tempo de recordar um ar singular de relutância ou obrigação com o qual ele me apontara o caminho.
Após descer o ziguezague o suficiente para vê-lo novamente, vi que ele se postara entre os trilhos pelos quais o trem passara recentemente, como se estivesse esperando que eu aparecesse. Tinha a mão esquerda no queixo e o cotovelo esquerdo pousava na mão direita, cruzada sobre o peito. Sua postura era de tal expectativa e cautela que me detive por um instante, surpreso.
Retomei minha descida e, caminhando cautelosamente até o nível dos trilhos e aproximando-me dele, vi que era um homem moreno e aparência doentia, com uma barba escura e sobrancelhas um tanto cerradas. Seu posto ficava no lugar mais solitário e lúgubre que eu jamais vira. De ambos os lados, um gotejante muro de pedras irregularmente recortadas, que a tudo ocultava, exceto uma faixa de céu; o panorama numa direção apresentava apenas um prolongamento torto desse grande calabouço; na outra direção, mais proximamente, avistava-se uma luz vermelha sombria e a entrada ainda mais sombria de um túnel negro, em cuja arquitetura maciça havia apenas um ar terrivelmente opressivo e irrespirável. Esse lugar recebia tão pouca luz do sol que exalava um cheiro de terra insuportável; e atravessava-o um vento tão frio que fiquei gelado, como se houvesse me distanciado do mundo real.
Antes que ele se movesse, eu fiquei tão próximo que poderia tocá-lo. Sem tirar os olhos de mim nem mesmo então, ele recuou um passo e levantou a mão.
Esse posto era solitário (disse eu) e havia chamado minha atenção quando de lá de cima olhara para baixo. Raramente aparecia um visitante, eu supunha; mas essa seria uma raridade indesejável? Talvez em mim ele pudesse ver um homem que igualmente fora encerrado em limites estreitos durante toda a vida mas que, finalmente livre, fora recentemente despertado para essas grandes obras. Assim dirigi-me a ele; mas não estou certo de que foram essas as palavras usadas, pois, além de eu não ser bom em entabular uma conversa, havia algo no homem que me intimidava.
Ele lançou um olhar muito estranho para a luz vermelha perto da boca do túnel e perscrutou-a, como se algo estivesse faltando ali e depois olhou para mim.
“Aquela luz fazia parte de sua ocupação? Não é?”
Respondeu numa voz baixa: “Você sabe que sim”.
Um pensamento terrível me veio à mente enquanto examinava atentamente os olhos fixos e o rosto saturnino, que se tratava não de um homem, mas de um espectro. Desde então tenho me perguntado se seu espírito não estava contaminado.
Quanto a mim, recuei. Mas, ao fazê-lo, detectei em seus olhos algum medo latente de mim. Isso pôs a correr o pensamento terrível.
“Você olha para mim”, falei, forçando um sorriso, “como se me receasse.”
“Eu não tinha certeza”, respondeu ele, “se o vira antes.”
“Onde?”
Ele apontou para a luz vermelha para onde olhara.
“Lá?”, disse eu.
Com um olhar atento e cauteloso, ele respondeu (mas com voz inaudível) que sim.
“Meu bom amigo, o que eu estaria fazendo lá? Mas, de qualquer forma, eu nunca estive lá, pode estar certo disso.”
“Acho que posso”, repetiu ele. “Sim, acho que posso.”
Seu rosto se desanuviou, assim como o meu. Respondeu às minhas indagações com solicitude e palavras precisas. Ele tinha muito que fazer ali? Sim, diria que sim, tinha muitas coisas sob sua responsabilidade, mas o que se exigia dele eram pontualidade e atenção, não um trabalho real — manual. Para mudar aquele sinal, ajustar aquelas luzes e girar essa maçaneta de ferro de quando e quando era tudo que tinha a fazer. Com relação àquelas muitas horas longas e solitárias que me chamavam tanto a atenção, ele podia apenas dizer que a rotina de sua vida assim se acomodara e que a ela se habituara. Ele aprendera lá uma linguagem — se conhecê-la apenas pela visão e ter formado suas próprias idéias toscas de sua pronúncia pudesse ser chamado de aprendizado. Ele também trabalhava com frações e decimais e tentara um pouco de álgebra; mas tinha dificuldade, desde criança, com números. Era-lhe necessário, quando em serviço, permanecer sempre naquela corrente de ar úmido e não podia nunca subir para a luz do sol, por entre aqueles altos muros de pedra? Ora, isso dependia da hora e das circunstâncias. Sob certas circunstâncias, havia menos trabalho no Ramal do que nos outros, independente de horas diurnas ou noturnas. Quando o tempo estava bom, ele às vezes saía um pouco daquelas sombras inferiores; mas, como estava sempre sujeito a chamadas de sua campainha elétrica, e nessas ocasiões precisava ficar atento a ela com ansiedade redobrada, o alívio era menor do que eu poderia supor.
Ele me levou ao seu cubículo, onde havia uma lareira, uma escrivaninha para um livro oficial no qual ele devia registrar certas entradas, um aparelho telegráfico com seu dispositivo de discagem, mostrador e agulhas e o pequeno sino de que falara. Quando expressei minha certeza de que ele perdoaria minha observação quanto ao fato de que era um homem instruído e (sem ofensa, esperava eu) talvez acima daquele cargo, ele observou que era extremamente raro encontrarem-se exemplos de ligeira discordância desse tipo entre uma grande quantidade de pessoas; que ouvira casos assim nas oficinas, na polícia, até mesmo naquele último recurso desesperado, o exército; e que ele sabia ser assim, mais ou menos, em qualquer equipe de uma grande companhia de estradas-de-ferro. Fora, quando jovem (se me fosse possível crer, sentado naquela cabina; até mesmo a ele era difícil crer), um estudante de filosofia natural e freqüentara cursos; mas havia se comportado mal, perdido suas oportunidades, decaído, e nunca mais se recuperara. Não se queixava disso. Fizera sua cama e deitara-se nela. Era tarde demais para fazer outra.
Tudo isso — que eu resumi aqui — ele o disse de jeito calmo, com seus olhares sérios divididos entre mim e o fogo. Ele intercalava a palavra “Senhor” de tempos em tempos e especialmente quando se referia a sua juventude: como se me pedisse para compreender que ele não pretendia ser senão o que eu nele via. Diversas vezes ele foi interrompido pelo sininho e precisou ler mensagens e enviar respostas. Uma das vezes, teve de postar-se além da porta e agitar uma bandeira enquanto um trem passava e trocar algumas palavras com o foguista. Observei que, no desempenho de seus deveres, ele era notavelmente pontual e atento, interrompendo seu discurso numa sílaba e permanecendo em silêncio até terminar o que tinha a fazer.
