segunda-feira, 22 de março de 2021

Entrevista Anthony Burgess

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- O senhor está de alguma forma aborrecido com as acusações de que é prolífico demais ou de que seus romances são muito alusivos?

Tornou-se pecado ser prolífico somente desde que o grupo de Bloomsbury - principalmente Forster - transformou em uma questão de boas maneiras produzir, por assim dizer, sovinamente. Tenho ficado menos aborrecido pelo fato de zombarem de minha alegada superprodução do que pela insinuação de que escrever muito significa escrever mal. Sempre escrevi com grande cuidado, e até com certa lentidão. Simplesmente dedico mais horas por dia a essa tarefa do que alguns escritores parecem ser capazes de dedicar. Quanto às alusões - significando, suponho, alusões literárias -, isso está, com certeza, dentro da tradição. Todo livro tem por trás de si todos os outros livros que já foram escritos. O autor está a par deles; o leitor devia estar a par, também.

- O senhor escreve primeiro as grandes cenas, como fazia Joyce Cary?

Começo no início, continuo até o fim, então paro.

- Faz o projeto completo de cada livro antes de começar?

A princípio planejo um pouco - lista de nomes, sinopse rudimentar dos capítulos etc. Mas não ouso planejar demais; tantas coisas são produzidas pelo simples ato de escrever.

- Depois que os médicos diagnosticaram um tumor cerebral após o colapso que sofreu em sala de aula, em Brunei, por que o senhor escolheu escrever durante aquele "ano terminal", em vez de, digamos, viajar? Ficou reduzido à condição de semi-invalidez?

Eu não era semi-inválido. Estava ativo e em boas condições físicas (o que me fazia duvidar da veracidade do diagnóstico). Mas para viajar pelo mundo é preciso dinheiro, e isso eu não tinha. Somente na ficção as pessoas no "último ano de vida" têm alguma coisa escondida. O fato é que minha mulher e eu precisávamos comer etc., e o único trabalho que eu podia fazer (quem me daria um emprego?) era escrever. Escrevia muito porque me pagavam pouco. Não tinha um grande desejo de deixar um nome na literatura.

- Seu estilo de algum modo mudou durante aquele ano, por se sentir condenado?

Acho que não. Já tinha idade bastante para ter estabelecido algum tipo de estilo narrativo; mas o problema de trabalhar o estilo surgiu mais tarde, é claro. Os romances escritos no chamado ano quase-terminal - ano pseudoterminal - não foram escritos, sabe, com pressa excessiva; era apenas uma questão de trabalhar com afinco todo dia - e o dia todo - inclusive à noite. Fui bastante cuidadoso com as obras, e o que as pessoas procuram no que parece uma quantidade excessiva de produção é alguma evidência de falta de cuidado. Pode ser que haja um pouco disso; mas não é devido à rapidez ou aparente rapidez, mas sim por minhas imperfeições. Não creio que seja possível dizer que um determinado trabalho foi obviamente escrito durante o ano terminal. Não creio que haja alguma diferença qualitativa entre os diversos romances; e, certamente, eu não estava consciente de nenhuma influência no estilo, na forma de escrever, causada por essa revelação.

- Usa algumas vezes formas musicais ao planejar seus romances?

Ah, sim, aprende-se bastante com formas musicais. Estou planejando um romance no estilo de uma sinfonia clássica - minueto e tudo. As motivações serão puramente formais, de modo que uma parte de desenvolvimento em que são representadas fantasias sexuais poderá seguir-se a uma exposição realista, sem explicação nem estratagema intermediário, voltando a ela (agora como recapitulação) com a mesma ausência de justificativa psicológica ou artifício formal.

- Os compositores lidam bastante com transições. Não é esse exato exemplo de composição literária por analogia musical um modelo de "artifício formal", entendido melhor pelo leitor que seja ao menos músico amador?

