Um dia ideal para os peixes-banana e livros e cinema e gibis e nus e ataxia espinocerebelar e 𓋹
sábado, 12 de setembro de 2009
O Corte
Eu jamais matara alguém de verdade antes, nunca havia assassinado outra pessoa, dado cabo de um ser humano. Estranho, mas de certo modo gostaria de poder conversar com meu pai a respeito, uma vez que ele tinha experiência, possuía o que chamávamos no meio empresarial de conhecimento daquele setor específico, tendo sido soldado de infantaria na Segunda Guerra Mundial e participado dos combates na marcha final através da França para invadir a Alemanha entre 1944 e 1945, atirando e certamente ferindo, e muito provavelmente matando, um número indeterminado de sujeitos de farda escura de lã cinza, sendo capaz de manter a maior calma ao contar a história mais tarde. Como alguém sabe de antemão ser capaz disso? Eis a questão.
Bem, claro que eu não podia perguntar nada a meu pai, discutir o problema com ele, mesmo que ainda estivesse vivo, o que não era o caso, cigarro e câncer no pulmão o pegaram aos sessenta e três anos, derrubando-o com a eficácia de um tiro no distante inimigo de farda escura de lã cinza, embora não tão depressa.
A questão, de todo modo, se responderá sozinha, certo? Quero dizer, esse é o ponto-chave. Ou consigo fazer ou não consigo. Se não for capaz, então todas as preparações, todo o planejamento, os dossiês montados, os gastos indispensáveis (que eu não poderia fazer de jeito nenhum) terão sido em vão. Nesse caso, melhor jogar tudo fora, suspender os anúncios, parar os projetos e simplesmente retornar à boiada que ruma distraída para o imenso galpão escuro onde cessam para sempre os mugidos.
O dia de hoje será decisivo. Há três dias, na segunda-feira, falei a Marjorie que teria outra entrevista, desta vez numa indústria pequena em Harrisburg, na Pensilvânia. Precisava estar lá na sexta de manhã, por isso pretendia seguir de carro até Albany na quinta, pegar o vôo para Harrisburg no final da tarde, dormir num hotel, seguir de táxi até a fábrica na sexta pela manhã e voltar a Albany à tarde. Traindo certa preocupação, ela disse: "Isso quer dizer que precisaremos ir embora? Nos mudar para a Pensilvânia?".
"Se esse for nosso maior problema", falei, "ficarei contente."
Depois de todo esse tempo, Marjorie ainda não entende a gravidade da nossa situação. Claro, fiz o possível para ocultar-lhe o tamanho da tragédia e não posso culpar Marjorie se obtive sucesso na tentativa de mantê-la distante dos problemas. Mesmo assim, por vezes sinto solidão.
Isso tem de dar certo. Preciso sair do atoleiro, e logo. Portanto, acho bom ser capaz de matar.
Donald E. Westlake
Trecho de Dias Exemplares, de Michael Cunningham
Walt disse que os mortos se transformavam em relva, mas não havia relva alguma onde enterraram Simon. Ele estava com os outros irlandeses do lado de lá do rio, onde só havia barro, cascalho e nomes escritos em lápides.
Catherine acreditava que Simon tinha ido para o céu. Tinha um medalhão com o retrato e um pouquinho do cabelo dele dentro.
"O céu é o lugar para ele", disse ela. "Ele era bom demais para este mundo." Olhou indecisa para a rua pela janela da sala de visitas, como se esperasse ver uma carruagem reluzente rodando com Simon a bordo, sereno em sua beleza branca como o leite, a acenar e a sorrir, rumando alegremente para o lugar que sempre lhe coubera.
"Se você pensa assim", respondeu Lucas. Catherine acariciou o medalhão. Suas mãos eram afiladas e precisas. Ela era capaz de fazer cerzidos tão delicados que nem dava para ver.
"E no entanto ele ainda está conosco", disse ela. "Você não sente?" Apertava a corrente do medalhão como se fosse um rosário.
"Acho que sim", disse Lucas. Catherine pensava que Simon estava no medalhão, e no céu, e junto com eles ainda. Lucas esperava que ela não julgasse que ele ficaria feliz em ter tantos Simons como concorrentes.
