MARGARET ATWOOD
Em O ASSASSINO CEGO
A ponte
Dez dias após o final da guerra, minha irmã Laura despencou com o carro do alto de uma ponte. A ponte estava sendo consertada: ela passou direto pela placa de Perigo. O carro caiu de uma altura de 30 metros na ribanceira, batendo nas copas das árvores cheias de folhas novas, e então pegou fogo e rolou até o riacho lá no fundo. Pedaços da ponte caíram sobre ele. Não restou quase nada dela além de fragmentos carbonizados.
Eu fui informada do acidente por um policial: o carro era meu, e tinham verificado a placa. O tom dele foi respeitoso: sem dúvida ele reconheceu o nome de Richard. Ele disse que os pneus podiam ter ficado presos num trilho de bonde ou então o freio podia ter falhado, mas também sentiu-se no dever de me informar que duas testemunhas - um advogado aposentado e um caixa de banco, pessoas confiáveis - haviam afirmado ter visto tudo. Eles tinham dito que Laura havia dado uma guinada brusca e proposital no carro e que havia mergulhado da ponte com a mesma naturalidade com que se desce de um meio-fio. Eles haviam notado as mãos dela no volante por causa das luvas brancas que ela estava usando.
Não foi o freio, eu pensei. Ela tinha os seus motivos. Não que fossem os mesmos motivos de outra pessoa qualquer. Ela era totalmente implacável nesse aspecto.
-- Suponho que alguém precise identificá-la -- eu disse. -- Irei assim que puder. -- Eu ouvi a calma da minha própria voz, como que vindo de muito longe. Na verdade, eu mal consegui pronunciar as palavras; minha boca estava dormente, meu rosto estava rígido de dor. Eu tinha a sensação de ter ido ao dentista. Eu estava furiosa com Laura por ela ter feito o que fizera, mas também com o policial por dar a entender que ela o havia feito. Um vento quente soprava em volta da minha cabeça, e mechas do meu cabelo voavam e giravam como tinta derramada na água.
-- Creio que vai ser necessária uma investigação, Sra. Griffen -- ele disse.
-- Naturalmente -- eu respondi. -- Mas foi um acidente. Minha irmã nunca foi boa motorista.
Eu imaginei o rosto oval e delicado de Laura, seu coque bem feito, o vestido que ela estaria usando: um chemisier de gola redonda, numa cor sóbria - azul marinho ou cinza chumbo ou verde corredor de hospital. Cores penitentes - menos uma coisa que ela tivesse escolhido usar e mais algo em que ela estivesse presa. Seu meio-sorriso solene; o erguer espantado das sobrancelhas, como se ela estivesse admirando a vista.
As luvas brancas: um gesto de Pôncio Pilatus. Ela estava lavando as mãos de mim. De todos nós.
Em quê ela estaria pensando quando o carro projetou-se para fora da ponte, enquanto ficou suspenso no sol da tarde, brilhando como uma libélula por aquele breve instante de respiração presa antes da queda? Em Alex, em Richard, em má fé, no nosso pai e sua ruína; em Deus, talvez, e seu trato triangular, fatal. Na pilha de cadernos baratos que ela deve ter escondido nessa mesma manhã na gaveta da cômoda onde eu guardo as minhas meias, sabendo que seria eu a encontrá-los.
Depois que o policial se foi, eu subi para trocar de roupa. Para ir ao necrotério, eu ia precisar de luvas e de um chapéu com um véu. Algo para cobrir os olhos. Podia haver repórteres. Eu teria que chamar um táxi. E também precisava ligar para o escritório para avisar ao Richard: ele ia querer ter uma declaração de pesar pronta. Entrei no meu quarto de vestir: eu ia precisar de uma roupa preta, e de um lenço.
Abri a gaveta, vi os cadernos. Desatei o barbante que os prendia. Notei que meus dentes estavam batendo e que eu estava toda gelada. Eu devo estar em choque, pensei.
Então eu me lembrei de Reenie, de quando éramos pequenas. Era Reenie quem fazia os curativos de arranhões, cortes e outros machucados: mamãe podia estar descansando ou praticando boas ações em outro lugar, mas Reenie estava sempre lá. Ela nos erguia nos braços e nos sentava na mesa branca da cozinha, ao lado da massa de torta que estava preparando ou da galinha que estava cortando ou do peixe que estava limpando e nos dava um torrão de açúcar mascavo para nos fazer calar a boca. Diga-me onde está doendo, ela dizia. Pára de berrar. Fica calma e me mostra o lugar.
Mas algumas pessoas não conseguem dizer onde está doendo. Elas não conseguem ficar calmas. Elas não conseguem nunca parar de berrar.
The Toronto Star, 26 de maio, 1945
QUESTÕES LEVANTADAS SOBRE MORTE NA CIDADE
Especial para o Star
A investigação realizada acerca da fatalidade ocorrida na Avenida St. Clair na semana passada resultou num veredicto de morte acidental. A Srta. Laura Chase, de 25 anos, estava se dirigindo para oeste na tarde do dia 18 de maio quando o seu carro fez um desvio na direção de uma barreira de proteção de um conserto que estava sendo efetuado na ponte e rolou a ribanceira, pegando fogo. A Srta. Chase teve morte instantânea. Sua irmã, Sra. Richard E. Griffen, esposa do conhecido industrial, testemunhou dizendo que a Srta. Chase sofria de dores de cabeça muito fortes que afetavam sua visão. Em resposta a uma pergunta que lhe foi feita, ela negou qualquer possibilidade de embriaguês, uma vez que a Srta. Chase não bebia.
Segundo a polícia, uma das causas pode ter sido o pneu ter ficado preso num trilho exposto de bonde. Foram feitos alguns questionamentos quanto à adequação das medidas de segurança adotadas pela prefeitura, mas após o testemunho dado pelo engenheiro da prefeitura, Gordon Perkins, esses questionamentos foram abandonados.
O acidente ocasionou renovados protestos acerca do estado dos trilhos de bonde naquele trecho da estrada. O Sr. Herb T. Jolliffe, representante dos contribuintes, disse aos repórteres do Star que este não foi o primeiro acidente causado pelos trilhos abandonados. A Prefeitura devia tomar uma providência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário