quinta-feira, 19 de julho de 2012

CONTO bonde

dalton trevisan

Solteiro, comerciário, ele se desespera na fila das seis da tarde. Na meia hora de vida roubada por esse bonde, José podia ter feito grandes coisas: beber rum da Jamaica, beijar Mercedes, saquear uma ilha. Pula de um pé no outro, impaciente de assumir o seu posto no mundo, assim que o bonde chegue - o navio fundeia nos verdes olhos.
Não dói o calo no pé esquerdo, nem pesa o guarda-chuva no braço, a um flibusteiro que bebe rum em crânio humano daria o Capitão Kidd desconto de 3% para vendas a vista? Desafia os vagalhões na sua nau Catarineta, eis que um pirata lhe bateu no braço e o herói saltou em terra.
- Seu moço, para onde vai esse bonde?
- Por cem milhões de percevejos fedorentos!
Bom rapaz, não praguejou feito um excomungado lobo-do-mar, e deu a rota de sua fragata. Um moço - vinte anos, puxa! - com a idade do homem de negócios, o guarda-chuva é negra bandeira de tíbias cruzadas. Nesse bonde que ninguém não viu ele quer fugir para o longe, abandonando a donzela de cigarro na boca, triste no cais. A seu lado, o barbudo Zequinha Perna-de-Pau e a pálida filha do Vice-Rei da Ilha das Tartarugas bóiam, náufragos como ele, atirados à praia pela maré. O velho de olhos azuis de contramestre, um pacote de bananas no braço, sorri para ele. Na testa lateja uma espinha, até isso!
Morte aos barões cornudos! Desfralda no crepúsculo o seu grito de guerra. Todo velhote é um canhão de museu, sente gana de afogar o Corsário Mão-de-Gancho que não o deixa se fazer ao mar. Corpo de cavalo-marinho, uma dama igual àquela, triste no cais, sopra inquietos ventos nas velas rotas de seu bergantim. Arrasta as correntes da âncora que enleia a partida: piedade filial, temor a Deus, devoção à pátria.
Em vão vogava em maré de barataria, o bonde que chega abriu a goela de baleia, onde Jonas esperava por ele com um barril de rum.
A consciência de sua idade lhe dói no calo do pé, na espinha da testa, nas vozes de sereias que cantam só para ele. A maruja iça a bujarrona e o velho tropeça no estribo, derrubando o pacote. Sem orgulho ou dignidade, o pirata recolheu as bananas amassadas e subiu, perdido o último banco da popa.
O bonde joga no mar grosso, dele não se pode ver o céu. O contramestre retira uma banana do pacote, é a segunda vez que oferece. De pé, no cesto da gávea, grita o Capitão - "Terra!", os telhados de Ítaca tremulando ao longe.

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