Os convidados tinham partido, e os pais de Lucas já estavam deitados. Apenas Lucas e Catherine continuavam na sala, com o que tinha sobrado. Pratos vazios, a crosta de um pernil. O pernil deveria ter sido para o casamento de Catherine e Simon. Foi uma sorte tê-lo à mão, em vez disso, para o velório.
Lucas disse: "Ouvi o que os tagarelas falavam, a conversa do começo e do fim. Mas eu não falo sobre o começo ou sobre o fim".
Não tivera a intenção de falar como o livro. Nunca queria isso, mas quando estava excitado não conseguia evitar.
Ela disse: "Ah, Lucas".
O coração dele se agitou e bateu contra as costelas.
"Eu me preocupo com você", disse ela. "Você é tão novinho."
"Tenho quase treze", disse ele.
"É um lugar terrível. Um trabalho tão pesado."
"Tenho sorte. Foi bondade deles me dar o emprego de Simon."
"E a escola?"
"Não preciso de escola. Tenho o livro de Walt."
"Você o conhece de cabo a rabo, não é?"
"Ah, não. Tem muita coisa ainda, vou levar anos."
"Você precisa tomar cuidado na fábrica", disse ela. "Você tem que..." Parou de falar, embora seu rosto não tenha mudado. Ela continuou oferecendo seu perfil, que era solenemente belo como o de uma mulher numa moeda. Continuou olhando para a rua pela janela, esperando pelo desfile do séquito celestial, com Simon no alto, o orgulho da família, um novo príncipe dos mortos.
Lucas disse: "Você tem que se cuidar também".
"Não me restou nada mais para cuidar, meu querido. Para mim é só amanhã e o dia seguinte."
Ela colocou de novo a corrente em torno do pescoço. O medalhão desapareceu dentro do seu vestido. Lucas queria lhe dizer - o quê? Queria lhe dizer que estava inspirado e vigilante e corajosamente só, que seu corpo continha seu inquieto coração e algo mais, algo que ele sentia mas não era capaz de descrever: algo poroso, eriçado, movediço, com sombras de pensamento, com desejo e memória; algo de vívido esplendor, um tremeluzir em branco, verde e leve dourado, como estrelas; algo que amava as estrelas porque era feito da mesma substância. Precisava dizer a ela que era impossível, que era intolerável, ser visto sempre como um garoto deformado, estrábico, de cabeça oca e com o costume de falar em espasmos.
Ele disse: "Eu celebro a mim mesmo, e o que eu aceito você aceitará". Não era isso o que queria dizer.
Ela sorriu. Pelo menos não estava zangada com ele. Ela disse: "Agora tenho que ir. Você me acompanha até minha casa?".
"Sim", disse ele. "Sim."
Do lado de fora, na rua, Catherine deslizou a mão para a dobra do cotovelo dele. Ele tentou ficar firme, caminhar de modo viril, embora tudo o que quisesse era estancar o passo, elevar-se como fumaça e flutuar sobre a rua, que estava cheia da sua população noturna, trabalhadores voltando para casa, garotos vendendo seus jornais. O louco sr. Cain andava de um lado para outro em sua esquina, vestido com seu casaco cor de terra, catando distraidamente alguma coisa que fervilhava em sua barba e gritando: "Injúria, ida e esquecida, o que você fez com os corações despedaçados?". A rua estava repleta de seu cheiro característico, esterco e querosene, fumaça acre - alguma coisa estava sempre queimando em algum lugar. Se Lucas pudesse se elevar acima de seu próprio corpo, ele se tornaria aquilo que estava vendo, ouvindo e cheirando. Envolveria Catherine como o ar, e a tocaria em todas as partes. Seria tragado para dentro dela quando ela respirasse.
Ele disse: "O menor dos brotos mostra que não existe de fato morte alguma".
"É como você diz, meu querido", disse Catherine.
Um menino jornaleiro gritou: "Mulher é assassinada brutalmente, leia tudo sobre o caso!". Lucas refletiu que poderia ser um jornaleiro, mas o pagamento era muito baixo, e ele não era confiável para anunciar as notícias, era? Podia se perder e sair pelas ruas gritando: "Cada átomo que pertence a mim pertence também a você". Ele se daria melhor na fábrica. Se o impulso o dominasse, poderia gritar com a máquina de Simon. A máquina não iria entender nem se importar, não mais do que Simon.
Catherine não abriu a boca enquanto caminhavam. Lucas obrigou-se a manter silêncio também. O prédio dela ficava três quadras para o norte, na rua Cinco. Ele subiu com ela a escadaria da entrada e os dois ficaram ali parados por um momento, diante da porta surrada.
Catherine disse: "Chegamos".
Uma carroça passou por eles com uma paisagem dourada pintada na lateral: duas vacas pastando entre árvores raquíticas e uma terceira levantando os olhos para o nome de um laticínio, que flutuava no céu dourado. Aquilo era para ser o paraíso? Será que Simon queria estar lá? Se Simon fosse para o paraíso e este se revelasse um campo repleto de vacas reverentes, que Simon seria ele quando chegasse lá? Seria o Simon completo ou o despedaçado?
Formou-se um silêncio entre Lucas e Catherine, diferente da quietude com que eles tinham caminhado. Era hora, pensou Lucas, de dizer alguma coisa que não soasse como o livro. Disse: "Você vai ficar bem?".
Ela riu, um riso baixo e sussurrante que ele sentiu nos pêlos de seu antebraço. "Sou eu que devo lhe fazer essa pergunta. Você vai ficar bem?".
"Sim, sim, vou ficar ótimo."
Ela olhou para um lugar logo acima da cabeça de Lucas e se recompôs com uma ligeira mudança de posição dentro do vestido escuro. Pareceu por um momento que o vestido, com sua gola alta, sua insinuação de seda escondida, tinha vida própria. Pareceu que Catherine, tendo considerado brevemente a possibilidade de se erguer para fora de seu vestido, tivesse em vez disso decidido permanecer dentro de suas roupas.
Ela disse: "Se tivesse acontecido uma semana mais tarde, eu seria uma viúva, não seria? Agora não sou nada".
"Não, não. Você é maravilhosa, você é linda."
Ela riu de novo. Ele baixou os olhos para a escada, notou que ela continha partículas brilhantes. Mica? Colocou-se por um momento no lugar da pedra. Sentiu-se frio e cintilante, imutável, contente por ser pisado.
"Sou uma velha", disse ela.
Ele hesitou. Catherine tinha passado dos vinte e cinco. Isso foi comentado quando se anunciou o casamento, pois Simon mal tinha completado vinte. Mas ela não era velha do jeito que tinha falado. Não estava estragada ou gasta, não estava descolorida.
Ele disse: "Para mim você não é culpada, nem passada, nem rejeitada".
Ela tocou o rosto dele com a ponta dos dedos. "Menino doce", disse.
Ele disse: "Verei você de novo?".
"Claro que sim. Estarei bem aqui."
"Mas não vai ser a mesma coisa."
"Não. Não vai ser a mesma coisa, infelizmente."
"Se pelo menos..."
Ela esperou para ouvir o que ele iria dizer. Ele esperou também. Se pelo menos a máquina não tivesse levado Simon. Se ele, Lucas, fosse mais velho e mais saudável, com um coração mais forte. Se ele próprio pudesse se casar com Catherine. Se pudesse sair de seu corpo e se tornar o vestido que ela usava.
Houve um silêncio, e ela o beijou. Colocou seus lábios nos dele.
Quando ela recuou, ele disse: "A atmosfera não é um perfume, não tem o gosto do destilado, é inodora, é da minha boca para sempre, estou apaixonado por ela".
Ela disse: "Agora você precisa ir para casa e dormir".
Era hora de deixá-la. Não havia mais nada a fazer ou a dizer. Mesmo assim, ele se deteve. Sentia, como ocorria às vezes em seus sonhos, que estava num palco diante de uma platéia, para a qual devia cantar ou recitar.
Ela se virou, tirou a chave de uma bolsinha, colocou-a na fechadura. "Boa noite", disse.
"Boa noite."
Ele desceu os degraus. Da calçada, disse para o vulto dela que se recolhia: "Sou dos velhos e dos jovens, sou tanto dos tolos como dos sábios".