Em suma, eu daria as melhores recomendações a respeito desse homem para esse emprego, salvo pela circunstância de que, enquanto falava comigo, interrompeu-se duas vezes, empalideceu, virou seu rosto para o sininho que não estava tocando, abriu a porta da cabina (que ficava fechada para impedir a umidade insalubre) e olhou para a luz vermelha próxima à boca do túnel. Em ambas as ocasiões voltou para o fogo com o ar inexplicável que eu observara, mas não fora capaz de definir, quando ainda estávamos muito distantes um do outro.
Eu disse, quando me levantei para despedir-me: “Você quase me fez pensar que encontrei um homem feliz”. (Mas devo confessar que o disse para animá-lo).
“Creio que era”, replicou ele, na voz baixa com que falara pela primeira vez, “mas estou perturbado, senhor, estou perturbado.”
Ele teria retirado as palavras, se pudesse. Mas dissera-as, contudo, e eu rapidamente agarrei a deixa.
“Com o quê? O que o perturba?”
“É muito difícil explicá-lo, senhor. É algo sobre o que é muito difícil falar. Se algum dia o senhor me fizer uma outra visita, tentarei contar-lhe.”
“Mas eu tenho realmente a intenção de fazer-lhe uma outra visita. Diga-me, quando poderei fazê-lo?”
“Saio de manhã cedo e volto novamente amanhã às dez da noite, senhor.”
“Virei às onze.”
Mostrou-se agradecido e foi até a porta comigo. “Acenderei minha luz branca, senhor”, disse ele, naquele seu tom de voz baixa que lhe era peculiar, “até o senhor encontrar seu caminho para cima. Quando chegar lá, não grite! E quando estiver no topo, não grite!”
Sua atitude parecia fazer o lugar me parecer mais frio, mas eu nada mais disse senão “Está bem”.
“E quando descer amanhã à noite, não grite! Permita-me fazer-lhe uma última pergunta. O que o fez gritar ‘Alô! Alô, aí embaixo’ esta noite?”
“Sabe-se lá”, disse eu. “Gritei algo assim...”
“Não assim, senhor. As palavras foram exatamente essas. Conheço-as bem.”
“Admito que foram essas as palavras. Eu as disse, sem dúvida, porque eu o vi embaixo.”
“Por nenhum outro motivo?”
“Por que outro? Que outro motivo poderia haver?”
“Não teve nenhuma sensação de que lhe eram comunicadas de algum modo sobrenatural?”
“Não.”
Ele me desejou boa noite e levantou sua lanterna. Andei pelo lado da linha de trilhos abaixo (com uma sensação muito desagradável de um trem vindo atrás de mim), até encontrar o lugar de subida. Era mais fácil subir do que descer, e eu voltei para meu hotel sem quaisquer incidentes.
II
Pontualmente, coloquei meu pé no primeiro entalhe do ziguezague na noite seguinte quando os relógios ao longe estavam batendo as onze horas. Ele estava a minha espera no fundo, com sua luz branca acesa. “Não gritei”, disse eu, quando nos aproximamos; “posso falar agora?”. “Claro que sim, senhor.” “Boa noite, então, e aqui está minha mão.” “Boa noite, senhor; aqui está a minha.” Com isso, caminhamos lado a lado até sua cabina, entramos, fechamos a porta e sentamo-nos ao lado do fogo.
“Decidi, senhor”, começou ele, inclinando-se para frente assim que nos sentamos e falando num tom pouco acima de um sussurro, “que não precisará perguntar duas vezes sobre o que me perturba. Tomei o senhor por outra pessoa ontem à noite. O que me perturba.”
“Esse engano?”
“Não. A outra pessoa.”
“Quem é ela?”
“Não sei.”
“Parecida comigo?”
“Não sei. Nunca vi o rosto. O braço esquerdo está na frente do rosto, e o braço direito está acenando. Acenando com violência. Assim.”
Segui seu gesto com meus olhos e era o de um braço a agitar-se com extrema comoção e veemência. “Pelo amor de Deus, saia do caminho!”
“Numa noite enluarada”, disse o homem, “eu estava sentado aqui quando ouvi uma voz gritar: Alô! Aí embaixo!' Fiz um movimento, olhei daquela porta e vi essa pessoa de pé, ao lado da luz vermelha perto do túnel, acenando exatamente como lhe mostrei agora. A voz parecia rouca de tanto gritar e gritava: ‘Cuidado! Cuidado!’. E depois novamente: ‘Alô! Aí embaixo! Cuidado!’. Peguei minha lanterna, acendi a luz vermelha e corri em direção à figura, dizendo: ‘O que há de errado? O que aconteceu? Onde?’. Eu estava perto da escuridão do túnel. Avancei para bem perto dele, pois estranhei o fato de manter a manga diante de seus olhos. Corri para ele e, quando estendi minha mão para puxar a manga, ele desapareceu”.
“Dentro do túnel?”, indaguei.
“Não. Corri para dentro do túnel, quinhentas jardas. Parei e levantei minha lanterna acima da cabeça e vi as figuras de uma certa distância e as gotas de umidade descendo pelas paredes e escorrendo pelo arco. Corri para fora novamente, mais rápido do que correra para dentro dele (pois tenho um pavor mortal do lugar) e olhei tudo em volta da luz vermelha com a minha própria luz vermelha e subi a escada de ferro até a galeria acima e desci novamente, correndo de volta para cá. Telegrafei para ambos os lados: ‘Houve um alerta. Alguma coisa errada?’ A resposta de ambos foi: ‘Tudo certo?’.”
Afastando o lento toque de um dedo gelado a subir pela minha espinha, expliquei-lhe que aquela imagem devia ser uma ilusão de óptica e que se sabia que essas imagens, originadas por doença dos nervos delicados que comandam as funções dos olhos, muitas vezes perturbavam os pacientes, alguns dos quais haviam reconhecido a natureza de sua ansiedade e até mesmo comprovado-a por experiências consigo mesmos. “Quanto ao grito imaginário”, expliquei, “ouça apenas por um momento o vento nesse vale artificial enquanto falamos com vozes tão baixas e como ele faz dos fios do telégrafo uma harpa extremamente sonora!”
Tudo isso estava muito certo, respondeu ele, depois que já estávamos sentados por bons minutos, e já deveria ter pensado no vento e nos fios, ele que tantas vezes passara longas noites de inverno ali, sozinho e em vigília. Mas rogou-me atentar para o fato de que ainda não terminara.
