segunda-feira, 8 de março de 2021

Isto é água

David Foster Wallace

ficando-longe-do-fato-de-já

Aqui vai mais uma historinha didática. Tem dois caras sentados num bar nas profundezas remotas do Alasca. Um dos caras é religioso, o outro é ateu, e eles estão discutindo a existência de Deus com aquela intensidade característica que surge lá pela quarta cerveja. Aí o ateu diz: “Olha, não é que me faltem motivos concretos para não acreditar em Deus. Não é como se eu nunca tivesse experimentado essas coisa toda de Deus e orações. Agora mesmo no mês passado eu estava longe do acampamento quando fui pego de surpresa por aquela nevasca terrível, não conseguia ver nada, fiquei totalmente perdido, estava 45 graus abaixo de zero, e aí decidi fazer exatamente isso: caí de joelhos na neve e gritei ‘Oh Deus, se é que existe Deus, estou perdido nessa nevasca e vou morrer se você não me ajudar!”. Aí o sujeito religioso encara o ateu, todo intrigado: “Bem, depois disso você deve ter começado a acreditar”, ele diz, “afinal de contas você está aqui, vivo”. O ateu revira os olhos, como se o religioso fosse um tremendo paspalho: “Não, cara, só aconteceu que uns esquimós apareceram do nada e me mostraram para que lado ficava o acampamento”.

É fácil submeter essa história a uma análise meio que padrão das ciências humanas: a mesmíssima experiência pode significar duas coisas completamente diferentes para duas pessoas diferentes, dado que essas pessoas têm dois padrões de crença diferentes e duas maneiras diferentes de construir sentido a partir da experiência. Como valorizamos a tolerância e a diversidade de crenças, preferimos que nossa análise das ciências humanas passe longe de afirmar que a interpretação de apenas um dos caras é verdadeira enquanto a do outro é falsa ou inferior. Nada de errado nisso, tirando o fato de que nunca chegamos a discutir de onde nascem esses padrões e crenças individuais, quer dizer, onde eles nascem dentro dos dois caras. É como se a orientação mais básica de uma pessoa diante do mundo e do significado de suas experiências pudesse estar predefinida de alguma forma como a altura ou o número do sapato, ou ser absorvida da cultura, como a linguagem. (…)

(…) o fato é que o problema dos dogmáticos religiosos é exatamente o mesmo do ateu dessa história – a arrogância, a certeza cega, uma tacanhice que representa uma prisão tão completa que o prisioneiro nem se dá conta de que está trancafiado. Estou querendo dizer que o verdadeiro significado do mantra do “ensinar a pensar” nas ciências humanas tem a ver com isso: ser um pouco menos arrogante, ter um pouco mais de “consciência crítica” a respeito de mim mesmo e minhas certezas… pois no fim das contas uma porcentagem enorme das coisas a respeito das quais estou inclinado a automaticamente ter certeza acaba se revelando ilusória ou completamente equivocada. Aprendi isso do jeito mais difícil, e suponho que com vocês, formandos, não será diferente.

todoprosa


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