"Boa noite", disse ela de novo. E desapareceu.
pura dinamite
quinta-feira, 10 de setembro de 2009
Trecho do livro Fúria, de Salman Rushdie
O professor Malik Solanka, historiador de idéias aposentado, irascível criador de bonecos, e desde o seu recente aniversário de cinqüenta e cinco anos, celibatário e sozinho por (mui criticada) vontade própria, em seus anos prateados se viu vivendo uma idade dourada. Lá fora, um verão longo, úmido, a primeira estação quente do terceiro milênio, torrava e transpirava. A cidade fervia de dinheiro. O valor dos aluguéis e das propriedades nunca haviasido tão alto, e na indústria de roupas o que se dizia era que a modanunca estivera tão na moda. Novos restaurantes abriam de horaem hora. Lojas, representantes exclusivos, galerias batalhavampara satisfazer a estonteante demanda por produtos cada vez maisrecherchés: azeites de oliva de produção limitada, saca-rolhas detrezentos dólares, veículos Humvees personalizados, o últimosoftware antivírus, serviços de acompanhantes que ofereciam contorcionistas e gêmeas, instalações de vídeo, arte marginal, xales leves como pluma feitos com a pelugem do queixo de cabritos montanheses extintos. Tanta gente estava reformando seus apartamentos que os preços dos estoques de acessórios e complementos de alta classe dispararam. Havia listas de espera para banheiras,maçanetas, madeiras de lei importadas, lareiras em estilo antigo, bidês, mármores. Apesar da recente queda no valor do índice Nasdaq e das ações da Amazon, a nova tecnologia dominava a cidade: ainda se falava de start-ups, de IPO, de interatividade, do futuro inimaginável que acabara de começar. O futuro era um cassino, todo mundo estava apostando, e todo mundo esperava ganhar.
Na rua do professor Solanka, jovens brancos ricos passeavam nas roupas baggy por baixo das rosáceas dos pórticos, estilosamente simulando indigência enquanto esperavam os bilhões que sem dúvida lhes viriam em algum momento próximo. Havia uma jovem alta, de olhos verdes, de malares centro-europeus pronunciados que chamou particularmente a atenção de seu olho sexualmente abstinente, mas ainda ativo. Seu cabelo loiro-ruivo saía espetado como o de um palhaço de debaixo do boné preto de beisebol D'Angelo Voodoo, os lábios eram cheios e sardônicos, ela riu grosseiramente por trás de uma mão displicente quando o europeu, quase dândi, pequeno Solly Solanka passou girando a bengala, de chapéu panamá e terno de linho cor-de-creme em seu passeio da tarde. Solly: o apelido de faculdade que ele nunca apreciara, masque não havia conseguido perder inteiramente.
‘‘O senhor aí. O senhor, com licença.’’ A loira chamava por ele, num tom imperioso que exigia resposta. Seus acompanhantes puseram-se em alerta, como uma guarda pretoriana. Ela estava quebrando uma regra da vida na cidade grande, audaciosamente, segura de sua força, confiante de seu território e de seu bando, sem nada temer. Aquilo era só bravata de menina bonita, uma bobagem. O professor Solanka parou e virou o rosto para a deusa ociosa do portal, que continuou, irritantemente, a entevistá-lo. ‘‘O senhor anda muito. Quer dizer, cinco, seis vezes por dia eu vejo o senhor indo para algum lugar. Sentada aqui, vejo que o senhor vai, vem, sem cachorro, e nunca volta com alguma amiga, com alguma compra. O horário também é estranho, trabalhar é que osenhor não está indo. Então, pensei assim: por que ele está sempreandando sozinho? Tem um cara na cidade batendo com um blocode concreto na cabeça das mulheres, o senhor quem sabe já ouviufalar, mas se eu achasse que o senhor era um maluco desses, nãovinha conversar. E o senhor tem sotaque inglês, o que é interessante também, certo? A gente até seguiu o senhor umas vezes, mas osenhor não estava indo para lugar nenhum, só andando por aí, passeando. Me deu a impressão de que estava procurando alguma coisa, e aí pensei em perguntar o quê. Só para fazer amizade, boa vizinhança. O senhor é meio misterioso. Para mim, pelo menos.’’