Pedi desculpas, e ele lentamente acrescentou estas palavras, tocando em meu braço:
“Seis horas após a Aparição, aconteceu o famoso acidente desta Linha e durante dez horas os mortos e feridos foram trazidos de dentro do túnel, sobre o ponto em que estivera a imagem”.
Um calafrio desagradável subiu-me pelo corpo, mas fiz o possível para ignorá-lo. Era inegável, repliquei, que se tratava de uma coincidência notável e na medida certa para impressioná-lo. Mas era inquestionável que coincidências notáveis ocorriam sempre e que elas devem ser levadas em conta ao lidar com assuntos desse tipo. Embora eu certamente devesse admitir, acrescentei (pois julgava prever que ele iria contra-argumentar) que homens de bom senso geralmente não incluem coincidências nas previsões dos acontecimentos cotidianos.
Ele novamente rogou-me que atentasse para o fato de que não terminara.
Novamente pedi desculpas por tê-lo interrompido.
“Isso”, disse ele, pondo a mão em meu braço de novo e olhando por sobre o ombro com olhos vazios, “aconteceu exatamente um ano atrás. Seis ou sete meses se passaram, e eu me recobrara da surpresa e do choque quando uma manhã, ao amanhecer, de pé naquela porta, olhei para a luz vermelha e vi o espectro novamente”. Ele parou, com um olhar fixo para mim.
“Ele gritou?”
“Não. Ficou em silêncio.”
“Ele acenou?”
“Não. Encostou-se ao poste da lanterna, com as duas mãos diante do rosto. Assim.”
Mais uma vez, segui seu gesto com os olhos. Era um gesto de luto. Já vi essa postura em figuras de pedra sobre túmulos.
“Você foi até ele?”
“Entrei e sentei-me, em parte para recobrar o domínio de meus pensa-mentos, em parte porque me sentia a ponto de desmaiar. Quando fui novamente até a porta, a luz do dia brilhava e o fantasma desaparecera.”
“Mas nada mais aconteceu? Foi tudo?”
Ele me tocou o braço com seu dedo indicador duas ou três vezes, acompanhando cada um desses gestos com uma inclinação da cabeça, aterrorizado.
“Naquele mesmo dia, quando um trem saiu do túnel, notei, numa janela do vagão para o meu lado, o que parecia uma confusão de mãos e de cabeças, e algo acenava. Eu o vi, a tempo de fazer um sinal para o foguista parar. Ele desligou e freou, mas o trem arrastou-se outras cento e cinqüenta jardas ou mais. Corri para ele e, enquanto o acompanhava, ouvi gritos agudos e choros terríveis. Uma bela e jovem senhora morrera instantaneamente em um dos compartimentos e foi trazida para cá; deitaram-na neste chão, aqui, entre nós dois.”
Involuntariamente, recuei minha cadeira, enquanto meu olhar ia das tábuas para as quais ele apontava para ele próprio.
“Verdade, senhor. Verdade. Foi exatamente assim que aconteceu, estou lhe dizendo.”
Eu não conseguia pensar em nada para dizer, nada que conviesse, e minha boca estava muito seca. O vento e os fios receberam a história com um longo gemido de lamento.
Ele recomeçou. “Agora, senhor, ouça bem e avalie a perturbação de meu espírito. O espectro voltou, uma semana atrás. Desde então, ele está lá, de quando em quando, intermitentemente.”
“Ao lado da lanterna?”
“Ao lado da lanterna de alerta.”
“O que ele parece estar fazendo?”
Ele repetiu, se possível com uma emoção e veemência maior, a gesticulação anterior de “Pelo amor de Deus, saia do caminho!”
Depois continuou: “Não tenho paz ou tranqüilidade por causa disso. Ele me chama, durante minutos seguidos, de uma forma angustiada, ‘Aí embaixo! Cuidado! Cuidado!’ Ele fica acenando para mim. Ele toca meu sininho...”
Nesse momento, eu o interrompi. “Ele tocou seu sino ontem à noite, quando eu estava aqui e você foi até a porta?”
Duas vezes.
“Ora, veja”, disse eu, “como sua imaginação o engana. Meus olhos estavam no sino, e meus ouvidos atentos, e se estou vivo, ele NÃO tocou então. Não, nenhuma vez, exceto do modo natural das coisas físicas, quando a estação comunicou-se com você.”
Ele balançou a cabeça. “Eu nunca me enganei, senhor. Nunca confundi a badalada do espectro com a humana. O badalar do fantasma é uma vibração estranha no sino que não provém de nada mais, e não afirmei que não se vê o sino balançar. Não surpreende que o senhor não o tenha ouvido. Mas eu ouvi.”
“E o espectro pareceu estar lá, quando você olhou para fora?”
“Ele estava lá.”
“Ambas as vezes?”
Repetiu com firmeza: “Ambas as vezes.”
“Você poderia ir até a porta comigo e procurá-lo agora?”
Ele mordeu o lábio inferior como se relutasse um pouco, mas levantou-se. Abri a porta e fiquei no degrau, enquanto ele se deteve na soleira. Ali estavam as altas paredes de pedras molhadas do entalho. Ali estavam as estrelas bem acima delas.
“Você o vê?”, perguntei-lhe, observando atentamente seu rosto. Seus olhos estavam arregalados e fatigados; mas não muito mais do que haviam estado os meus quando os dirigira atentamente para o mesmo ponto.
“Não”, respondeu ele. “Ele não está lá.”
“Exatamente”, disse eu.
Entramos novamente, fechamos a porta e sentamo-nos. Eu estava pensando em como aproveitar essa vantagem, se é que podemos chamá-la assim, quando ele retomou a conversa de um modo tão direto, admitindo que não poderíamos discordar seriamente diante do fato, que senti estar em uma posição muito desfavorável.
“A esta altura o senhor compreenderá perfeitamente”, disse ele, “que o que me perturba de modo tão terrível é a pergunta: o que quer dizer o espectro?”
Eu não tinha certeza, disse-lhe eu, de tê-lo compreendido perfeitamente.
“Ele está me avisando do quê?”, disse ele, ruminando, os olhos no fogo e apenas de vez em quando os voltando para mim. “Qual é o perigo? Onde está o perigo? Há um perigo à espreita, em algum lugar na linha. Alguma terrível desgraça está para acontecer. Quanto a isso não há dúvida, nesta terceira vez, depois do que aconteceu antes. Mas com certeza isso me atormenta. O que posso fazer?!”
Ele tirou seu lenço e enxugou as gotas de suor de sua testa febril.