Creio que a música ensina a profissionais de outras artes estratagemas formais úteis; mas o leitor não precisa conhecer sua procedência. Eis um exemplo: um compositor modula de uma clave a outra com o uso do acorde "ambíguo", o sexto aumentado (ambíguo porque é também o sétimo dominante). Em um romance, pode-se mudar de uma cena para outra usando uma frase ou uma afirmação comum a ambas - isso é muito freqüente. Se a frase ou afirmação significa coisas diferentes nos diferentes contextos, fica mais musical ainda.

- Que me diz da técnica cinematográfica como influência em seus escritos?

Tenho sido muito mais influenciado pelo teatro do que pelo cinema. Escrevo cenas longas demais para serem representadas sem interrupção no cinema. Mas gosto de imaginar uma cena antes de escrevê-la, vendo tudo acontecer, ouvindo um pouco do diálogo. Já escrevi tanto para a televisão como para o cinema, mas não com muito sucesso. Era literário demais ou algo assim. Os produtores de filmes históricos me chamam para revisar os diálogos, mas eles acabam saindo na forma original.

- O senhor espera escrever outro romance sobre o futuro, como A clockwork orange ou The wanting seed?

Não tenho planos para um romance sobre o futuro, exceto uma história louca em que a Inglaterra se transforma em um simples parque de diversões administrado pelos Estados Unidos.

- O senhor mencionou que A clockwork orange tem um capítulo final na edição britânica que não consta das edições americanas. Isso o incomoda?

Sim, detesto ter duas versões diferentes do mesmo livro. A edição norte-americana tem um capítulo a menos e, por isso, o plano aritmológico fica atrapalhado. Além disso, a opinião implícita de que a violência juvenil é uma fase para se atravessar e depois superar está ausente da edição norte-americana; e isso reduz o livro a uma simples parábola, quando a intenção era que fosse um romance.

- Em A clockwork orange e em Enderby, principalmente, há um persistente tom de chacota para com a cultura da juventude e sua música. Existe alguma coisa de bom nela?

Desprezo tudo que é obviamente efêmero, e no entanto é tratado como se possuísse alguma espécie de valor supremo. Os Beatles, por exemplo. A maior parte da cultura da juventude, principalmente a música, é baseada no pouco conhecimento da tradição e, com frequência, eleva a ignorância à condição de virtude. Pense nos musicalmente ignorantes que se estabelecem como "arranjadores". E a juventude é tão conformista, tão pouco preocupada com valores dissidentes, tão orgulhosa de ser em vez de fazer, tão segura de que ela e somente ela sabe.

- As obras de arte seriam produzidas por forte libido?

Sim, acho que arte é libido sublimada. Não se pode ser um padre eunuco e não se pode ser um artista eunuco. Fiquei interessado em sífilis quando trabalhei algum tempo num hospital para doentes mentais repleto de casos de paralisia geral. Descobri que havia uma correlação entre o espiroqueta e o talento dos loucos. O tubérculo também produz uma tendência lírica. Keats tinha ambos.

- O estruturalismo representa um grande papel em MF. Como romancista de idéias, qual a importância que lhe dá?

O estruturalismo é a confirmação científica de uma certa convicção teológica - que a vida é binária, que isto é um dueto, e assim por diante. O que quero dizer é que a noção de oposição essencial - não Deus/Demônio, mas simplesmente x/y - é fundamental, e isso é uma espécie de visão puramente estruturalista. Acabamos achando a forma mais importante do que o conteúdo, que a linguagem e a arte são processos fáticos, que os grandes elementos imponderáveis são mera bazófia. Marshall McLuhan vem claudicando por esse caminho, independentemente de Lévi-Strauss. Como é maravilhoso que a bifurcação essencial que é o homem esteja expressa em calças que levam o nome de Lévi-Strauss.

- As versões cinematográficas ajudam ou atrapalham os romances?

Os filmes ajudam os romances em que se baseiam, pelo que fico ao mesmo tempo grato e ressentido. A edição de bolso de Clockwork orange vendeu mais de, um milhão de cópias nos Estados Unidos, graças ao caro Stanley. Mas não gosto de ser visto apenas como um mero criador de filmes. Desejo ser bem-sucedido por meio da literatura pura. Impossível, é claro.

Tiro de letra.


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