Uma súbita ira brotou dentro dele. ‘‘O que eu estou procurando’’, rugiu, ‘‘é que me deixem em paz.’’ Sua voz tremeu com uma raiva muito maior que a intromissão merecia, uma raiva que o deixava chocado cada vez que percorria seu sistema nervoso, como uma enchente. Ao ouvir sua veemência, a jovem recuou, recolhendo-se ao silêncio.
“Cara”, disse o maior e mais protetor dos guardas pretorianos, seu amante, sem dúvida, seu loiro centurião oxigenado, ‘‘para um apóstolo da paz o senhor está cheio é de guerra.’’
Ela o fazia lembrar de alguém que não conseguia identificar, e a pequena falha de memória, o ‘‘momento de maturidade’’, incomodou-o furiosamente. Felizmente ela não estava mais ali, ninguém estava, quando voltou do carnaval caribenho com o chapéu molhado e ensopado até os ossos, depois de ser apanhado desprevenido por uma rajada de chuva firme e quente.
terça-feira, 8 de setembro de 2009
E vamos nós
Falemos de INGLOURIOUS BASTERDS de Quentin Tarantino. Diálogos, diálogos, longos diálogos. De memóravel, somente o primeiro, entre o vilão principal e um pobre francês, apesar de lembrar outro filme escrito por Tarantino: Amor à Queima-roupa. Tudo bem, Tarantino não é o único cineasta a fazer auto-referência. E vamos nós. No segundo capítulo (como em Kill Bill, o filme é dividido em capítulos), somos apresentados aos Bastardos do título.É um capítulo curto que serve para apresentar os matadores de nazis, e já é bom ir logo esclarecendo o que já se comentava por aí: eles são apenas coadjuvantes no filme, aparecem muito pouco e são desperdiçados em uma trama que se complica nas loooooooooooooooooooooooooooooooooooongas duas horas e lá vai trocentos minutos. Uma trama que envolve uma linda judia dona de cinema querendo vingar-se, uma linda atriz alemã querendo ferrar os nazi, um espião inglês e, claro, meio esquecidos e porcamente desenvolvidos, parecendo inclusive um tanto estúpidos (uma espécie de alívio cômico) os inglorius basterds. Há alguma ação, alguns assassinatos imprevisiveis e brutais que não deixam o filme ser uma grande bosta, mas nada que tire o ar de que não cumpre o que promete. E o problema não está apenas no roteiro, a direção de Tarantino oscila entre uns raros momentos legais (com a ajuda de Ennio Morricone) e outros que se perdem.
Relendo JOE LABRAVA de Elmore Leonard, um noir entre as palmeiras e hoteis bregas de Miami, com direito a golpes, mulheres fatais e diálogos divertidos que são realmente interessantes e não cansam, pelo contrário (aprenda Tarantino!). Elmore Leonard é um dos meus escritores preferidos, um dos poucos cujos livros merecem ser comprados apenas com o aval de seu nome na capa.
No primeiro episódio da nova temporada de DEXTER, encontramos o nosso psicopata preferido casado e com três crianças, perdendo noites de sono ao tentar fazer dormir um bebê e às voltas com um novo psicopata rondando Miami (Miami de novo? Talvez eu deva me mudar para lá. Ou talvez não, parece uma cidade cheia de crimes, divertida para se ler ou ver, mas não para se morar. Enfim) e matando uma linda garota dentro de uma banheira: sangue e sexo e perversão. Um episódio introdutório para a nova temporada que se não empolga tanto, pelo menos abre boas possibilidades a seguir.
E acabou SOM E FÚRIA, aquela série que já comentei por aqui, adaptada de Fernando Meirelles a partir de uma série canandense sobre os bastidores do teatro. Aquela com personagens divertidos e loucos e sexys. Pena, a tv aberta ficou bem mais chata depois que Som e Fúria acabou. Menos engraçada e menos instigante.