“Se eu telegrafar: Perigo, para um dos lados ou para ambos, não posso alegar nenhum motivo para tanto”, continuou ele, enxugando as palmas das mãos. “Eu iria me arrumar problemas e não adiantaria nada. Eles pensariam que estou louco. O que sucederia seria isto: Mensagem ‘Perigo! Cuidado!’ Resposta: ‘Que Perigo? Onde?’ Mensagem: ‘Não sei. Mas, pelo amor de Deus, cuidado!’ Eles me demitiriam. O que mais poderia fazer?”
Seu sofrimento causava grande pena. Era a tortura mental de um homem consciencioso, oprimido intoleravelmente por uma responsabilidade ininteligível que envolvia vidas.
“Quando ele ficou pela primeira vez sob a luz de perigo”, continuou, afastando da testa seus cabelos escuros e esfregando as mãos pelas têmporas, num gesto de desespero febril, “por que não me dizer onde esse acidente devia acontecer — se ele devia acontecer? Por que não me dizer como ele poderia ter sido evitado — se ele pudesse ser evitado? Quando de sua segunda aparição, ele escondeu o rosto; por que, em vez disso, não me disse, ‘Ela vai morrer. Diga-lhes para mantê-la em casa?’ Se ele viesse, nessas duas ocasiões, apenas para me mostrar que seus avisos eram verdadeiros e portanto para preparar-me para o terceiro, por que simplesmente não me avisar agora? E eu, Deus me ajude, um simples e pobre sinaleiro neste lugar solitário! Por que não ir até alguém com credibilidade e poder para agir?!”
Quando o vi nesse estado, compreendi que, em favor do pobre homem, assim como para a segurança do público, o que me cabia fazer no momento era acalmá-lo. Conseqüentemente, deixando de lado toda discussão entre nós sobre o que era real e o que não era, argumentei com ele que quem quer que exercesse tão conscienciosamente sua função fazia-o bem, e que ao menos para seu consolo ele compreendia seu dever, embora não compreendesse essas aparições malditas. Nesse esforço eu me saí muito melhor do que na tentativa de convencê-lo de que estava errado. Ele ficou calmo; as ocupações inerentes a seu posto, à medida que a noite avançava, começaram a requisitar cada vez mais sua atenção, e eu o deixei às duas da manhã. Eu me ofereci para ficar a noite toda, mas ele absolutamente não quis.
Que eu mais de uma vez olhei para trás, para a luz vermelha, enquanto subia pelo caminho, que eu não gostava da luz vermelha e que teria dormido muito mal se minha cama estivesse sob ela são fatos que não vejo motivo para esconder. Nem gostei das duas seqüências do acidente e da moça morta. Não vejo motivo para esconder isso também.
Mas o que mais me ocupava o pensamento era a reflexão sobre como deveria agir, agora que me fora feita uma tal revelação. Eu verificara que o homem era inteligente, atento, escrupuloso e pontual; mas por quanto tempo ele continuaria assim, nesse estado de espírito? Apesar de sua posição subordinada, ele tinha uma responsabilidade da maior importância. Gostaria eu (por exemplo) de apostar minha própria vida nas possibilidades de ele continuar a executá-la com perfeição?
Incapaz de superar uma sensação de cometer de certa forma uma traição se comunicasse aos seus superiores na Companhia o que ele me dissera, sem primeiro ter uma conversa franca e propor uma solução intermediária para ele, resolvi por fim oferecer-me para acompanhá-lo (e também guardar segredo por uns tempos) ao melhor médico especialista que pudéssemos consultar na região e pedir sua opinião. Uma mudança no seu turno de serviço ocorreria na noite seguinte, segundo ele me informara; ele estaria livre uma hora ou duas após o amanhecer e voltaria logo depois do anoitecer. Tínhamos marcado nosso encontro conforme esse esquema.
A noite seguinte estava agradável, e eu saí cedo de casa, a fim de desfrutá-la. O sol ainda não se pusera quando atravessei a calçada próxima do topo do entalhe profundo. Eu estenderia minha caminhada por uma hora, disse comigo, meia hora para ir e meia hora para voltar, e então já seria hora de ir à cabina do meu sinaleiro.
Antes de prosseguir meu passeio, pisei na borda e mecanicamente olhei para baixo, no lugar de onde o vira pela primeira vez. Não consigo descrever o calafrio que me percorreu quando, junto à boca do túnel, vi o vulto de um homem, com sua manga esquerda sobre os olhos, acenando veementemente com o braço direito.
O indizível horror que me sufocava passou num minuto, pois logo vi que esse vulto era de fato um homem e que havia um pequeno grupo de outros homens em pé a uma pouca distância dali, para quem ele parecia estar encenando o gesto que fizera. A luz de perigo ainda não estava acesa. Junto ao poste, estava uma pequena tenda baixa, que nunca vira antes, com suportes de madeira e lona. Não parecia maior do que uma cama.
Com uma sensação inelutável de que havia algo errado — com um súbito medo do sentimento de culpa pelo erro fatal de ter deixado o homem ali e não ter feito com que enviasse alguém para supervisioná-lo ou corrigir o que ele fazia — desci o caminho chanfrado o mais depressa que pude.
“O que aconteceu?”, perguntei aos homens.
“O sinaleiro foi morto esta manhã, senhor.”
“Não é o homem daquela cabina, é?”
“É sim, senhor.”
“O homem que conheço?”
“O senhor o reconhecerá, se o conhecia”, disse o homem que era um porta-voz, descobrindo solenemente sua própria cabeça e levantando uma ponta da lona, “pois seu rosto não se alterou”.
“Meu Deus! Como isso aconteceu, como isso aconteceu?”, perguntei, virando para um e para outro, enquanto a cabina era novamente fechada.
“Ele foi morto por uma locomotiva, senhor. Ninguém na Inglaterra conhecia melhor seu trabalho do que ele. Mas, não se sabe por quê, ele não saiu do trilho externo. Foi em pleno dia. Ele havia acendido a luz e tinha na mão a lanterna. Quando a locomotiva saiu do túnel, ele estava de costas para ela e foi atingido. Aquele homem ali estava no comando e mostrando como aconteceu. Mostre a este cavalheiro, Tom.”
O homem, que usava uma capa tosca e escura, recuou para o lugar onde estivera antes, junto à boca do túnel.
“Depois da curva do túnel, senhor”, disse ele, “eu o vi no fim, como que numa luneta. Não deu tempo de diminuir a velocidade, e eu sabia que ele era muito cuidadoso. Como ele pareceu não ouvir o apito, eu desliguei a máquina quando estávamos próximos dele e chamei-o o mais alto que pude.”
“O que você disse?”
“Eu disse: Alô, aí embaixo! Cuidado! Cuidado! Pelo amor de Deus, saia do caminho!”
Levei um choque.
