terça-feira, 3 de maio de 2011

UMA FOME

Leandro Sarmatz

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Um trecho:

Harry Abbott
Harry Abbott, o ator americano, um ex-viciado em metadona, estava ficando louco --pelo menos é o que andavam dizendo no set. Vivendo havia mais de três meses isolado na Amazônia com W.H., o diretor alemão, além de uma numerosa equipe de atores e figurantes das mais diversas nacionalidades, Abbott estava ali para protagonizar um filme fantasioso sobre ninguém menos que Adolf Hitler. O enredo deveria se concentrar na suposta captura de um Führer já octogenário, que sobrevivia como bicho no meio da floresta brasileira.
Às vezes Abbott chorava o dia inteiro, às vezes preferia ficar pelado dentro d’água até sair completamente murcho quatro horas mais tarde, ou então se punha a provocar alguém da equipe até que isso resultasse numa briga. Na maior parte do dia, porém, o ator parecia um autista ou alguém muito perturbado: olhar empastado, mãos entrelaçadas, murmurava algo completamente ininteligível. Ele não estava batendo bem, comentavam.
Talvez tivesse seus motivos. Aos 42 anos de idade e escondendo de todos o fato de que poucas horas antes da viagem à floresta seu médico em Los Angeles lhe havia diagnosticado um linfoma, Abbott era obrigado a suportar diariamente quatro penosas horas na barraca de maquiagem para parecer um velho em estado deplorável. Sinceramente, ninguém sabia como ele tolerava essa tortura. Na verdade, passava a maior parte do tempo embriagado. Após a maquiagem, era preciso que a equipe estivesse bem coordenada: as altas temperaturas e a umidade provocavam o suor, e este fazia a cara maquiada do ator se decompor em menos de uma hora de filmagem. Havia imensos ventiladores para onde quer que se voltasse o olhar, mas toda essa parafernália se mostrava inútil diante do poder da selva. O calor impregnava tudo como uma segunda pele. Aí só restava filmar cenas em que o Führer não aparecia ou então interromper o trabalho até o dia seguinte. Nem é preciso dizer o quanto essa rotina era desgastante para todos.

Para recriar um mínimo de condições civilizadas, fora montada uma espécie de assentamento indígena de luxo. Duas dezenas de barracas, dispostas segundo a lógica muito particular de W.H. --um diretor calejado em filmar em meio às dificuldades e em locações nos lugares mais inóspitos do planeta--, serviam de moradia, sala de preparação dos atores, refeitório, enfermaria, sala de reuniões. Esta última era destinada aos dois financiadores que apareciam de helicóptero uma vez por mês para conferir o andamento dos trabalhos, ficavam ali pouco mais de cinco horas e depois voltavam para Manaus, onde um jato particular os conduzia de volta à Europa. Havia também, é claro, a barraca particular de Abbott, que chamava a atenção por ser a maior de todas e que mais parecia o bangalô de um daqueles velhos administradores da África colonial.
Ninguém, nem mesmo o diretor alemão, se aventurava nesses domínios. Parte disso se devia a motivos concretos (exigência contratual), outra parte era preocupação sanitária. Que tipo de fedor e sujeira estariam à espera de um visitante? Quando não estava filmando ou se metendo em confusão, Abbott se encerrava na barraca e dali não saía sequer para realizar as refeições, único momento em que a equipe inteira, do diretor ao mais humilde dos operários do set --em sua maioria recrutados entre a população ribeirinha da região--, confraternizava sem hierarquia. Somente Lewgoy, um experiente ator brasileiro já na casa dos 60 anos, que fazia o papel de um famoso caçador de nazistas, vez por outra se arriscava a saber como Abbott estava passando. Aparentemente, suas visitas eram toleradas. Mas Lewgoy também sempre se esquivou de tocar no assunto com os outros.

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