E ouvindo ENNIO MORRICONE, na verdade assistindo alguns videos com músicas suas no youtube. O que dizer? Nada a dizer. Procure no youtube. Ouça. É o cara que se fez as trilhas majistrais de Era uma Vez no oeste, A Missão, Os Intocáveis, Três homens em conflito, Por um punhado de dólares, Por uns doláres a mais, Era uma vez na América e tantas outras maravilhas do cinema.
segunda-feira, 7 de setembro de 2009
Ione Rucquoi
“My photographs deal with womanhood, motherhood, life, death, birth, fertility… I don’t like the word feminist, but the issues that make people feminist are very interesting to me.”
trecho de Terrorista, de John Updike
Demônios, pensa Ahmad. Esses demônios querem tomar de mim meu Deus. O dia inteiro, na Central High School, as meninas rebolam, debocham e exibem seus corpos macios, seus cabelos sedutores. Os ventres nus, enfeitados com vistosos piercings no umbigo e tatuagens lascivas em roxo, indagam: O que mais há para mostrar? Os rapazes desfilam, blasés e orgulhosos, com olhares mortos, indicando, com gestos violentos de assassinos e risos indiferentes e sarcásticos, que este mundo é tudo que existe - um corredor barulhento, envernizado, cheio de armários de metal e terminando numa parede lisa, profanada por grafites e tantas vezes pintada e repintada que dá a impressão de estar avançando cada vez mais, milímetro por milímetro.
Os professores, cristãos débeis e judeus não praticantes, falam palavras vazias sobre a virtude e a honradez do autocontrole, porém seus olhares esquivos e suas vozes insinceras traem sua falta de fé. Eles são pagos para dizer essas coisas, pagos pela prefeitura de New Prospect e pelo governo estadual de Nova Jersey. Ahmad e os dois mil outros alunos os vêem se enfiando em seus carros depois das aulas no estacionamento apinhado, pontilhado de lixo, como tantos caranguejos pálidos ou escuros que voltassem a suas cascas, e são homens e mulheres como quaisquer outros, cheios de concupiscência e medo e paixão por coisas que podem ser compradas. Infiéis, pensam que a segurança está em acumular coisas deste mundo, e nas diversões corruptoras da televisão. São escravos das imagens, imagens falsas de felicidade e riqueza. Mas mesmo as imagens verdadeiras são imitações pecaminosas de Deus, o único ser capaz de criar. O alívio por ter escapado incólumes de seus alunos por mais um dia faz com que os professores se dispersem nos corredores e no estacionamento falando alto demais, como bêbados cada vez mais excitados. Os professores caem na farra quando não estão na escola. Alguns têm as pálpebras avermelhadas, o mau hálito e o corpo inchado daqueles que costumam beber em excesso. Uns são divorciados; outros vivem maritalmente sem ser casados. Fora da escola, levam vidas desorganizadas e libidinosas, sem autodisciplina. São pagos para pregar a virtude dos valores democráticos pelo governo estadual, cuja sede fica em Trenton, e por aquele governo satânico mais longe, em Washington, porém os valores em que acreditam são ímpios: biologia, química, física. Quando se trata dos fatos e fórmulas desses assuntos, suas vozes falsas soam firmes e retumbam na sala de aula. Dizem que tudo provém de átomos cegos e implacáveis, responsáveis pelo peso frio do ferro, a transparência do vidro, a imobilidade da argila, a agitação da carne. Os elétrons fluem por fios de cobre, por portas de computador e pelo próprio ar, quando a interação de gotículas de água provoca relâmpagos. Só é verdade aquilo que podemos medir e deduzir a partir de nossas mensurações. Tudo o mais é apenas o sonho passageiro que chamamos de nosso ser.
Ahmad tem dezoito anos. Estamos no início de abril; mais uma vez o verde penetra sorrateiro, semente por semente, nas fendas de terra da cidade cinzenta. Ele olha do patamar de sua altura recém-conquistada e pensa que, para os insetos invisíveis na grama, ele seria, se eles tivessem uma consciência como a sua, Deus. No ano passado Ahmad cresceu sete centímetros, chegando a um metro e oitenta e dois --mais forças materialistas invisíveis a exercer sua vontade sobre ele. Ele não vai crescer mais do que isso, pensa Ahmad, nesta vida nem na outra. Se houver uma outra, um demônio interior murmura. Que provas, além das palavras ardentes e divinamente inspiradas do Profeta, garantem que existe outra vida? Onde ela estaria escondida? Quem estaria eternamente abastecendo as fornalhas do Inferno? Que fonte infinita de energia haveria de manter o Éden opulento, alimentando as huris de olhos negros, fazendo crescer os frutos pesados nas árvores, renovando os riachos e chafarizes em que Deus, conforme a nona sura do Alcorão, eternamente se regozija? E a segunda lei da termodinâmica?