“Ah!, foi horrível, senhor. Eu não parei de gritar para ele. Pus meu braço na frente dos olhos, para não ver, e acenei este outro até o último momento; mas de nada adiantou.”
Para não prolongar a narrativa com detalhes acerca de algumas das estranhas circunstâncias mais do que de outras, posso, ao encerrá-la, sublinhar a coincidência de que o alerta do maquinista da locomotiva incluía não apenas as palavras que o infeliz sinaleiro repetira para mim e que dizia persegui-lo, mas também as palavras que não ele, mas eu próprio associara — e apenas mentalmente — ao gesto que ele imitara.
Do Blog Contos Fantásticos.
Um trecho:
22 de agosto de 1972
No Sunday Times de ontem, uma reportagem de Francistown, em Botswana. Em algum momento da semana passada, no meio da noite, um carro, modelo americano, branco, foi até uma casa numa área residencial. Homens com gorros balaclava saltaram, arrombaram aos chutes a porta de entrada e começaram a atirar. Quando cansaram de atirar, tocaram fogo à casa e foram embora. Das brasas, os vizinhos retiraram sete corpos calcinados: dois homens, três mulheres, duas crianças.
Os assassinos pareciam ser negros, mas um dos vizinhos ouviu que falavam africânder entre eles e estava convencido de que eram brancos pintados de preto. Os mortos eram sul-africanos, refugiados que tinham mudado para a casa poucas semanas antes.
Consultado, o ministro das Relações Exteriores sul-africano, por intermédio de um porta-voz, qualificou a reportagem de “sem comprovação”. Serão realizadas investigações, diz ele, para determinar se os mortos eram de fato cidadãos sul-africanos. Quanto aos militares, uma fonte não identificada nega que a Força de Defesa sul-africana tenha qualquer coisa a ver com o assunto. Os assassinatos são provavelmente uma questão interna do Congresso Nacional Africano, sugere ele, que revela as “tensões existentes” entre facções.
Assim vão se sucedendo, semana após semana, essas histórias de países limítrofes, assassinatos seguidos de débeis negativas. Ele lê as reportagens e sente-se conspurcado. Então foi para isso que voltou? Porém onde no mundo alguém pode se esconder sem se sentir conspurcado? Será que se sentiria mais limpo nas neves da Suécia, lendo a distância sobre seu povo e suas últimas travessuras?
Como escapar da sujeira: não uma questão nova. Uma velha questão corrosiva que não larga, que deixa sua feia ferida supurando. Remorso moral.
“Pelo visto a Força de Defesa está de volta aos velhos hábitos”, ele observa a seu pai. “Em Botswana desta vez.” Mas o pai está desconfiado demais para morder a isca. Quando pega o jornal, toma o cuidado de ir direto para as páginas de esporte e pular a política; a política e os assassinatos.
Seu pai sente apenas desdém pelo continente ao norte. “Bufões” é a palavra que usa para desqualificar os líderes de Estados africanos: tiranos miúdos que mal conseguem soletrar o próprio nome, levados de um banquete a outro em seus Rolls-Royce, usando uniformes de forças imaginárias enfeitados com medalhas que outorgaram a si mesmos. África: um lugar de massas esfaimadas presididas por bufões homicidas.
“Invadiram uma casa em Francistown e mataram todo mundo”, ele insiste mesmo assim. “Executaram. Inclusive as crianças. Olhe. Leia a reportagem. Está na primeira página.”
O pai dá de ombros. Não consegue encontrar palavras que abarquem sua repulsa por matadores que executam mulheres e crianças indefesas, de um lado, e, de outro, por terroristas que fazem guerra a partir de refúgios fora das fronteiras. Ele resolve o problema mergulhando nos resultados do críquete. Como reação a um dilema moral, a atitude do pai é frágil; mas a resposta dele próprio (ataques de raiva e desespero) será melhor?
Houve tempo em que pensava que os homens que sonharam a versão sul-africana de ordem pública, que deram origem ao vasto sistema de reservas de trabalho, passaportes internos e cidades-satélite, tinham baseado sua visão em uma leitura tragicamente equivocada da história. Tinham interpretado mal a história porque, nascidos em fazendas ou em pequenas cidades no interior, e isolados dentro de uma língua que não era falada em nenhum outro lugar do mundo, eles não sabiam avaliar a escala de forças que desde 1945 vinha arrasando o velho mundo colonial. Mas era errado dizer que tinham interpretado mal a história. Porque eles não faziam nenhuma leitura da história. Ao contrário, viravam as costas para ela, descartando a história como uma massa de enganos concatenados por estrangeiros que sentiam desprezo pelos africânderes e que fechariam os olhos se eles fossem massacrados pelos negros, até a última mulher e criança. Sozinhos e sem amigos na ponta remota de um continente hostil, eles erigiram seu Estado-fortaleza e se retiraram para trás de suas muralhas: ali manteriam a chama da civilização cristã ocidental acesa até finalmente o mundo recuperar a razão.
Fernando Bonassi
Um trecho
14/02
Os comerciais felizes foram inventados pelas agências de propaganda do governo há coisa de talvez 20 anos. Eram famílias reunidas com adultos e crianças comendo e rindo como se tivessem prazer em estar 1as com as outras. Eu mesmo fui criado com eles, embora não acreditássemos que pudessem dar resultado, já que só os comerciais eram felizes, mas a vida muito infeliz, ou estragada. Os adultos desesperados e desempregados já vinham sendo exterminados pelas primeiras facções de crianças; víamos tv mas também víamos o que acontecia nas ruas. Então o governo introduziu as drogas químicas no ensino pra que, apesar da burrice e da insegurança, parecêssemos sempre felizes ou, pelo menos, inteligentes. A idéia não pegou, já que mesmo 1 pouco felizes pela droga, ainda éramos burros e tínhamos medo e insegurança... Resultado: nota "0" para a iniciativa, mas aí muitos (professores e alunos) já tinham se deteriorado naquilo e espalharam a sua louca vingança... E as ruas dessa cidade foram sendo abandonadas e essa própria cidade foi cercada e isolada pelas cidades vizinhas... Até virar essa... Esse... Isso que temos... 1a "ex-cidade"...
15/02
As últimas famílias, como a minha, vivem nos topos dos edifícios remanescentes, com os últimos porteiros e seguranças contratados ao preço de 7 refeições por semana e da autorização pra dormirem nas garagens aquecidas e blindadas. Assim uns vigiam os outros e todos se vigiam mutuamente contra os invasores. Os invasores são de todos os tipos e de todos os jeitos: desde cobradores violentos, vendedores de Enciclopédia de Segurança, pregadores fundamentalistas e militaristas até as crianças mais frias e calculistas, que se fazem de ingênuas pra poderem exterminar e saquear aqueles que lhes têm dó. Os circuitos de vigilância milagrosamente continuam funcionando com suas velhas baterias solares, registrando esses atos de violência contra a portaria.
Sinopse: Um quinteto de desajustados de vinte e poucos anos está cumprindo pena de serviços comunitários quando uma estranha tempestade – chovem carros, inclusive – cai sobre eles. Depois, eles aos poucos vão descobrindo que ganharam poderes como invisibilidade, telepatia, viagem no tempo e despertar a libido de outros violentamente (!). O quinto membro ainda não descobriu seu poder. Nada de Heroes. E nem de No Heroics, a deturpação cômica dos superpoderosos também produzida pelos britânicos. A referência mais próxima de Misfits é Skins, seriado teen de grande sucesso lá fora por trazer realismo total à representação da vida dos adolescentes ingleses, sem restrições a sexo, drogas ou linguagem pesada. Para baixar, clique na imagem e vá ao Filmes com Legenda.
Rubem Fonseca
Nosso filho Gabriel, de catorze anos, era gago. Eu e minha mulher Celina já o havíamos levado a vários especialistas, mas a gagueira dele continuava.
Gabriel era estudioso e passava de ano em todas as matérias, menos em português, em que sempre ficava de recuperação. Conseguíamos um professor para lhe dar aulas particulares e assim mesmo ele passava com dificuldade.
Nas ocasiões em que o professor mudava, o que podia ocorrer quando Gabriel passava de ano, eu e Celina procurávamos o novo professor para falar das dificuldades do nosso filho. Nesse ano, quando marcamos a entrevista, verificamos que quem ia ensinar português ao Gabriel era uma professora, de nome Alice, que fora transferida de outra escola, uma mulher de aproximadamente quarenta anos, separada do marido, sem filhos.
A professora perguntou se Gabriel gostava de ler e minha mulher respondeu que ele detestava e se irritava quando o professor mandava ler um livro da bibliografia. A professora Alice disse que isso era comum, os jovens, com algumas exceções, não gostavam de ler.
Uns meses depois a professora Alice nos telefonou pedindo que fôssemos à escola. Ela nos recebeu gentilmente e disse que haviam sido realizadas as primeiras provas e que Gabriel tivera um desempenho abaixo de sofrível. Acrescentou que ele precisaria de aulas particulares. Minha mulher deu um suspiro, era ela quem tomava conta das finanças da família e conhecia melhor do que eu a nossa situação econômica. Eu sempre achei que Gabriel deveria estudar numa escola pública, mas Celina queria que ele freqüentasse o melhor colégio, cuja mensalidade era uma fortuna.
A professora Alice era uma mulher inteligente e devia ter percebido o nosso embaraço. Ou talvez não tivesse tido a sensibilidade de ler o nosso semblante, apenas notara pelas nossas roupas que nós não pertencíamos ao mesmo nível econômico e social dos outros pais que tinham filhos naquele colégio. Houve um instante em que percebi que a professora Alice olhara os sapatos de Celina, e as mulheres entendem de sapatos, e são capazes de descobrir, pelo sapato de uma mulher, o nível econômico-social a que ela pertence.
Depois de consultar uma agenda, a professora Alice disse que poderia dar as aulas particulares ao Gabriel sem cobrar por isso.
Eu e Celina alegamos, sem muita convicção, que não queríamos dar esse trabalho a ela, mas a professora Alice foi categórica e marcou para todas as terças e quintas-feiras à noite aulas particulares em sua casa.
Aquilo nos deixou aliviados, não apenas deixaríamos de pagar pelas aulas como elas não seriam realizadas em nosso pequeno e desconfortável apartamento.
Um mês mais tarde notei que Gabriel estava deitado no quarto lendo. Perguntei que livro era aquele e ele respondeu que lhe fora emprestado pela professora Alice. Ela é boa professora?, perguntei, e ele respondeu que ela era legal.
Contei para Celina o que acontecera. Ela não acreditou que Gabriel estivesse lendo um livro, disse que ele odiava livros. Acrescentei que era um livro do Machado de Assis e ela fez uma careta dizendo que quando mandavam ela ler Machado de Assis no colégio ela não conseguia e pedia a uma amiga para lhe dizer qual era a trama do livro, e acrescentou que Machado de Assis era um chato insuportável.
Mais tarde, quando estávamos na cama, ela disse, essa professora Alice é uma feiticeira.
Feiticeira do bem, acrescentou depois de uma pausa.
Mas a professora Alice era muito mais feiticeira do que supúnhamos. Além de ter tido uma boa nota na segunda prova e de ficar lendo diariamente, até mesmo deixando de ver o jogo de futebol na televisão, Gabriel parou de gaguejar.
Celina lembrou-se do médico que dissera que para curar a gagueira de Gabriel precisaria usar um tal de método holístico. Ele explicou o que era, escreveu num papel, que eu guardei. A gagueira, conforme escreveu o médico, só poderia ser curada através do holismo, que busca a integração dos aspectos físicos, emocionais, mentais do ser humano. Segundo o médico, nós não éramos apenas matéria física, nem somente consciência, nem unicamente emoções, éramos uma totalidade que precisa ser analisada em sua inteireza. O tratamento holístico custaria uma fortuna. Creio que ele não olhou os sapatos de Celina.
O certo é que Gabriel não gaguejava mais e ao comentar o assunto no escritório um colega me disse que isso era muito comum, um menino ou menina gaguejava até uma certa idade e de repente parava de gaguejar.
Gabriel não apenas falava com desembaraço, também deixara de ter o aspecto sorumbático de antes. Ter se curado da gagueira lhe fizera um grande bem. E também a Celina, que sentiu-se perdoada. Nós tivemos o Gabriel quando ela tinha dezesseis anos de idade e eu dezoito, ainda solteiros. E ela, que era muito católica, eu diria mesmo uma carola, acreditava que a deficiência de Gabriel tinha sido uma espécie de punição divina e sentia-se culpada.
Convidamos a professora Alice para jantar em nossa casa. Era uma pessoa agradável, inteligente e muito falante. Quem ficou muito calado durante o jantar foi o Gabriel, certamente com medo de gaguejar na frente da professora. Eu o provoquei várias vezes, mas ele respondia monossilabicamente.
Celina perguntou à professora se Gabriel ainda precisava daquelas aulas extras, explicou que não queríamos abusar da sua generosidade. Alice respondeu que ele estava indo muito bem, principalmente na parte de redação, pois passara a ler bastante, mas na gramática ainda havia algumas insuficiências.
Um dia recebi um telefonema de um comissário de menores chamado Lacerda, que disse que queria ter uma conversa reservada comigo. Pedi uma licença no escritório e marquei uma hora à tarde em que Celina estaria trabalhando.