As mortes dos insetos e vermes, cujos corpos rapidamente são absorvidos pela terra, o mato e o asfalto da estrada, tentam dizer a Ahmad, demoníacas, que a morte dele será igualmente pequena e definitiva. No caminho da escola, ele percebeu um sinal, uma espiral traçada na calçada em icor luminoso, o visgo angelical do corpo de alguma criatura vil, um verme ou lesma do qual esse vestígio é tudo que resta. Aonde iria essa criatura, descrevendo uma espiral centrípeta sem nenhum sentido? Se estava tentando se afastar da calçada quente que a assava viva sob o sol forte, foi um equívoco, e os círculos por ela descritos se revelaram fatais. Porém no centro da espiral não ficou nenhum minúsculo corpo de verme.
Então para onde voou aquele corpo? Talvez tivesse sido arrebatado por Deus e levado diretamente para o Céu. O professor de Ahmad, o xeique Rashid, imã da mesquita que fica num sobrado em 2781½ West Main Street, lhe diz que, segundo a tradição sagrada da Hadith, tais coisas acontecem: o Mensageiro, montado no cavalo alado branco Buraq, foi guiado através dos sete céus pelo anjo Gabriel até um determinado lugar, onde ele rezou com Jesus, Moisés e Abraão antes de voltar à Terra, para se tornar o último dos profetas, o maior de todos. São provas de suas aventuras naquele dia as marcas deixadas pelo casco de Buraq, nítidas e límpidas, no Rochedo sob a Cúpula sagrada no centro de al-Quds, chamada de Jerusalém pelos infiéis e sionistas, cujos tormentos nas fornalhas do Jahannan são bem descritos nas suras de número sete, onze e cinqüenta do Livro dos Livros.
O xeique Rashid recita com uma belíssima pronúncia a sura 104, referente ao Hutama, o Fogo Que Consome:
E quem te ensinará o que é o Fogo Que Consome?
É o fogo de Deus a arder,
Que abrasará os corações dos amaldiçoados.
Em verdade, elevar-se-á sobre eles como uma abóbada,
Em colunas estendidas.
zarah leander cantando “davon geht die welt nicht unter”
Canção do filme “die grosse liebe” que mais tarde faria parte de “Inglorius Basterds”.
sugerir livros
- As suas duas últimas sugestões não foram muito apropriadas.
- Então porquê?
- No primeiro livro, um engraçadinho tinha escrito a lápis o nome do assassino na página treze. Quanto ao segundo, nem sequer posso emprestá-lo à minha filha porque está cheio de imoralidades.
- Mas era de um escritor tão bom e tão considerado…
- Pois é como lhe digo. Fiquei um pouco chocada. E, de qualquer modo, o que hoje procuro é um dicionário de francês-inglês.
Diálogo do filme Lola.
de charles baudelaire
O ESTRANGEIRO
- Diga, homem enigmático, de quem gosta mais? De seu pai, de sua mãe, de sua irmã ou de seu irmão?
- Não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.
- Amigos?
- Você usa de palavras cujo sentido até aqui desconheço.
- Pátria?
- Ignoro a que latitude se situa.
- Beleza?
- Deusa e imortal, de bom grado a amaria.
- O ouro?
- Odeio-o como você odeia a Deus.
- Mas que gosta então, estrangeiro extraordinário?
- Das nuvens... as nuvens que passam... lá longe... lá longe... as maravilhosas nuvens!
domingo, 6 de setembro de 2009
língua e olhos amarelos
E ela caiu como de uma grande altura e por mais que caisse podia sentir o calor sussurrando como uma língua áspera na sua pele branca.
trecho: virgens suicidas
Na manhã em que a última filha dos Lisbon decidiu-se também pelo suicídio – foi Mary dessa vez, e soníferos, como Thereza –, os dois paramédicos chegaram à casa sabendo exatamente onde ficavam a gaveta das facas, o forno, e a viga no porão à qual era possível atar uma corda.
Jeffrey Eugenides