Lacerda ao chegar se identificou. Em seguida perguntou se eu conhecia a professora Alice Peçanha. Respondi que sim. Lacerda disse que fora ao colégio e tivera conhecimento de que o meu filho de catorze anos, Gabriel, estava tendo aulas particulares com ela, em sua casa, durante a noite. Respondi que sim. Ele então me disse que a professora Alice Peçanha fora obrigada a abandonar a escola onde ensinava anteriormente, em outra cidade, porque fora acusada de abusar sexualmente de um aluno de treze anos, a quem também dava aulas particulares, mas a acusação não fora devidamente comprovada.
Mulheres pedófilas, disse Lacerda, são raras, essa atração sexual de um adulto por crianças ocorre mais com homens. Então, com uma voz grave, disse que gostaria de falar com o meu filho, para preparar as informações que seriam enviadas ao juizado.
Assim que ele acabou de falar eu perguntei se uma mulher ter relações com um menino de catorze anos faria mal a ele. O comissário respondeu que o Estatuto da Criança e do Adolescente dizia que era crime submeter um adolescente, não importava o sexo, à exploração sexual. Meninos e meninas eram tratados igualmente perante a lei, se não se aceitava que um homem adulto tivesse relações sexuais com uma menina, o que chegava a ser considerado estupro presumido, também não se podia aceitar que uma mulher adulta tivesse relações sexuais com um menino. Disse que era dever deles, comissários, conforme a lei, garantir a inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, dos dois sexos. Lamentava muito, mas precisava ter uma conversa com o meu filho. Se confirmasse que a professora Alice abusava dele, ela seria processada de acordo com a lei.
Concordei com ele, pedi para me esperar que eu daria um pulo no colégio, que era próximo, e traria o meu filho para conversar com ele.
Quando o meu filho chegou o comissário disse que queria falar com ele sem a minha presença. Saí da sala e deixei os dois a sós.
O comissário Lacerda devia ser um homem meticuloso, pois ficou conversando com o meu filho quase duas horas. Depois abriu a porta da sala e me chamou. Disse que o meu filho lhe dissera que a professora Alice jamais tocara nele. E que, conforme a sua experiência em interrogar menores, ele não tinha dúvidas de que o meu filho dizia a verdade.
Antes de se despedir, lamentou o tempo que perdia fazendo investigações baseadas em informações falsas.
Ficamos calados na sala, eu e o meu filho, um sem olhar para o outro. Gabriel, depois de algum tempo, disse que seguira as minhas instruções, fizera exatamente o que eu mandara, tanto que o comissário acreditara nele. Respondi que ele agira bem. Gabriel disse que gostava da professora, que ela curara a sua gagueira, fizera ele gostar de ler, e que o que eles faziam na cama não era nenhum pecado. Respondi que o assunto estava encerrado, que a mãe dele não precisava saber de nada e que eu não queria saber de mais nada.
Gabriel disse que naquela noite tinha aula com a professora Alice, perguntou se devia ir. Eu respondi que sim, ele devia ir a todas as aulas na casa da professora Alice.
Gabriel me deu um abraço. E não falamos mais no assunto.
__ Vida é o que acontece quando você está ocupado fazendo outros planos.
John Lennon
Vi no Análise Indiscreta.
Italo Calvino
Um trecho:
Parte 1
EXPOSIÇÕES. EXPLORAÇÕES
Há uma pessoa que faz coleção de areia. Viaja pelo mundo e, quando chega a uma praia de mar, à orla de um rio ou de um lago, a um deserto, a uma charneca, recolhe um punhado de areia e o carrega consigo. Na volta, esperam-na alinhadas em longas prateleiras centenas de frasquinhos de vidro nos quais a fina areia cinzenta do Balaton, a areia alvíssima do golfo do Sião, a vermelha que o curso do Gâmbia deposita pelo Senegal abaixo desdobram sua limitada gama de cores esfumadas, revelam uma uniformidade de superfície lunar, mesmo passando por diferenças de granulosidade e consistência, do cascalhoso preto e branco do Cáspio, que parece ainda encharcado de água salina, aos minúsculos pedriscos de Maratea, igualmente pretos e brancos, à sutil farinha branca pontilhada de caracóis lilases de Turtle Bay, perto de Malindi, no Quênia.
Numa exposição de coleções estranhas que houve recentemente em Paris — coleções de chocalhos de vacas, de jogos de tômbola, de tampas de garrafa, de apitos de terracota, de tíquetes ferroviários, de piões, de invólucros de rolos de papel higiênico, de distintivos colaboracionistas da ocupação, de rãs embalsamadas —, a vitrine da coleção de areia era a menos chamativa, mas também a mais misteriosa, a que parecia ter mais coisas a dizer, mesmo através do opaco silêncio aprisionado no vidro das ampolas. Passando em revista esse florilégio de areias, o olho capta primeiro apenas as amostras que mais se destacam, a cor ferrugem de um leito seco de rio no Marrocos, o branco e preto carbonífero das ilhas de Aran ou uma mistura cambiante de vermelho, branco, preto, cinza que traz na etiqueta um nome ainda mais policromo: ilha dos Papagaios, México.
Depois as diferenças mínimas entre areia e areia obrigam a uma atenção cada vez mais absorta, e assim, pouco a pouco, entra-se numa outra dimensão, num mundo que não tem outros horizontes senão essas dunas em miniatura, onde uma praia de pedrinhas cor-de-rosa nunca é igual a outra praia de pedrinhas cor-de-rosa (misturadas com os brancos da Sardenha e das ilhas Granadinas do Caribe; misturadas com os cinzas de Solenzara, na Córsega), e uma extensão de cascalho miúdo e preto em Port Antonio na Jamaica não é igual a uma da ilha Lanzarote nas Canárias nem a outra que vem da Argélia, talvez do meio do deserto.
Tem-se a impressão de que essa amostragem da Waste Land universal esteja para nos revelar alguma coisa importante: uma descrição do mundo? Um diário secreto do colecionador?
Ou um oráculo sobre mim, que estou a escrutar nestas ampulhetas imóveis minha hora de chegada? Tudo isso junto, talvez.
Do mundo, a colheita de areias selecionadas registra um resíduo de longas erosões que é simultaneamente a substância última e a negação de sua exuberante e multiforme aparência: todos os cenários da vida do colecionador surgem mais vivos que numa série de slides coloridos (uma vida — dir-se-ia — de eterno turismo, como aliás parece ser a vida nos slides, e assim a reconstituiriam os pósteros se restassem somente eles como documentos de nosso tempo — um deleitar-se em praias exóticas alternado a explorações mais arriscadas, numa inquietude geográfica que trai uma incerteza, uma ânsia), evocados e ao mesmo tempo cancelados pelo gesto já compulsivo de inclinar-se para recolher um pouco de areia e encher um saquinho (ou um recipiente de plástico? ou uma garrafa de coca-cola?) e depois dar meia-volta e ir embora.
__ A princípio, acho que para tentar encontrar seu caminho nas letras você procura um modelo. E eu elegi quatro ou cinco que significaram muito para mim em meus anos de formação. Mas depois que está formado, então você lê basicamente à procura de coisas tão admiráveis que gostaria de ter feito você mesmo, e não está acima de, quem sabe, roubá-las, se conseguir achar um bom lugar para escondê-las. (…) Os jovens me perguntam sobre como se tornar escritores, mas eles na verdade não leram nada, nem mesmo coisas ruins. Nunca tiveram a experiência da leitura como felicidade. Ora, sem algum conhecimento sobre o que outros escritores fizeram, é muito difícil encontrar seu próprio caminho, eu acho. Suponho que todos sejamos ladrões.
John Updike
Vi no Todoprosa.
Uma legião de horríveis, centenas em número, seminus ou em trajes clássicos ou bíblicos ou tirados de um armário num delírio, com peles de animais e atavios de seda e peças de uniforme ainda manchadas com o sangue dos antigos donos, capotes de dragões chacinados, túnicas de cavalaria com alamares e debruadas, um de cartola e um com um guarda-chuva e um de meias brancas e com um véu de noiva manchado de sangue e alguns com cocares de penas de garça ou capacetes de couro cru com chifres de touro ou de búfalo e com uma casaca vestida ao contrário e com o rosto nu e um com uma armadura de um conquistador espanhol, o peito e as espáduas completamente amassados por antigos golpes de massa ou sabre desferidos em outro país por homens cujos ossos eram pó e muitos com tranças entremeadas com cabelos de outros animais enquanto rastejavam pelo chão e as orelhas e rabos de seus cavalos enfeitadas com pedaços de panos coloridos e um cujo cavalo tinha toda a cabeça pintada de vermelho carmesim e todos os cavaleiros com pinturas espalhafatosas e grotescas no rosto como um regimento de palhaços montados, de matar de rir, todos berrando numa língua bárbara e cavalgando como uma horda saída de um inferno ainda mais terrível do que a terra de enxofre do juízo final cristão, guinchando e uivando e envoltos em fumaça como aqueles seres fantásticos de regiões além do justo conhecimentos onde o olho vagueia e o lábio resseca e baba.
O regimento agora conseguira parar e os primeiros tiros estavam sendo desfechados e a fumaça cinzenta dos rifles rolava em meio à poeira ao mesmo tempo que os lanceiros abriam brechas em suas fileiras. O cavalo do garoto desabou embaixo dele com um suspiro longo e profundo Ele já tinha atirado com seu rifle e agora estava sentado no chão e atrapalhado com sua cartucheira. Um homem perto dele estava sentado com uma flecha pendendo do pescoço. Estava levemente curvado, como se estivesse rezando. O garoto ia puxar a ponta ensangüentada mas então viu outra flecha cravada no seu peito e o homem estava morto. Havia cavalos caídos por todo lado e homens arrastando-se e ele viu um homem sentado carregando seu rifle enquanto sangue escorria de suas orelhas e viu homens com seus revólveres abertos tentando ajustar seus cilindros mal municiados e viu homens de joelhos pendendo e abraçando suas sombras no chão e viu homens transpassados por lanças e agarrados pelos cabelos e escalpelados de pé e viu os cavalos dos guerreiros pisarem em cima dos caídos e um pônei pequeno de focinho branco com um olhar sombrio avançou para ele e tentou mordê-lo como um cachorro e foi embora. Entre os feridos alguns pareciam idiotas e inconscientes e alguns estavam pálidos atrás das máscaras de poeira e alguns tinham se borrado ou cambaleado até as lanças dos selvagens. Agora movendo-se numa fila turbulenta os cavalos impetuosos com olhos esbranquiçados e dentes afiados e cavaleiros nus com feixes de flechas presos entre os dentes e seus escudos cintilando na poeira e indo para o extremo das fileiras destroçadas entre o assobio de flautas de ossos e pendurados de lado em suas montarias com um calcanhar pendendo das correias ressecadas e seus pequenos arcos flectidos sob os pescoços esticados dos pôneis até terem cercado o regimento e cortado suas fileiras em dois e então voltando como vultos ridículos, alguns com figuras assustadoras pintadas no peito, cavalgando entre os saxões a pé e espetando-os e batendo neles de cima de suas montarias com facas e galopando ao redor sobre o solo com um trote cambaio peculiar como criaturas impelidas por estranhas formas de locomoção e arrancando as roupas dos mortos e pegando-os pelos cabelos e passando suas lâminas pelo crânio tanto dos vivos como dos mortos e erguendo no ar os escalpos ensangüentados e cortando e retalhando corpos nus, arrancando membros, cabeças, abrindo os torsos dos brancos estranhos e exibindo punhados de vísceras, órgãos genitais, alguns dos selvagens tão empapados com sangue que deviam ter rolado nele como cães e alguns atiravam-se sobre os agonizantes e os sodomizavam gritando alto para seus companheiros. E agora os cavalos dos mortos surgiram pisoteando da fumaça e da poeira e com os arreios balançando e crinas desgrenhadas e olhos embranquecidos pelo medo como os olhos dos cegos e alguns estavam cheios de flechas e alguns atravessados por lanças e tropeçando e vomitando sangue enquanto andavam pela terra assassina e trotavam de novo fora do alcance da vista. Poeira grudava-se nas cabeças molhadas e nuas dos escalpelados que com a orla de cabelos abaixo das feridas e tonsurados até o osso agora jaziam como macacos mutilados na poeira assentada pelo sangue e por todo lado os agonizantes gemiam e diziam coisas desconexas e cavalos estavam caídos guinchando.
Vi no Escrivinhamentos.
__ Look again at that dot. That’s here. That’s home. That’s us. On it everyone you love, everyone you know, everyone you ever heard of, every human being who ever was, lived out their lives. The aggregate of our joy and suffering, thousands of confident religions, ideologies, and economic doctrines, every hunter and forager, every hero and coward, every creator and destroyer of civilization, every king and peasant, every young couple in love, every mother and father, hopeful child, inventor and explorer, every teacher of morals, every corrupt politician, every “superstar”, every “supreme leader”, every saint and sinner in the history of our species lived there - on a mote of dust suspended in a sunbeam.
Carl Sagan.